17 Janeiro 2020
" Deixando de lado a contribuição de Bento XVI, o resto da obra deturpa grosseiramente a doutrina da Igreja sobre a ligação entre o sacerdócio e o celibato. Também ignora os fatos da história", escreve Robert Mickens, editor-chefe da Global Pulse, em artigo publicado por La Croix International, 16-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Não deveria ser assim. E, no entanto, poderia ter sido – e pode ainda se tornar – muito pior.
Bento XVI se viu no meio de uma polêmica relativa à sua suposta coautoria de um livro que defende, com unhas e dentes, o celibato sacerdotal. A obra parece uma tentativa de impedir que o Papa Francisco considere a ordenação de padres casados.
O outro autor e que deu início ao projeto de escrita é o cardeal africano Robert Sarah, experiente autoridade vaticana que se tornou um dos heróis dos católicos tradicionalistas opositores a Francisco.
O livro, que já está publicado em francês e em breve ficará pronto em inglês, chama-se Des profondeurs de nos coeurs [Das profundezas dos nossos corações, em tradução livre]. O jornal conservador francês Le Figaro revelou a sua existência em 12 de janeiro ao publicar excertos e uma entrevista com o cardeal.
E que agitação causou! Especialmente pelo momento em que o livro foi lançado.
A obra aparece poucas semanas antes de Francisco publicar um documento em resposta ao Sínodo dos Bispos para a Amazônia realizado em 2019. Uma das propostas desta assembleia sinodal pede que o papa aprove a ordenação sacerdotal de homens casados de virtude comprovada (viri probati).
Dado que um dos autores do livro é um ex-papa, muitos interpretam a obra como um esforço (e mesmo como uma advertência) para dissuadir Francisco de seguir na linha sugerida pelos padres sinodais.
Mas em menos de 48 horas após a notícia do livro aparecer, o secretário pessoal de Bento XVI – Dom Georg Gänswein – disse que o ex-papa nunca chegou a consentir em ser coautor e pediu que seu nome fosse retirado da capa da publicação.
O ex-papa, explicou Gänswein, apenas submeteu um ensaio ao Cardeal Robert Sarah, sem escrever nenhuma outra parte da obra. Informou também que Bento não viu a capa do livro.
Os fóruns de discussão católicos nas redes sociais aventaram todo tipo de especulação quanto ao que teria acontecido de fato.
Será que Sarah manipulou Bento ou o trapaceou para que ambos fossem os autores da obra? Ou será quer Gänswein deu permissão ao cardeal para citar a autoria de Bento só para se ver forçado a negar o envolvimento do ex-papa quando Bento ou outros expressassem um descontentamento?
Não está ainda claro exatamente o que se passou. Gänswein afirmou que Bento nunca chegou a concordar em pôr o seu nome no livro. Mas o cardeal mostrou várias cartas assinadas por Bento que sugerem que ele, realmente, sabia da proposta da publicação.
O cardeal – pelo menos por enquanto – aquiesceu, dizendo que o nome de Bento será retirado das futuras edições. No entanto, insistiu que o ex-papa contribuiu para o livro e que seu texto permanecerá inalterado.
“Foi um mal-entendido, sem lançar dúvida sobre a boa-fé do Cardeal Sarah”, declarou o Gänswein.
Mesmo assim, o cardeal não saiu bem deste incidente. Alguns tradicionalistas que antes haviam mostrado admiração por ele agora o culpam por tentar manipular Bento.
Outros dizem que foi tudo culpa de Gänswein, quem então jogou a culpa em Sarah quando o caso estourou no Vaticano.
E quanto ao conteúdo factual do livro? Deixando de lado a contribuição de Bento XVI, o resto da obra deturpa grosseiramente a doutrina da Igreja sobre a ligação entre o sacerdócio e o celibato. Também ignora os fatos da história.
Além disso, desonestamente dá a entender que o que está em jogo é o fim do sacerdócio celibatário. Na realidade, ninguém nunca sugeriu a abolição do celibato, apenas que a prática de ordenação de homens casados seja retomada na Igreja – como era no começo.
Os argumentos mal apresentados do livro são, na verdade, de pouca importância. O problema real é que o ex-papa se envolveu (ou foi envolvido) em um esforço para impedir a liberdade de seu sucessor no governo da Igreja universal.
Há muita culpa a ser lançada por aí. Dom Georg Gänswein certamente deve levar uma parcela dela. O prelado alemão de 63 anos é o secretário pessoal de Bento XVI desde 2003, dois anos antes da eleição de Joseph Ratzinger ao papado.
Apenas dois meses antes de anunciar a sua renúncia como papa (algo que ele decidiu vários meses antes), Bento nomeou Gänswein como prefeito da Casa Pontifícia e o ordenou bispo.
O novo papa, Francisco, o manteve na função. Além de continuar como prefeito, Gänswein continuou sendo o secretário pessoal de Bento.
Os dois, e outras quatro leigas consagradas, vivem na mesma residência nos Jardins do Vaticano. Nos quase sete anos desde sua saída, Bento vem recebendo visitantes quase diariamente. O seu secretário é o “porteiro”, decidindo quem tem acesso a ele e quem não tem.
Nos últimos anos, à medida que a saúde de Bento se fragiliza, o papel do arcebispo de guardião e cuidador torna-se mais importante ainda. Um documentário lançado no começo deste mês na Alemanha mostra o ex-papa em um estágio avançado de declínio.
