18 Dezembro 2014
Nilson Mourão, o secretário de Justiça e Direitos Humanos do Acre, tem cabelos e bigode branco, usa óculos e parece um senhor tranquilo. Ele defende que migração é um direito humano e que quem quer viver em outro país deve ser respeitado. Por isso, conta que tem ouvido ameaças.
“O componente de xenofobia já está disseminado. Eu encontrei um senhor na rua que me pegou pelo braço e me levou para o canto e botou na boca de outra pessoa o que ele pensa. Ele disse: secretário, tem um pessoal lá no bairro em que eu moro que quer dar uma ‘pisa’ no senhor. Eu perguntei o que eu fiz e ele: ‘Como é que vocês deixam esses haitianos entrarem com ebola? Vocês estão ficando doidos?!’”. Xenofobia é o fenômeno que pode ser resumido como raiva, medo, ódio ou discriminação contra estrangeiros.
A reportagem é de Daniel Santini, publicada por Repórter Brasil, 17-12-2014.
A história contada durante entrevista de mais de uma hora feita em seu gabinete ilustra como novas formas de preconceito começam a aparecer no Brasil, fenômeno relacionado à entrada desordenada de milhares de imigrantes negros no país a partir da região Norte, em um fluxo que não para de crescer. Em 2010, os primeiros haitianos dessa nova rota de migração chegaram a Rio Branco. Em 2014, já eram 39 mil haitianos, segundo dados da Polícia Federal. Pelo mesmo caminho aberto pelos haitianos, seguiram os senegaleses, que entram solicitando refúgio na fronteira. Foram 161 em 2012, 961 em 2013, 1.687 até outubro de 2014. Os números são baseados em relatório organizado pela ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados.
As manifestações de racismo ainda são pontuais e incipientes, mas se agravaram nas últimas semanas, em especial quando o risco de uma epidemia internacional de ebola passou a ser noticiado pela imprensa em todo o planeta.
Ignorância
A história narrada pelo secretário de Justiça e Direitos Humanos também revela outro aspecto relacionado ao preconceito: a falta de informação. Ao associar a migração de haitianos ao ebola, o agressor em questão ignora que o foco principal da doença hoje não o Caribe, mas sim a África. A incidência se concentra em três países do continente: Guiné, Libéria e Serra Leoa. Outros, como Senegal, por exemplo, são considerados livres da doença.
“Temos que ter um olhar com cuidado especial para essa fronteira, mas não é razão para a população ter pânico ou ficar achando que está sob risco de uma epidemia”, explica o médico David Souza, especialista em ação humanitária e ex-diretor médico da organização Médicos Sem Fronteiras, da qual ainda é associado. “Como existem riscos, ainda que mínimos, é preciso que sejam anunciados os serviços de saúde na fronteira e que qualquer pessoa que apresente os sintomas seja encaminhada para atendimento médico. É preciso ter o mesmo zelo com todas as fronteiras, não apenas nos aeroportos”, defende.
Com a experiência de atuação em algumas das regiões mais pobres do planeta, ele demonstra preocupação com as consequências de notícias exageradas, incluindo a discriminação contra africanos em geral.
“Temos visto muitos comentários feios de brasileiros em relação a africanos por conta do ebola”, aponta. “Isso começa a despontar e é sempre assim. À medida que o imigrante começa a aparecer, seja concorrendo em mercado do trabalho, seja como contraventor, ou como possível emissor de uma doença, a relação é de xenofobia imediata. A sociedade brasileira tem esse perfil de sociedade plural, mas basta pouca coisa para que manifestações agressivas comecem a ocorrer”, afirma o médico.
Justamente em função do crescimento de novos fluxos migratórios, ele aponta a necessidade urgente de políticas públicas específicas, o que ajudaria, acredita, a minimizar as chances de explosões de xenofobia. “Com o crescimento econômico o Brasil virou um polo de migrantes não só da Ásia, mas da África também. Estamos em um estágio em que a questão da migração está sendo colocada para baixo do tapete. As autoridades procuram dar resposta em relação à mídia, mas precisamos de mais que isso. Precisamos de uma política migratória concreta para essas pessoas, o governo brasileiro precisa olhar de forma séria e competente e construir uma política migratória real”, defende.
A Repórter Brasil questionou o Governo Federal sobre uma política migratória federal e, segundo João Guilherme Lima Granja Xavier, diretor do Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça, existem planos nesse sentido, inclusive com propostas de alterações no Estatuto do Estrangeiro.
Trabalho
Na América do Norte e na Europa, onde rotas de migração já se consolidaram e são bastante expressivas, um dos argumentos mais repetidos por quem defende políticas xenófobas é o de que estrangeiros vão tomar os postos de trabalho dos moradores locais. A reportagem questionou Antônio Torres, secretário de Desenvolvimento Social do Acre, sobre essa possibilidade.
“Ninguém toma o trabalho de ninguém. Eles ocupam os espaços que estão vazios. As empresas têm demonstrado que têm mercado de trabalho. Eles vêm para contribuir, com ideias, com um papel social. Vão gerar uma economia local, ajudar o Brasil a crescer”, defende, lembrando que há também quem reclame dos recursos gastos para assegurar a sobrevivência dos imigrantes recém-chegados. “O governo não está descobrindo nenhuma área para poder manter essa estrutura básica. Faz um esforço a mais para auxiliar os imigrantes na questão de respeito humanitário mesmo, respeito à dignidade humana e à história dessas pessoas que estão fugindo da fome, da miséria e de tantas injustiças.”
A condição de vulnerabilidade social dos novos imigrantes que chegam ao país é um dos temas estudados por Letícia Helena Mamed, doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora da Universidade Federal do Acre (Ufac). Durante a 7ª Reunião Científica sobre Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, ela lembrou que “o desemprego atinge entre 70 e 80% da População Economicamente Ativa do Haiti”, e que “com uma população de 10 milhões de pessoas, estima-se que apenas 180 mil possuam empregos formais”.
Durante sua apresentação, intitulada “Movimento Internacional de Trabalhadores e Exploração Laboral de Imigrantes: Uma Análise da Recente Trajetória dos Haitianos no Brasil”, informou ainda que “80% da população vive com menos de 2 dólares por dia, ou seja, abaixo da linha da pobreza”.
Segundo estudo divulgado recentemente pelo Observatório das Migrações Internacionais, os haitianos ultrapassaram os portugueses em 2013 e tornaram-se o maior grupo de estrangeiros com vínculo formal de trabalho no Brasil. O documento indica ainda que a maioria dos haitianos, nada menos do que 10.901, trabalha em fábricas.
Dívida histórica
Para o assistente social Carlos César Ferreira de Souza, um dos funcionários da Secretaria de Desenvolvimento Social do Acre que atua diretamente com imigrantes no abrigo em Rio Branco, o Brasil tem o dever de garantir os direitos dos imigrantes haitianos e senegaleses que têm procurado o país, até por conta do seu passado escravista. “No passado poderíamos ter tido um respeito maior com os negros. Os alemães e espanhóis até passaram por dificuldades, mas foram bem tratados naquele momento. Esse é um momento especial para o Brasil, não vai corrigir o que fez no passado, mas é um momento especial”, defende.
Ele diz que em Brasiléia, cidade de fronteira em que os imigrantes eram reunidos antes da criação do abrigo em Rio Branco, presenciou cenas de racismo. “Como a sociedade era atendida nos mesmos espaços, quando um haitiano ia a um centro de saúde era muito discriminado pela população. Ele não é visto como um ser humano”, lamenta.
Damião Borges, funcionário da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Acre que atuou como coordenador do abrigo de Brasiléia, confirma as agressões reportadas pelo colega. “Teve muito racismo. Eu entrava na internet, tinha e-mail com cada barbaridade. No abrigo, passava gente de carro e dizia: ‘vou soltar uma bomba aí dentro, tem que metralhar esses negros’. A gente ouvia muito isso aí”, relata. Mesmo em Rio Branco há episódios de discriminação. Antonio Carlos Ferreira Crispim, funcionário da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social do Acre, conta que precisou intervir para que um haitiano com o apêndice suturado fosse atendido em um hospital público.
“Os negros, pelo processo que vem desde a escravidão, sofrem muitas discriminações. Isso ainda é muito forte no nosso país, no mundo. Mas aqui tem espaço para todo mundo”, defende o assistente social Carlos César Ferreira de Souza. “No Acre, os grupos aparecem porque é um estado pequeno, pobre, que tem lá suas dificuldades de conduzir essas condições, esse trabalho, mas em São Paulo, Santa Catarina, no resto do país, não vamos nunca conseguir visualizar essa multidão dessa forma. Existe pressão política, sempre tem quem fale que se não tem trabalho para brasileiros, vamos dar para os outros? O Brasil é grande, é rico, tem espaço para todo mundo e essas pessoas com certeza vão colaborar muito para o crescimento e construção do nosso país. Essas pessoas ajudam nesse crescimento.”
Racismo empresarial
Paolo Parise, padre que coordena a Missão Paz, centro de acolhida de imigrantes em São Paulo vinculado à Igreja Católica, conta que mesmo entre empresários há casos de racismo. “Um empresário contratou 12 haitianos como garçons. Os colegas falaram ‘não, não vamos pegar negros para trabalhar em restaurantes. E nossa imagem?’. Mesmo entre as empresas têm preconceito. É aquela ideia de que em um restaurante italiano o garçom tem que ser branco”, conta o missionário, ele mesmo um imigrante italiano.
“Na Europa a proporção de migrantes em relação à população geral é muito maior. Aqui no Brasil, os mais exagerados falam em 1% da população. O Ministério da Justiça fala em 0,8%. É pouco, mas estamos com sinais claros, ouvimos aqui: ‘ah, esses negros vão aumentar a violência’, ‘estão tirando trabalho, trazendo doenças’. São frases que a gente escuta, e-mails que chegam… São coisas que a gente vê na Europa, onde alguns países têm 8%, 9% de imigrantes em relação à população. Com tão pouco aqui já estamos com sinais de preconceito, racismo, xenofobia?”, questiona o padre.
É Nilson Mourão, o secretário de Justiça e Direitos Humanos que relatou a ameaça do começo desta reportagem, quem responde como o Brasil deve tratar os imigrantes negros. “Do mesmo modo como outros países acolhem hoje quatro milhões de brasileiros, nós devemos acolher os que vêm de outros países. Particularmente os mais vulneráveis, que não por acaso são negros e pobres”, defende.
“Eu considero o direito de migrar como um dos direitos humanos. Qualquer ser humano tem direito de procurar melhorar sua vida e de sua família. O mundo é da humanidade. Aqueles que deixam seu país não deixam por qualquer razão. Deixam porque não têm condições de sobrevivência e querem sobreviver com dignidade em algum outro lugar. Então eles devem ser recebidos de modo ordenado, organizado e digno e viver no nosso país. Eles trarão uma boa contribuição cultural e econômica para o desenvolvimento do país.”
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Medo de ebola agrava preconceito contra imigrantes negros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU