05 Dezembro 2019
“Fixa-se nos rostos sofredores dos pobres e, interpelado por eles, se pergunta se os cristãos europeus podem enfrentar esses rostos tão carregados de dor e contemplar o hoje a partir da perspectiva dos vencidos. Esta é a melhor lição que o teólogo alemão Johann Baptist Metz nos deixa, após sua morte, como uma tarefa a ser colocada em prática”, escreve Juan José Tamayo, teólogo, em artigo publicado por Religión Digital, 03-12-2019. A tradução é do Cepat.
A notícia da morte de Johann Baptist Metz, que acabo de receber de Jesús Bastante, causaram-me uma profunda comoção, já que foi um dos teólogos que marcou meu itinerário teológico e que mais influenciou minha maneira de viver e entender o cristianismo. É, sem dúvida, um dos grandes teólogos que marcou o novo rumo da teologia cristã e da Igreja Católica do século XX, com a criação da Teologia Política. Escrevo este texto como uma homenagem a uma das figuras mais relevantes do pensamento cristão libertador, sob o impacto de seu falecimento.
Metz nasceu em 1928, em Welluck/Opf (Alemanha). Viveu sua infância e juventude sob o III Reich. Estudou na escola superior de Bamberg e nas Universidades de Bamberg, Innsbruck e Munique, e obteve o doutorado em filosofia, em 1952, e em teologia, em 1961. Foi um dos discípulos mais próximos e colaboradores de Karl Rahner, que em 1956 o encarregou da reelaboração de sua obra Espírito no mundo, cuja primeira edição era de 1939. Foi cofundador e colaborador da Revista Internacional de Teologia Concilium, juntamente com Rahner, Congar, Küng, Duquoc, Schillebeekx, Lubac, etc.
De 1963 a 1993, foi professor de Teologia Fundamental, na Universidade de Münster. De 1993 a 1998, professor convidado de Filosofia da Religião, na Universidade de Viena, na qual foi nomeado doutor honoris causa, em 1994. Após o Concílio Vaticano II, foi consultor do Secretariado Pontifício para os Não Crentes. Manteve inúmeros contatos e estreitas relações intelectuais com os filósofos alemães, especialmente com os membros da Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica.
O aspecto mais importante de sua atividade intelectual é a criação da nova Teologia Política (TP), nos anos 1960, que foi desenvolvendo nas décadas posteriores com novas contribuições inovadoras. Não se trata de uma ‘teologia do genitivo’, que incorpora a política como um tema a mais na reflexão teológica. Também não é uma ‘teologia aplicada’, que tenta traduzir os princípios abstratos da fé à realidade política concreta. Não se identifica com a parte da teologia moral chamada “ética política”, nem com a corrente da “teologia social”, que segue o “evangelho social”.
É, muito mais, na expressão do próprio Metz, uma teologia fundamental do sujeito com caráter crítico-público e prático, que visa reconstruir a consciência cristã a partir de uma nova determinação das relações entre teoria e prática, razão e sociedade, religião e política, inteligência da fé e práxis histórica da emancipação, escatologia e compromisso, utopias históricas e esperança cristã, reino de Deus e história humana, futuro de Cristo e futuro humano.
A nova TP assume a virada antropológica das teologias existencial e transcendental precedentes, mas enfatiza o encolhimento da dimensão histórica, o esvaziamento da vertente sociopolítica e a desmundanização da fé que tais teologias realizam. Seu principal objetivo é fornecer uma razão prática para a fé cristã, mas não de maneira abstrata, ao contrário, tentando responder aos desafios de uma sociedade secularizada, que tende a privatizar as crenças e viver o cristianismo como uma religião burguesa.
A TP assume positivamente o fenômeno da secularização, considerada um elemento fundamental da fé bíblica e um acontecimento originalmente cristão. Não vê nela um perigo para o cristianismo, mas sua condição necessária para uma experiência autêntica e emancipadora do mesmo e para o seguimento de Jesus.
Contudo, reconhece que a secularização, em sua atitude, soltou a mão da religião, pretendendo eliminá-la indiscriminadamente das experiências humanas de sentido. A secularização demonstrou ser cega ou, ao menos, míope. Não teve discernimento suficiente para separar o núcleo da casca, para distinguir a bijuteria religiosa do potencial messiânico e utópico presente nas religiões, especificamente no cristianismo.
Metz critica, com razão, a redução racionalizante do Iluminismo burguês, que se caracteriza por uma “sobrecarga cognitiva do mundo abstrato das ciências modernas” e mostra uma insensibilidade ao mundo dos mitos e dos símbolos e a outros mundos não mediados pela racionalidade instrumental.
Critica também a redução privatizante, à qual o Iluminismo submete a teologia, dividindo a realidade em duas esferas: a pública e a privada, a imanente e a transcendente, a política e a religiosa, a terrena e a celeste, atribuindo à religião a esfera do privado e do transcendente.
Nas palavras de Metz, a TP “é guiada pela intenção de remover seu caráter privado do mundo conceitual teológico, da linguagem da pregação e da espiritualidade. Procura superar esse excessivo tom privado no falar de Deus, a obstinada contraposição entre existência espiritual e liberdade de crítica social”. Considera a vida pública e a ação política como mediações necessárias da verdade teológica.
Concebe o ser humano em sua vertente sócio-histórica, pública e política. A individualidade concreta do ser humano atual possui “uma subestrutura social e está condicionada e atualizada por ela”. A existência humana é experimentada no contexto social. Até as decisões mais pessoais estão condicionadas por tal contexto.
Entende o ser humano como um ser histórico em constante devir que constrói o mundo sob a primazia da práxis. Move-se no horizonte da razão prática, do uso público da razão, que Kant já havia anunciado. Por sua vez, concebe a fé cristã como uma realidade encarnada na história e aberta ao mundo. A fé cristã não é mitológica, tem seu fundamento em uma pessoa histórica: Jesus de Nazaré.
A fé não é puramente contemplativa, mas operativa. Não se orienta para o passado em uma atitude nostálgica, mas para o futuro em busca de alternativas. A esperança cristã é criativa. A caridade é verificada na ação transformadora das estruturas e das consciências. A fé não se dá no vazio ou na abstração, “é uma práxis dentro da história e da sociedade, que se concebe como esperança solidária no Deus de Jesus como o Deus dos vivos e mortos, que convida a ser sujeito em sua presença”. Na perspectiva cristã, o sujeito da fé é o eu, mas não isolado, como irmão. Consequentemente, a dimensão pública é consubstancial ao ser humano e à fé cristã.
A TP é apresentada como correção à gentrificação da religião e da própria teologia. Em outras palavras, opera como elemento crítico da religião e da teologia burguesa.
O ponto de vista da TP é o dos vencidos e das vítimas, a paixão de Cristo e dos crucificados da terra. Em uma palavra, a anti-história. A memória das vítimas não é uma operação ociosa de aprendizagem memorial, nem uma forma de tranquilizar nossa consciência instalada na amnésia coletiva da cultura do bem-estar. É um ato de solidariedade “para a frente”, “com a felicidade do neto”, como disse Benjamin. Mas, também “para trás”, “como o sofrimento dos pais”, como igualmente, com perspicácia, o próprio Benjamin apontou. É o reconhecimento da injustiça cometida com as pessoas inocentes, e o ato de reparação e reabilitação de sua dignidade humana.
Mas, as vítimas têm nomes específicos na TP de Metz.
No centro de seu pensamento teológico está, como uma foto fixa e um pesadelo inquestionável, Auschwitz, uma das obras humanas mais abomináveis, produto de nosso “racionalismo”, talvez o mais irracional de todos os produtos “racionais”. Mais ainda, a revelação do mal absoluto.
Auschwitz constitui uma interpelação a todo discurso filosófico ou teológico que pretenda exculpar Deus por toda a responsabilidade na existência das vítimas inocentes.
O próprio Metz conta como percebeu que não podia defender verdade alguma - nem filosófica, nem teológica - de costas para Auschwitz e de que não havia Deus algum para adorar e orar à margem de Auschwitz. A partir disso, afirma: “Tentei não continuar fazendo teologia de costas para os sofrimentos imperceptíveis – ou acobertados à força - do mundo: nem de costas para o holocausto, nem de costas para o chocante sofrimento dos pobres e oprimidos do mundo”.
O estímulo pessoal que o impulsionou a elaborar a TP foi justamente a necessidade de introduzir a voz das vítimas no logos da teologia. E as vítimas inocentes foram levadas ao matadouro, como o Servo de Javé, sem processo, sem julgamento, sem compaixão, “sem defesa, sem justiça”, arrancadas “da terra dos vivos” (Is 53, 8). Pode haver gente mais pobre? É a elas que a TP quer dar voz e reabilitar sua dignidade humana.
Contudo, a TP não para nas vítimas que sofreram em Auschwitz. Olha também - e faz isso com paixão, compaixão e solidariedade – para as vítimas de hoje, do neoliberalismo, pela fome, miséria, esquadrões da morte, terrorismo, guerras religiosas, violência do sistema, etc. Em sua metodologia, incorpora o grito dos pobres, dos marginalizados, dos excluídos, das maiorias populares que vivem em situação de extrema pobreza.
Reconhece que é justamente aí que reside o ímpeto e a vitalidade da teologia da libertação. Fixa-se nos rostos sofredores dos pobres e, interpelado por eles, se pergunta se os cristãos europeus podem enfrentar esses rostos tão carregados de dor e contemplar o hoje a partir da perspectiva dos vencidos. Esta é a melhor lição que o teólogo alemão Johann Baptist Metz nos deixa, após sua morte, como uma tarefa a ser colocada em prática.
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Johann Baptist Metz: a voz das vítimas na teologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU