29 Fevereiro 2020
Alarmismo, desinformação, racismo. Um após o outro e todos de uma vez. A antropóloga americana Adia Benton recorda que já vimos esse filme antes. Na sua opinião, parte da reação ao surto de coronavírus originário da China, em que se detectaram mais de 80.000 casos, demonstra algumas lições que o mundo não aprendeu com outras epidemias como a SARS e o Ebola. Uma delas, diz, é que quando há um vazio de informação, é fácil que se forme uma narrativa em torno do surto que “busque um bode expiatório” e o marginalize.
Em entrevista ao jornal El Diario, Benton, que é professora associada de Antropologia e Estudos Africanos na Northwestern University (Illinois) e autora do livro Excepcionalismo del VIH: desarrollo a través de la enfermedad en Sierra Leona, reflete sobre como funciona esse tipo de discurso e suas consequências.
A entrevista é de Icíar Gutiérrez, publicada por El Diario, 27-02-2020. A tradução é do Cepat.
Para você, parte da reação diante da epidemia de coronavírus originada na China se encaixa em um “padrão habitual”. Em que consiste esse padrão?
Existe um padrão habitual de discurso tóxico e tem a ver com o uso de bodes expiatórios ou com depreciar aqueles que se considera os “outros”. Às vezes, a própria doença provoca esse desprezo. Outras vezes, as condições sociais e políticas que precedem o surto são agravadas pelo aparecimento de uma doença de gravidade e capacidade de infecção desconhecidas.
Ou seja, as características da doença podem acabar estigmatizando qualquer pessoa suspeita de padecê-la. Se determinados grupos já são discriminados por sua classe, sua raça ou seu local de origem, e se percebe que têm características associadas à sua “diferença” que os tornariam suscetíveis à doença, acabam sofrendo dupla marginalização ou discriminação. As pessoas dizem coisas como: “Oh, como os chineses comem isso ou os chineses acreditam naquilo, é claro que padecem esta coisa, e agora suas más práticas culturais estão colocando o mundo em perigo”. Fala-se de supostas características inatas, e isso é importante, das pessoas chinesas que as predispõem a um certo tipo de vírus, e razão pela qual merecem ser excluídas e isoladas.
Quais as consequências reais desse discurso?
Esse tipo de discurso está tendo consequências reais no surto atual, como a violência psicológica e física antiasiática; consequências econômicas ,como resultado das restrições às viagens e ao comércio dentro da China e da China com outros países. Também boatos e desinformação que influenciam as respostas oficiais, como o isolamento e a quarentena de navios de cruzeiro.
O que alimenta tais narrativas?
Os meios de comunicação convencionais costumam contribuir para alimentá-las, no sentido de que podem dar voz ou informar sobre políticos que expressam ideias xenófobas ou racistas. Mas as redes sociais e as narrativas que circulam localmente também fazem parte desse ecossistema. Existem muitos analistas de poltrona especulando sobre as origens da doença e recorrendo a fontes díspares para apoiar certas teorias sobre o seu surgimento.
O que a situação atual tem em comum com a do surto de ebola, em 2014, ou com a síndrome respiratória aguda grave (SARS), de 2003?
A SARS é uma comparação comum porque é um vírus semelhante. Em nível global, mudou a maneira como reagimos a surtos com o potencial de se tornar pandemias. Se o comparamos com o ebola, podemos nos fixar nos usos políticos e sociais da doença. O ebola se deflagrou durante um ano eleitoral nos Estados Unidos e na Libéria, então, os políticos o utilizavam como uma cunha para abordar outras questões que os interessavam, como a imigração, a violência policial por motivos raciais, vigilância e outros. Meios de comunicação como Newsweek e CNN aproveitaram a maré, vendo-a como uma oportunidade de aumentar a receita.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou para a disseminação de informações erradas e boatos no atual surto. Como os boatos interagem com o racismo?
A desinformação e os boatos são onipresentes durante os surtos. As pessoas tentam encontrar um sentido para a doença e a morte. Procuram medir os riscos para si e para os outros. Na ausência de informações claras sobre o risco - e comunicar o risco é muito difícil, na minha opinião -, a probabilidade de que a desinformação e os boatos se estendam é maior.
Por exemplo, na medida em que vão se difundindo notícias de que autoridades da capital chinesa queriam diminuir a importância do surto ou de que os especialistas regionais estavam alarmados com o potencial de propagação, é de se esperar que circulem boatos. Para os outsiders que olham da porta para dentro, a tendência será especular sobre as supostas motivações e intenções da China em relação às origens da doença: foi fabricada em laboratório? Espalharam intencionalmente o vírus para dizimar um grupo específico? São respostas comuns, embora preocupantes, em surtos. O fato de ser um vírus novo, que cientistas e especialistas clínicos ainda estão aprendendo sobre ele, só aumenta o espetáculo.
Quando a OMS batizou a doença como COVID-19, fez isso intencionalmente, para não fazer referência a qualquer pessoa, local ou animal e, assim, evitar o estigma. Você concorda?
Debateu-se muito sobre as taxonomias das doenças e fazer referência a lugares e pessoas nos nomes das doenças as estigmatiza. Mas é interessante nos perguntar que tipos de nomes estigmatizam a quem. Por exemplo, existe o vírus de Marburg, uma febre hemorrágica, mas leva o nome de uma cidade alemã! As pessoas sentem repulsa a Marburg, Alemanha? Rejeitam os moradores de Marburg? O mesmo acontece com a doença do legionário. Por acaso, as pessoas temem ir às reuniões da Legião Americana?
Cidadãos asiáticos estão denunciando o racismo, em várias partes do mundo, com campanhas como “Não sou um vírus”. Existe, agora, uma resposta antirracista maior do que em outras epidemias?
Algo semelhante aconteceu durante o surto de ebola na África Ocidental. De fato, “eu não sou um vírus” circulou como uma hashtag, em outubro de 2014, entre os ativistas liberianos e se espalhou. É realmente uma resposta comum, querer dissociar as pessoas dos vírus. Mas também devemos refletir sobre como estamos colocando as pessoas na posição de sentir que elas são essencialmente iguais à própria doença e quem ou o que influencia essa percepção de que os liberianos ou africanos ocidentais, em geral, e o ebola são sinônimos.
A que se refere?
A questão aqui é como se intercambia as pessoas com o vírus, que é o que implica o lema Não sou um vírus. Que alguém pense que a pessoa que tem o sintoma, na realidade, é um vírus. É assim que o estigma funciona: não é simplesmente a maneira como os outros tratam você em relação à doença, mas também como você começa a acreditar que está incorporando tudo o que o vírus representa. Os vírus vivem nos corpos e quando as políticas estão orientadas para conter ou isolar o vírus, os trabalhadores da saúde e as autoridades governamentais estão, na realidade, contendo corpos que são pessoas, isolando corpos que são pessoas.
Por outro lado, deveríamos nos perguntar até que ponto as respostas xenófobas e racistas são um sintoma de um sistema mais amplo de desigualdade e exclusão.
Qual é a melhor maneira de não alimentar esse discurso tóxico?
Não sei. Está muito enraizado, mas talvez seja importante conscientizar as pessoas sobre como essas mensagens circulam e de que possuem consequências materiais, físicas e psicológicas. Mas é difícil fazer com que as pessoas pensem em como contribuem diretamente para a dor de outras, que as prejudicam.
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“Em epidemias como o coronavírus, repete-se um padrão de discurso tóxico e depreciativo”. Entrevista com Adia Benton - Instituto Humanitas Unisinos - IHU