10 Março 2020
“É da ciência, não de preces, que precisamos para conter uma doença que ameaça o mundo. Construir grandes muros ou colocar pessoas em campos de concentração, além de desumano, é ineficaz. E usar a crise para incitar o ódio pode ter consequências fatais. O que necessitamos é de perícia, cooperação internacional e palavras de nossos líderes que busquem acalmar os medos. Infelizmente, em muitos lugares do mundo, vemos exatamente o oposto”, escreve Ian Buruma, historiador holandês, em artigo publicado por La Vanguardia, 09-03-2020. A tradução é do Cepat.
Em setembro de 1923, o Grande terremoto de Kanto devastou grande parte de Tóquio, principalmente devido a tempestades ígneas. Houve rumores, frequentemente repetidos nos principais meios de comunicação, que acusavam os coreanos - uma minoria pobre e desprezada - de planejar uma rebelião violenta para aproveitar o desastre. Justiceiros japoneses, armados com espadas, lanças de bambu e até armas de fogo, lançavam-se sobre todos que soassem ou parecem coreanos. Cerca de 6.000 pessoas foram assassinadas enquanto a polícia assistia e, às vezes, participava.
Este não foi um fenômeno exclusivamente japonês. Os massacres de minorias nas mãos de multidões ainda são muito frequentes. Recentemente, quando os hindus começaram a matar muçulmanos em Délhi, a polícia indiana foi tão passiva - ou culpada - quanto as autoridades japonesas em 1923. Não é necessário voltar muito na história da Europa ou da América para encontrar casos semelhantes, ou até piores, de linchamentos e assassinatos em massa.
A violência irracional geralmente surge do pânico. E o pânico pode aparecer facilmente durante uma crise de saúde e depois de um desastre natural. A falta de informações públicas verdadeiras pode levar a teorias da conspiração, que podem se tornar letais quando os políticos ou os meios de comunicação as promovem deliberadamente.
No Japão, em 1923, o Ministério de Assuntos Internos pediu à polícia que prestasse atenção nos coreanos que dessem a impressão de estar procurando problemas. Em Delhi, Kapil Mishra, um político local governista do Partido Popular Indiano (Partido Bharatiya Janata), incitou à violência prometendo que enviaria uma multidão para dispersar um protesto pacífico muçulmano, se a polícia não fosse mão dura antes.
O pânico atual do novo coronavírus (COVID-19) pode ter consequências semelhantes? Felizmente, até agora não houve massacres, mas o comportamento de alguns políticos tem sido, quando menos, perturbador. Na Itália, Matteo Salvini, o líder da oposição de extrema direita, disse que os imigrantes são uma ameaça ao país porque podem portar o vírus e criticou o governo por resgatar vários refugiados africanos. Os nacionalistas de direita na Grécia estão pedindo campos de concentração para os refugiados, para proteger a população da infecção.
E logo temos o presidente Donald Trump. Sua principal preocupação é que o pânico sobre a COVID-19 prejudique as bolsas de valores. A primeira coisa que fez, então, foi acusar seus oponentes de “politizar” a epidemia. Claramente, não é a melhor maneira de manter o público adequadamente informado e oferece uma sólida base para as teorias da conspiração. O filho de Trump, Donald Jr., foi ainda mais longe e declarou que os democratas esperam que a doença mate milhões de pessoas, apenas para arruinar seu pai. Tom Cotton, um senador republicano americano do Arkansas - e possível futuro candidato a presidente - reiterou especulações desacreditadas de que os chineses fabricaram a COVID-19 como uma arma biológica.
Esses absurdos às vezes suavizam um pouco quando causam muita indignação pública, mas o dano já está feito. Um amigo em Nova York observou um homem grande e branco se aproximar de duas mulheres com características asiáticas e disse que esperava que o coronavírus as matasse, “como fizemos com vocês em Hiroshima”.
Esse homem está claramente transtornado. Seria de esperar que a maioria dos americanos, incluindo a maioria dos homens caucasianos, ficassem consternados com esse comportamento. O problema é que, quando senadores famosos e outras altas autoridades começam a fazer proselitismo com teorias conspiratórias mal-intencionadas, os transtornados podem sentir que estão autorizadas a dizer e fazer coisas que normalmente não costumavam dizer ou fazer. Não é preciso muita confusão para formar uma multidão violenta.
Por essa razão, é errado pensar que aqueles que saem para matar todos aqueles que aparecem à sua frente em nome de ideologias raciais, políticas ou religiosas são simplesmente loucos solitários. Personagens como Anders Breivik - que matou 77 pessoas na Noruega em 2011 como parte de sua guerra para salvar o Ocidente de marxistas, multiculturalistas e muçulmanos - podem de fato ser operadores solitários, mas aqueles que divulgam teorias da conspiração que inflamam as mentes desses assassinos têm pelo menos alguma responsabilidade. O mesmo vale para extremistas muçulmanos que pedem guerra santa contra os infiéis perversos, ou políticos que afirmam que os refugiados carregam doenças terríveis que ameaçam seus países.
A Covid-19 é uma ameaça, como todas as doenças que podem levar a pandemias. E, no entanto, Trump tratou de cortar o orçamento dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças e não substituiu as equipes do Conselho de Segurança Nacional responsáveis em dar respostas à pandemia. O presidente e seus apoiadores não confiam nos especialistas e a pessoa designada para liderar a luta contra o coronavírus, o vice-presidente Mike Pence, é cético em relação à ciência.
Mas é da ciência, não de preces, que precisamos para conter uma doença que ameaça o mundo. Construir grandes muros ou colocar pessoas em campos de concentração, além de desumano, é ineficaz. E usar a crise para incitar o ódio pode ter consequências fatais. O que necessitamos é de perícia, cooperação internacional e palavras de nossos líderes que busquem acalmar os medos. Infelizmente, em muitos lugares do mundo, vemos exatamente o oposto.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O vírus do medo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU