04 Abril 2017
O Cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, enviou uma mensagem para um colóquio na Alemanha dedicado a comemorar o 10º aniversário do motu proprio Summorum Pontificum do Papa Bento XVI. Grande parte do que o cardeal escreveu era lugar comum, e eu concordo com trechos do texto. Mas outras partes pareceram desnecessariamente ásperas e mesmo bobas. Ele afirma:
“Certamente, algumas iniciativas boas foram realizadas nesse sentido. No entanto, não podemos fechar os olhos para o desastre, a devastação e o cisma que os promotores modernos de uma liturgia viva causaram ao remodelar a liturgia católica segundo suas próprias ideias.”
Em mais adiante, ele diz:
“É necessário reconhecer que a grave, profunda crise que tem afetado a liturgia e a própria Igreja desde o Concílio deve-se ao fato de que o seu CENTRO não mais é Deus e a adoração d’Ele, mas, pelo contrário, os homens e sua suposta capacidade de ‘fazer’ algo que os mantém ocupados durante as celebrações eucarísticas. Mesmo hoje, um número significativo de líderes eclesiásticos subestimam a grave crise por que passa a Igreja: o relativismo na doutrina, no ensino moral e disciplinar, graves abusos sexuais, a dessacralização e a trivialização da Sagrada Liturgia, uma visão meramente social e horizontal da missão da Igreja. Muitos acreditam e declaram em voz alta que o Concílio Vaticano II fez surgir uma verdadeira primavera na Igreja. No entanto, um número crescente de líderes eclesiásticos vê esta ‘primavera’ como uma rejeição, uma renúncia de sua herança de séculos, ou mesmo um questionamento radical de seu passado e Tradição. A Europa política é repreendida por abandonar ou negar as suas raízes cristãs. Mas o primeiro a ter abandonado as suas raízes cristãs e o seu passado é, indiscutivelmente, a Igreja Católica pós-conciliar.”
A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 03-04-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Estas palavras são fortes. E o Senhor sabe que todos nós já assistimos pelo menos a um vídeo das missas com palhaços. Mas tais incidentes são exceção, uma minúscula exceção. A reforma litúrgica iniciada após o Concílio Vaticano II tem sido um sucesso esmagador.
Não só acredite em minhas palavras. Considere a carta apostólica Vicesimus Quintus Annus de São João Paulo II, emitida no 25º aniversário da constituição conciliar Sacrosanctum Concilium. Depois de notar algumas das reações adversas às mudanças litúrgicas posteriores ao concílio, vindos da esquerda e da direita, João Paulo II escreve:
“Esto no debe hacer olvidar que los pastores y el pueblo cristiano, en su gran mayoría, han acogido la reforma litúrgica con espíritu de obediencia y, más aún, de gozoso fervor.
Por ello conviene dar gracias a Dios por el paso de su Espíritu en la Iglesia, como ha sido la renovación litúrgica; por la mesa de la Palabra de Dios, dispuesta con abundancia para todos; por el inmenso esfuerzo realizado en todo el mundo para ofrecer al pueblo cristiano las traducciones de la Biblia, del Misal y de los otros libros litúrgicos; por la mayor participación de los fieles, a través de las plegarias y los cantos, de los gestos y del silencio en la celebración de la Eucaristía y de los demás sacramentos; por los ministerios desempeñados por los laicos y las responsabilidades que han asumido en virtud del sacerdocio común, del que participan por el Bautismo y la Confirmación; por la irradiante vitalidad que tantas comunidades cristianas reciben de la Liturgia.
Estos son otros tantos motivos para permanecer fieles a la enseñanza de la Constitución Sacrosanctum Concilium y a las reformas que ésta ha permitido llevar a cabo: ‘La renovación litúrgica es el fruto más visible de la obra conciliar’. Para muchos el mensaje del Concilio Vaticano II ha sido percibido ante todo mediante la reforma litúrgica.”
A liturgia toca no centro do nosso ser. Como católicos, sabemos que o aquilo que fazemos na missa é menos importante do que aquilo que Deus faz. Sabemos que a Eucaristia é, como o afirma o Concílio, a “fuente y culmen” [fonte e ápice] da vida cristã. Portanto, não deve surpreender que as pessoas tenham opiniões fortes sobre ela.
O surpreende é que tantas pessoas sintam a necessidade de denunciar os que enxergam o problema litúrgico de uma forma diferente. A nova tradução ao inglês do missal me soa desajeitada em algumas partes; a sintaxe segue o original latino e se parece como um jogo de linguagem que soa inglês, mas que na realidade são apenas sons sem sentido. Outras partes da tradução, no entanto, estão muito bem feitas, como a inclusão de uma imagem bíblica poucos antes de recebermos a Comunhão: “Senhor, não sou digno de que entreis em minha morada (…)”. A versão anterior era melhor em alguns sentidos, porém banal em algumas vezes também. O que de lamentável ocorreu com as mudanças é que elas foram influenciadas por um grupo com uma pauta que acabou contando com a atenção de importantes funcionários vaticanos.
Parte da renovação litúrgica, e uma das melhores partes do discurso de Sarah, tem a ver com os múltiplos modos de participar na liturgia. Sim, eu acho bom que os leigos – e leigas – sejam vistos, hoje, sobre o altar, proclamado as Escrituras, servindo como acólitos, distribuindo a Comunhão. Mas sei também que posso “participar” ao cantar o Kyrie da mesma forma como quando o coro canta uma bela rendição e eu me junto a ele nesse momento. Ontem, na Catedral de St. Matthew, o coro cantou o Kyrie da “Missa para Quatro Vozes”, de William Byrd.
Aqueles tons lamentosos advertem o coração para o sentido da súplica misericordiosa de que se trata o Kyrie, não? Porém eu também gosto de cantar os hinos, e seu jamais fizer isso, sentirei como se a minha participação tivesse sido circunscrita.
Como os leitores regulares sabem, eu geralmente frequento uma missa em latina na citada catedral aqui em Washington. O meu latim é bastante bom, e posso acompanhar a celebração.
Não preciso consultar a cartilha para saber o que ou quando falar as partes que nós, nos bancos da igreja, dizemos ou cantamos. Com o passar dos anos, levei amigos a essa missa, e algumas pessoas acabam, como eu, transportadas pela beleza etérea da música. Outros saem sem terem se impressionado com a experiência. Não existe um estilo litúrgico que funcione para todos e todas, e com certeza é um sinal de vigor saudável que a Igreja ofereça uma multiplicidade de estilos de culto. A nossa unidade fundamenta-se em Cristo, a quem adoramos, e não em quais músicas cantamos ou a formalidade das nossas vestimentas.
Quando emitiu o Summorum Pontificum, o Papa Bento XVI não teve a intenção de começar um movimento, muito menos um movimento ideológico. O problema que vejo com os que são a favor do culto tradicional não é com o gosto deles, e sim o fato de colocarem este gosto dentro de um marco ideológico. O Cardeal Sarah não trouxe palavras ásperas para os tradicionalistas, somente para os reformistas pós-conciliares. Ele endereçou um discurso vigoroso e pungente a pessoas que se tornaram uma espécie de seita, pessoas que olham com superioridade aqueles que não compartilham deste carinho pelo antigo rito. Se a acusação de “cisma” deve ser lançada ao ar, estaremos cometendo um erro quando esta palavra se aplicar para a ampla, ampla maioria dos católicos que seguem o novo rito.
E o pior de tudo: o Cardeal Sarah e os tradicionalistas parecem estar exercendo uma variedade de secularismo em que creem que Deus parou com sua atividade no mundo, que ele se faz acessível no Rito Tridentino e somente nele e que todos os males da Igreja fluem do fato de termos abandonado aquela “idade de ouro”. Deixá-lo para trás nós o deixamos, antes tarde que nunca. A Igreja esteve bem servida por Trento, liturgicamente, doutrinariamente, pastoralmente, mas nenhuma perspectiva conciliar dura para sempre. Ao pensar que as regras e os ritos de Trento são os únicos legítimos, os tradicionalistas tentam prender Deus na década de 1950. Não se pode fazer isso, e é errado tentar. É somente Deus quem terá a palavra final, não o cardeal prefeito.
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Mensagem infeliz sobre liturgia do Cardeal Sarah - Instituto Humanitas Unisinos - IHU