04 Março 2020
"O coronavírus avança. As economias balançam. Teme-se nova onda de falências e desemprego. Em resposta, o banqueiros pedem… mais dinheiro para si próprios! Atendê-los não evitará a grande crise. E enquanto a pandemia avança, o Brasil segue em sono esplêndido", escreve Antonio Martins, jornalista, em artigo publicado por Outras Palavras, 02-03-2020.
“Um dia, a grande ficha vai cair”, escreveu e desenhou Laerte, num quadrinho provocador sobre a alienação humana. A frase cai como uma luva para o Brasil, diante do Coronavírus. No mundo todo, os jornais debatem a pandemia, os enormes abalos que ela provoca nos mercados financeiros e os riscos de uma recessão global. Aqui, a tempestade econômica sequer figura nas manchetes principais – muito menos se debate seu sentido. E como não é possível desconhecer a propagação da doença (já são 2 casos confirmados e 433 suspeitos), promove-se ativamente a despolitização. A população é orientada a lavar as mãos com álcool gel – nunca a examinar os atos (e em especial as omissões) dos governos.
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É neste ambiente que se armam tenebrosas transações. Na esfera global, a mais importante é a trama, pelos Bancos Centrais dos países ricos, de uma operação para salvar os bancos privados e grandes empresas em crise. A jogada repete o script principal seguido na grande quebradeira de 2008. Os grandes grupos econômicos são “resgatados”. Para evitar que quebrem, os Estados injetam dinheiro e assumem enormes dívidas. Logo em seguida, cortam gastos sociais, alegando estar quebrados – e, portanto, obrigados a “austeridade”. Há uma diferença essencial, porém, em relação à crise passada. Surgiu, em diversas partes do mundo, uma reivindicação política nova, baseada na chamada Teoria Monetária Moderna. Propõe-se: se os Estados podem criar dinheiro para salvar bancos, porque não podem fazer o mesmo para grandes investimentos sociais e em infra-estrutura?
A transferência de dinheiro público aos banqueiros começou a ser articulada sexta-feira passada. A oligarquia financeira estava em pânico, depois de uma semana de quedas abruptas nas bolsas de valores e dos primeiros sinais de travamento nos mercados internacionais de crédito. Jerome Powell, o presidente do banco central dos EUA (o “Federal Reserve”) tranquilizou-os. Anunciou que estava “monitorando de perto” a evolução do coronavírus e prometeu “usar nossas ferramentas e agir de modo apropriado”…
Não foi suficiente. Na manhã desta segunda (2/3), a bolsa de Tóquio abriu em baixa. Então, Haruhiko Kuroda, o governador do banco central japonês, disse com todas as letras o que seu colega norte-americano havia apenas deixado implícito. Afirmou que sua instituição irá “oferecer ampla liquidez e assegurar estabilidade nos mercados financeiros, por meio de operações de mercado apropriadas e compra de ativos”. Traduzindo: a) injetará dinheiro público nos mercados; b) salvará empresas e bancos em dificuldades; c) comprará ações, para evitar que seu preço continue desabando.
Começou assim, na crise de 2008 – e não parou até hoje. Ao todo, estima-se que os bancos centrais tenham transferido ao sistema financeiro, em operações de salvamento e recompra de títulos, o equivalente a US$ 40 trilhões. Mas, numa economia já marcada por desigualdade abissal e crescimento medíocre, dará resultado? O New York Times reconhece que é muito improvável. Os nababos financeiros seriam salvos, mas de que forma isso recomporia as cadeias de produção rompidas pelo coronavírus? E os enormes prejuízos que setores como a aviação, o turismo e o comércio em geral estão sofrendo, com as quarentenas e a queda abrupta de consumo?
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As eleições presidenciais dos Estados Unidos, que repercutirão em todo o mundo, serão marcadas pela crise. Bernie Sanders, o candidato pós-capitalista, cresce por ter uma resposta radical – e exequível. Ele propõe enorme aumento dos investimentos públicos. Quer estabelecer Saúde Pública para todos, mensalidades gratuitas nas universidades, vasto plano de infraestrutura, transição para energias renováveis, ocupações dignas garantidas pelo Estado para todos os que desejem trabalhar.
Admite que isso custará, ao longo de seu mandato, US$ 50 trilhões. Quando lhe perguntam como será possível, lembra que a massa de dinheiro é equivalente ao gasto para salvar os bancos – numa operação que beneficiou apenas o 0,1% mais rico e gerou zero benefício social.
Nos EUA, esta terça-feira, por sinal, é super tuesday – o dia em que são escolhidos, de uma só vez, cerca de 40% dos delegados que escolherão o candidato do Partido Democrata. Sanders lidera a disputa, com folgas. Uma vitória decisiva agora poderá tornar sua arrancada irresistível e levá-lo a disputar a presidência com Trump, em outubro. A polarização teria enorme impacto no cenário internacional, escancarando dois projetos opostos diante da crise e produzindo rearranjos em todo o mundo. Um texto publicado há dias no Christian Science Monitor ajuda a entender por que Sanders foi capaz de articular dezenas de milhares de ativistas, que estão fazendo a diferença na disputa dos democratas. Ele dialoga com as frustrações de uma sociedade empobrecida, onde os estudantes deixam a universidade com uma dívida que pesará sobre seus orçamentos por muitos anos, e uma internação hospitalar simples, para detectar a presença do coronavírus, pode custar US$ 6 mil. Mas ao contrário de Trump – que busca converter a insatisfação em ressentimento e em apoio a “um homem forte” – Sanders produz o reencantamento com a política e a reesperança. Caso se confirme, será uma disputa essencial para redefinir campos.
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O coronavírus, percebe-se, já está no centro do debate global. Mas como evitar que a pandemia assuma dimensões catastróficas? Ao contrário do Brasil, cresce em todo o mundo o debate sobre que opções políticas adotar. Dois textos – um do New York Times, outro em Economist – ajudam a mapear a discussão. A revista é clara: a oportunidade de evitar a difusão geral da doença foi perdida. Agora, é tentar reduzir danos.
Fazê-lo depende, essencialmente, de reduzir a chamada taxa de reprodução do vírus, uma variável conhecida pelos epidemiologistas por R. Ela indica quantos indivíduos, que nunca tiveram antes contato com o agente patogênico, serão infectadas por cada pessoa doente. A taxa de reprodução básica do coronavírus (ou R-zero), calculada a partir da cidade chinesa de Wuhan, onde eclodiu, é muito alta: entre 2 e 2,5. Isso significa, segundo estudos epidemiológicos, potencial de contaminar entre 25% e 70% de cada população atingida. Como, dentre estes, cerca de 15% necessitam de internação hospitalar, a pressão sobre os serviços de Saúde pode ser dramática.
Todo o esforço concentra-se, portanto, reduzir R-zero, produzindo uma taxa de reprodução efetiva muito menor. Os chineses foram, até agora, muito bem-sucedidos, ao adotarem regimes drásticos de quarentena – e ao construírem hospitais de isolamento em tempo recorde. Medidas semelhantes, embora menos abrangentes, estão sendo tomadas em países como a Itália. Nas dez “zonas vermelhas” onde o vírus manifestou-se primeiro, 500 policiais e soldados impedem a entrada ou saída de pessoas. Nos Estados Unidos, mostra o New York Times, há intenso debate sobre como lidar com a pandemia. Critica-se fortemente a decisão de Trump, de nomear o vice presidente Mike Pence – um ultraconservador contrário, por exemplo, à pesquisa científica com células-tronco – para coordenar os esforços de contenção. Zomba-se do orçamento de US$ 2,5 bilhões requisitado por Trump para enfrentar a propagação da doença. Fala-se que seriam necessárias seis vezes mais.
No Brasil, tardam as medidas preventivas. Faltam, por exemplo, máscaras e, nos hospitais, equipamentos de respiração suficientes. O SUS está pressionado pelo congelamento do gasto social. Em muitas cidades, o atendimento básico e as equipes de Saúde da Família estão desarticulados. Programas que teriam enorme importância no combate à epidemia, como o Mais Médicos, foram interrompidos.
Diante disso, o fórum de secretários de Saúde solicitou ao governo federal a irrisória quantia de R$ 1 bilhão – certamente fruto da mentalidade de arrocho dos gastos públicos dominante. Construir, por fora do governo, uma estratégia alternativa, precisa ser prioridade central dos que defendem a Saúde Pública e o Comum.
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