E a assinatura nas cartas que ele teria escrito (ou ditado) permitindo que Sarah publicasse os seus pensamentos sobre o celibato está quase ilegível.
No mínimo, isso sugere a possibilidade de que alguém – isto é, o secretário de Bento – assumiu a responsabilidade de negociar o projeto do livro com o cardeal.
E qual a culpa do cardeal?
Robert Sarah trabalha no Vaticano desde 2001 quando João Paulo II o nomeou secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos (Propaganda Fide). Nos 22 anos antes desta nomeação, ele serviu como arcebispo em sua diocese natal, a Diocese de Konakry, na Guiné, posto que ocupou até os 34 anos.
Durante o seu tempo na Propaganda Fide, o então arcebispo era conhecido como uma figura silenciosa e dedicada à oração. Os sinais de um conservadorismo ideológico surgiram só mais tarde, depois que Bento XVI o designou para presidir o hoje inexistente Pontifício Conselho “Cor Unum” em 2010 e o fez cardeal.
Após a eleição do Papa Francisco, o africano participou do primeiro grupo de cardeais a manifestar um descontentamento com as novas reformas pastorais do papa, especialmente aquelas relacionadas às pessoas em situações matrimoniais irregulares. Ele passou então a escrever ensaios e livros que demonstram uma falta completa de confiança em Francisco.
Portanto, surpreendeu quando o papa jesuíta nomeou este cardeal como prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, em novembro de 2014.
Como informado na imprensa à época, a primeira escolha do papa para este cargo era Dom Piero Marini, ex-mestre de cerimônias papal. Mas figuras próximas a Bento (talvez a pedido do papa aposentado) pediram que Francisco não fizesse esta nomeação, advertindo que ela provocaria uma guerra com os católicos tradicionalistas.
Por sugestão deste grupo, o papa nomeia o Cardeal Sarah. E desde então Francisco enfrenta a oposição deste, que tenta minar as tentativas de promover reformas litúrgicas na Igreja. O papa também precisou repreender o prelado africano por apoiar publicamente o pedido de um grupo tradicionalista que pede uma reforma da reforma litúrgica do Vaticano II (isto é, desfazer a reforma conciliar).
Sarah é também tão culpado quanto Gänswein por gerar a atual polêmica com este seu novo livro. Os dois são conservadores em termos políticos e neotradicionalistas em termos eclesiásticos. Ambos têm laços com políticos europeus de direita, com socialites e movimentos retrógrados.
Os dois estão bem cientes de que estas pessoas e grupos há tempo veem Bento XVI como um contrapeso ao Papa Francisco, alguns até mesmo chegando ao ponto de dizer que Bento é o único e legítimo papa.
As subscrever o apoio ao papa emérito nas campanhas públicas destes grupos – tal como neste novo projeto de livro –, eles deliberadamente alimentam a oposição a Francisco.
Mas o maior responsável por esta bagunça que ainda se desdobra no Vaticano não é outro senão o próprio Bento XVI.
Quando renunciou ao papado em 2013, ele também perdeu os seus direitos e deveres como Bispo de Roma. Ele tomou uma decisão ousada, ao fazer algo que nenhum outro papa fizera em quase 600 anos.
Mas ele e seu pequeno grupo de assessores não se deram conta de como esta nova situação seria regulada. Não havia protocolos definidos – a ainda não há – para um papa emérito.
Mesmo assim, com certeza estas pessoas tinham a intuição clara – na verdade, tinham a convicção – de que o arranjo então estabelecido só funcionaria se ele, Bento, tivesse o cuidado de não sugerir que, de alguma forma, ainda tinha ou compartilhava do poder papal.
Assim, o ex-papa prometeu adotar um silêncio autoimposto, dizendo que, de agora em diante, ficaria “escondido do mundo”.
Bento só precisou de seis meses para romper este silêncio, quando entrou em um debate filosófico/teológico com um pesquisador que criticava uma das primeiras obras de Joseph Ratzinger. O ex-papa permitiu que a correspondência entre os dois fosse publicada.
Desde então o religioso tem escrito cartas de apoio a numerosos grupos, a maioria deles tradicionalistas. Por sua vez, tais grupos usam os seus escritos e pensamentos expostos em seus livros, frequentemente forma distorcida, para travar uma guerra contra Francisco.
Bento poderia ter acabado com tudo isso distanciando-se publicamente destes movimentos. Aqui seria um momento em que romper o silêncio prometido teria plena justificativa.
E agora, em sua fragilidade, ele não mais pode se defender. E aqueles que têm o dever de protegê-lo tentam irresponsavelmente garantir que a sua voz – uma voz que deveria ter se mantido silente – continue a influir nos debates que modelam o futuro da Igreja.
Mas, em última instância, nada disso é culpa destas pessoas. Elas estão apenas continuando o que Bento começou quando passou a ignorar o seu voto de silêncio autoimposto.
O que estamos testemunhando são as consequências incontroláveis de uma promessa quebrada. E se as coisas continuarem como estão, tais consequências podem acabar sendo muito mais nocivas e irreversíveis.
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As consequências incontroláveis de uma promessa quebrada. Como Bento XVI se viu envolvido na polêmica do livro sobre o celibato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU