31 Julho 2019
Um ensaio de Karl Rahner, há 65 anos, previu o estado da Igreja atual e oferece um caminho a seguir.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix International, 30-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O número de católicos continua caindo na Alemanha. Mais de 216.000 deles decidiram “abandonar a Igreja” apenas no ano passado, deixando de pagar o imposto da Igreja determinado pelo governo.
Esse é apenas o último exemplo daquele que se tornou um padrão lento, mas constante, de deserções da Igreja Católica no mundo ocidental. Os membros batizados já começaram a abandonar na primeira metade do século XX, mas o fizeram em números ainda maiores nos últimos 60 anos.
Isso não significa que o cristianismo está desaparecendo. Mas, em quase toda parte, isso mostra que a Igreja está perdendo seu rígido controle sobre a fé.
É tentador imaginar o que o falecido jesuíta Karl Rahner (1904-1984) diria sobre isso.
O grande teólogo alemão, que foi uma figura importante no Concílio Vaticano II (1962-1965) e extremamente influente nas primeiras décadas seguintes, escreveu um ensaio de grande clarividência em 1954 sobre aquilo que ele chamou de “cristianismo da diáspora”.
Isso preanunciou em quatro anos a eleição de João XXIII (1958) e o “novo” anúncio chocante do papa, três meses depois, ao convocar o Concílio.
Agora, 65 anos depois, o ensaio de Rahner pode lançar muita luz sobre a nossa situação atual; isto é, a fase atual do catolicismo pós-Vaticano II no pontificado do Papa Francisco.
De fato, o artigo de 1954 de Rahner está no centro da última edição da respeitada revista teológica francesa Recherches de Science Religieuse. Ele se intitula “Fazer teologia no cristianismo da diáspora”.
Christoph Theobald, um jesuíta franco-alemão e um dos principais teólogos contemporâneos, é o editor deste volume em particular, que inclui vários artigos de vários autores. Em sua contribuição, Theobald explora modos de aplicar as intuições de Rahner sobre o cristianismo da diáspora à Igreja de hoje [disponível aqui, em francês].
Ele começa seu texto destacando que, além de representar uma minoria, a atual Igreja global também está passando por um processo de fragmentação e sectarização.
Além disso, essa Igreja está sendo confrontada pela pluralização cultural e pelo enfraquecimento das instituições. E está sendo forçada a lidar com mudanças estruturais sobre quem faz o que dentro da Igreja.
Tudo isso, diz Theobald, requer uma nova maneira de fazer teologia e de ser Igreja, parte do modo como entendemos a missão fundamental da Igreja.
Ele ressalta que a diáspora do cristianismo não é necessariamente uma catástrofe, porque não significa o desaparecimento da “espiritualidade”. Pelo contrário, o enfraquecimento das instâncias eclesiais, sociais e políticas que regulam o cristianismo podem permitir a emergência de novas correntes “religiosas” ou “espirituais”.
Em seu ensaio de 1954, Rahner chamou a diáspora de “uma necessidade inerente à história da salvação”, em vez de um acidente da história. Isso é pertinente ao atual pontificado e às tensões que ele trouxe à tona.
Rahner foi muito crítico do modelo da cristandade que dominou a relação entre Igreja, Estado e sociedade na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Ainda em 1954, ele via que, enquanto a Igreja Católica permanecesse institucional e teologicamente dominada pela Europa e pelo mundo ocidental, as contradições só seriam expostas a partir de fora.
Assim que a Igreja se tornar global, escreveu Rahner, as contradições surgirão dentro da própria Igreja sob a forma de uma aguda dissidência.
É nesse momento – quando a Igreja começa a ser uma Igreja de todos, porque se libertou da identificação com a Europa e o Ocidente – que ela também começará a ser uma Igreja em missão para todos.
Mas essa conversão de uma Igreja estabelecida do Ocidente para uma Igreja global em missão não ocorre automaticamente. É aqui que a reflexão de Theobald sobre como podemos aplicar as intuições de Rahner hoje toma um rumo prescritivo.
Theobald nos ajuda a conectar o lúcido prognóstico de Rahner de 1954 àquilo que está acontecendo com o Papa Francisco. Trata-se nada menos do que tentar criar espaço para um novo marco teológico e institucional em uma teologia da história. É aquela que não se queixa “política ou sociologicamente” da pluralização e da fragmentação da Igreja em nossas sociedades multiculturais e multirreligiosas, mas lê essa situação “teologicamente” à luz das Escrituras e da tradição.
Theobald diz que o primeiro passo para lidar com essa diáspora é o discernimento, que é diferente de uma autodefesa automática da instituição ou da cultura que a sustenta.
É uma afirmação e uma defesa da possibilidade da fé atravessar a crise atual, com base na inteligência da nossa própria situação e do mundo.
Isso significa ler “os sinais dos tempos” de um modo que inclua uma abordagem crítica ao mundo, mas também uma autocrítica.
O segundo passo para uma Igreja da diáspora é a aceitação da ideia de que a Igreja é uma minoria.
Isso significa rejeitar a tentação de “sensacionalizar” os obstáculos sempre presentes ao Evangelho; isto é, as forças antievangélicas em ação no nosso mundo e também na Igreja.
O sensacionalismo cria uma mentalidade de guerra, que, em si mesma, é uma contradição ao Evangelho.
O terceiro passo para uma Igreja da diáspora é repensar a relação entre a teologia acadêmica e a Igreja.
As Igrejas locais precisam se tornar protagonistas de um pensamento teológico que leve a uma reforma missionária das instituições.
Hoje existe uma grande lacuna entre a crescente fragmentação de uma profissão teológica hiperespecializada, por um lado, e a cultura vivida das comunidades cristãs, por outro.
Theobald fala da necessidade de uma “comunalização cristã da teologia” – uma nova parceria entre teólogos, lideranças da Igreja e comunidades.
Mas há uma série de desafios teológicos e institucionais que devem ser superados antes que esses três passos possam ser dados. O primeiro e mais importante desafio que Theobald identifica diz respeito ao conceito de tradição.
“As tradições hoje são entregues através de um ato de recepção, que é, ao mesmo tempo, um ato de recriação”, diz ele.
E, a fim de manter unida a complexidade e a unidade da tradição, ele diz que a constituição do Vaticano II sobre a revelação divina, Dei Verbum, constitui “o eixo interno de uma teologia que serve à uma Igreja da diáspora”.
O problema da tradição, de fato, surgiu durante o pontificado de Francisco.
Por exemplo, a insistência do papa em desenvolver a sinodalidade é outra maneira de descrever a necessidade de repensar o modo como se pode encontrar um consenso eclesial com base no “sensus fidelium”. Isso requer um novo equilíbrio, um novo centro daquele que é o significado de “ser cristão” hoje.
Essa não é apenas uma questão intelectual, mas também um desafio espiritual para todos os cristãos contemporâneos. Isso também significa equilibrar a virada global da teologia rumo a uma nova catolicidade e a necessidade de cultivar uma atenção particular às miríades de situações diferentes e particulares das comunidades individuais e grupos humanos.
Um segundo desafio é o papel da cultura. Rahner não evita o problema da “exculturação” – o fato de a sociedade ocidental ter se separado da cultura católica e cristã do modo como ela é articulada pelas instituições eclesiásticas.
Mas essa “exculturação” é constitutiva do cristianismo ou é um problema que pode ser resolvido? A Igreja pode sobreviver ao desaparecimento da cultura cristã em países historicamente cristãos? Ou, por outro lado, a cultura cristã pode se tornar um obstáculo para uma Igreja evangelizadora?
Em outras palavras, um catolicismo minoritário que é exculturado corre o risco de se tornar uma seita (entre muitas outras). Mas também tem o potencial de se tornar uma comunidade missionária significativa.
Um terceiro desafio para uma Igreja da diáspora implica uma “democratização da teologia” – uma expansão do número e dos tipos de cristãos que fazem o pensamento da Igreja.
Parte da hierarquia e do clero se opõe firmemente a isso, como podemos ver nas polêmicas preventivas contra a vindoura assembleia do Sínodo dos Bispos para a região pan-amazônica.
Os recentes debates sobre as mulheres e a pregação na Igreja são apenas uma pequena parte em um contexto muito maior sobre a necessidade de desclericalizar a Igreja em uma situação de diáspora.
A releitura feita por Theobald sobre o ensaio de Rahner de 1954 nos mostra a natureza abrangente da atual crise católica. Ela é institucional (o papel do sacerdócio, a formação para o ministério na Igreja), teológica (sexualidade e gênero), social (sectarização e fragmentação) e política (a política católica entre assimilação passiva e o neointegralismo).
Todos esses fatores nos apresentam um desafio que não pode ser separado da situação da diáspora – que não é o contrário da globalização da Igreja, mas, na realidade, o seu outro lado. “O maior desafio é a aceitação da contingência histórica da tradição cristã, que hoje precisa de uma recomposição global”, escreve Theobald.
Mas isso requer uma Igreja missionária que siga em frente em uma partilha vivida da experiência cristã com os nossos semelhantes. Também requer a elaboração de uma visão poliédrica da Igreja e novas formas de regular a identidade cristã.
Todo o debate em torno do pontificado de Francisco tem a ver com a dissonância na percepção da situação da Igreja.
Aqueles que veem a Igreja no contexto da diáspora e da globalização estão abraçando – ou pelo menos estão abertos ao – pontificado de Francisco. Mas aqueles que ainda acreditam que é possível retornar à era da cristandade não entendem por que há a necessidade de sacudir as coisas.
Essa dissonância se manifestou de maneira diferente em todo o mundo. A diáspora e a globalização da Igreja são muito mais evidentes em alguns países do que em outros.
Mas a condição de diáspora afeta todos os cristãos e todos os católicos, incluindo pessoas (como as dos Estados Unidos) para as quais a secularização chegou algumas décadas depois da sua estreia na Europa.
Os desacordos em torno do pontificado de Francisco também são uma questão de graus diferentes de prontidão para abandonar formas particulares de catolicismo da cristandade que sobreviveram até hoje: um pensamento teológico dominado por elites acadêmicas ou intelectuais europeias e ocidentais, e uma política eclesiástica governada por hierarquias clericais ou por leigos clericalizados.
Não há como voltar ao sistema criado nos séculos XI e XII, com uma forma de liturgia católica internacional, um modelo de clero unificado e um único cânone teológico.
A Igreja hoje está vivendo em um mundo muito diferente. Ela não pode voltar a uma era passada. Já passou, e ponto final.
Enquanto isso, a crise dos abusos sexuais e os escândalos financeiros que surgiram foram revelados graças ao fim da cristandade e aos efeitos da diáspora. Negar a diáspora e a globalização da Igreja pode facilmente se tornar apenas mais um modo de negar o escândalo.
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Diáspora e globalização da Igreja Católica. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU