06 Novembro 2019
“As cidades devem ser o laboratório onde a tecnologia deve se converter em uma aliada do humano. Uma área mensurável a partir da centralidade humana. Um espaço habitado pela ética pública que assuma, como aponta Richard Sennet, em Construir e habitar: Ética para uma cidade aberta (Editora Record), que a centralidade kantiana do conhecimento crítico e autoconsciente a serviço do ser humano é a medida de todas as coisas, começando pelos algoritmos que já administram nossa convivência”, escreve José María Lassalle, escritor, professor universitário e ex-secretário de Estado de Cultura (2011-2016) e também de Sociedade da Informação e Agenda Digital (2016-2018) da Espanha, em artigo publicado por Clarín, 04-11-2019. A tradução é do Cepat.
Construir uma ética digital para as cidades do século XXI é possível. As agendas municipais devem assumi-la, impulsionadas pela urgência de um mundo em que a tecnologia é uma ferramenta bidirecional: cívica ou distópica. A reflexão de Walter Benjamin sobre o duplo significado da modernidade é mais do que nunca uma realidade tão vibrante e acelerada que pode arremessar todos nós contra a parede do tempo real.
Até o momento, foram introduzidos gestos que anunciam uma vontade incipiente de mudança. Inclusive, foram colocadas em circulação iniciativas como a que, promovida por Francesca Bria e Malcolm Bain, há alguns meses, em Barcelona, supôs a aprovação de um manifesto em favor da soberania tecnológica e dos direitos digitais para os cidadãos.
Um projeto que se casa com as propostas desenvolvidas com o apoio da Comissão e que começam a ganhar forma, em uma fase piloto, por meio da chamada Aliança Europeia para a Inteligência Artificial, que iniciou seus primeiros passos, em agosto passado.
A Europa, portanto, parece reagir e começa a estabelecer limites éticos ao capitalismo de vigilância que, nas palavras de Shoshana Zuboff, já está entre nós, vestindo as roupas de um Ciberleviatã esboçado no Vale do Silício ou em Shenzhen. Um capitalismo de plataforma desumano e desigual que rompe as costuras políticas e institucionais das democracias liberais em todo o Ocidente.
Um modelo que destrói os fundamentos éticos da economia social de mercado, nascidos do pacto entre capital e trabalho que propiciou o Estado de bem-estar social. De fato, o colapso da história liberal que sofremos tem muito a ver com a erosão do status da classe média e com o enfraquecimento das conquistas políticas desenvolvidas desde a Revolução Francesa e sua criatura técnica: a revolução industrial.
Conforme passa o tempo, se confirma que, frente aos efeitos negativos que favorece a somatória revolução digital/mudança climática, uma das políticas possíveis é a política das cidades. Algo que está por trás da abordagem proposta pela Organização das Nações Unidas com a famosa Agenda 2030. Isso é explicado por Antoni Gutiérrez-Rubí, em GeocitiZens. Uma reflexão que aborda por que a cidade é a instituição idônea para gerenciar os riscos da pós-modernidade. Especialmente, quando se trata de abordar efetivamente o gerenciamento da complexidade mais imediata.
Esta circunstância reforça o papel das cidades, sobretudo porque as torna responsáveis pela primeira pele sobre a qual repercute a resposta política aos problemas que a globalização tecnológica e climática provoca. Uma resposta que atua com capacidade de interlocução direta e, sobretudo, com projeção operativa sobre os deslocamentos sociais e inclusivos que provocam os efeitos mais perversos da globalização.
Quando Bruno Latour se pergunta onde aterrissará a globalização, a resposta que deveria ser dada a ele é, sem dúvida, nas cidades. Elas são o espaço onde impactam mais seletivamente a desigualdade, o desemprego tecnológico, o desaparecimento das classes médias, a imigração não regulamentada, a mudança climática, a sustentabilidade, a mobilidade, a gentrificação, os radicalismos e a insegurança, entre outros desafios globais.
Por isso, elas devem ser o laboratório onde a tecnologia deve se converter em uma aliada do humano. Uma área mensurável a partir da centralidade humana. Um espaço habitado pela ética pública que assuma, como aponta Richard Sennet, em Construir e habitar: Ética para uma cidade aberta (Editora Record), que a centralidade kantiana do conhecimento crítico e autoconsciente a serviço do ser humano é a medida de todas as coisas, começando pelos algoritmos que já administram nossa convivência.
A Europa deve liderar essa aposta ética pelas cidades. São elas que devem protagonizar uma revolução humanística que dê significado cívico às ferramentas tecnológicas, a partir das quais a ruptura digital opere sobre a realidade. A partir de seu espaço, é possível estender uma membrana ética que preencha, com senso cívico, o vazio que monopoliza a convivência urbana.
A partir das cidades, podem ser criadas as condições para a esperada irrupção de uma nova geração de direitos fundamentais digitais.
E mais, devem protagonizar o esforço de promover uma nova civilização digital que altere os eixos prescritivos que o capitalismo de vigilância está desenvolvendo e modelando em cidades-tipo que respondem, seguindo Sennet, a cidades inteligentes que entontecem porque a pessoa se torna prescindível ao se dissolver em “bits digitais de necessidades e desejos atendidos por alguns monopólios”.
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Uma ética digital para cidades - Instituto Humanitas Unisinos - IHU