03 Novembro 2019
“Em alguns dias, começará a visita ad limina dos bispos dos EUA e, quando ela terminar, em fevereiro, poderemos ter uma nova noção sobre qual é o vínculo entre a Santa Sé e o episcopado estadunidense”.
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University nos EUA, em artigo publicado por Commonweal, 29-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O vínculo entre Roma e as Igrejas locais em todo o mundo sempre foi crucial para o entendimento da Igreja Católica sobre si mesma como universal. Desde a época do Concílio de Trento, em especial, a visita ad limina apostolorum – a visita periódica dos bispos do mundo “aos limiares dos apóstolos” em Roma – tem sido uma das formas pelas quais a Igreja trabalha para assegurar a força desse vínculo.
Em alguns dias, começará a visita ad limina dos bispos dos EUA e, quando ela terminar, em fevereiro, poderemos ter uma nova noção sobre qual é o vínculo entre a Santa Sé e o episcopado estadunidense.
Afinal, não é que não haja polêmicas à espera da visita dos bispos. Ao longo do papado de Francisco, a dinâmica entre a Igreja dos EUA e Roma cresceu cada vez mais. O caso do ex-cardeal Theodore McCarrick e os subsequentes “manifestos” do ex-núncio Carlo Maria Viganò levaram as relações entre os bispos estadunidenses e o papado para um patamar ainda inferior. O fato de que duas dezenas de bispos manifestaram seu apoio a Viganò, sem se preocupar em defender o papa contra as infundadas acusações do ex-núncio, permanecerão por muito tempo como uma mancha na Igreja dos EUA.
E, como um número significativo de bispos estadunidenses continua ignorando ou rejeitando ativamente aspectos-chave das prioridades pastorais de Francisco – do “Quem sou eu para julgar?” à Amoris laetitia e à Laudato si’ –, é difícil saber se uma aproximação significativa será alcançada em breve.
O formato da própria visita ad limina pode oferecer algumas intuições sobre o que poderia acontecer. Ela mudou ao longo do tempo, até mesmo nas décadas que abrangem os papados de João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Antes, um continente nacional ou regional de bispos visitava a cada cinco anos, e agora visita a cada sete ou oito. Com Bento XVI, as reuniões pessoais entre o papa e os bispos visitantes foram descartadas em favor de sessões em grupo envolvendo cerca de dez bispos por vez (embora alguns cardeais e arcebispos ainda podiam ter reuniões individuais). Bento também se afastou do estilo do seu antecessor ao favorecer o diálogo mais do que usar a visita ad limina como um fórum para que as autoridades vaticanas dessem lições aos bispos visitantes.
Francisco não se reúne com os bispos individualmente; em vez disso, ele passa 90 minutos ou mais com cada grupo, respondendo perguntas e oferecendo conselhos. Ele também não faz um discurso formal – embora forneça o texto de um discurso. Da mesma forma, os bispos também preparam um discurso formal, mas apenas fornecem o texto. Nenhuma transcrição papal oficial das conversas é preparada; portanto, os únicos relatos daquilo que se fala vêm da imprensa.
Também pode ser útil relembrar os temas das conversas nas duas visitas ad limina anteriores, com João Paulo II em 2004 e com Bento XVI entre 2011-2012. Em 2004, a Igreja estadunidense já estava envolvida na crise dos abusos sexuais e havia promulgado a Carta de Dallas.
No entanto, no intercâmbio entre o papa e os bispos, a crise não foi abordada ou discutida como algo que, de fato, viria a definir a percepção da Igreja nos Estados Unidos na nossa época.
Em 2011-2012, os discursos de Bento refletiram uma nova ênfase dos bispos dos EUA sobre a liberdade religiosa, como demonstrado pela formação do Comitê Ad Hoc para a Liberdade Religiosa, em setembro de 2011, e pelo depoimento ao Congresso sobre o tema por parte dos bispos estadunidenses em outubro de 2011.
Ele tocou em vários temas-chave, desde a objeção de consciência sobre “questões da vida” até o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas também abordou questões intraeclesiais, como a dissidência do magistério. Ele também condenou o fracasso das faculdades e universidades católicas em cumprir os requisitos da Igreja, dizendo que os professores de teologia católica devem “ter um mandato da autoridade eclesiástica competente”.
Há também um cenário histórico que vale a pena ser lembrado: na época, as religiosas dos EUA foram alvo de duas investigações do Vaticano, e o novo núncio no país, o arcebispo Carlo Maria Viganò, acabara de chegar a Washington.
À medida que essa visita ad limina tem início, o representante papal em Washington é o arcebispo Christophe Pierre. Ele tem adotado uma abordagem muito diferente de Viganò para moldar as relações com os bispos dos EUA – necessariamente, dado o estado atual da Igreja dos EUA.
Ela não apenas se tornou mais dividida. Ela também inclui uma ala anti-Francisco cada vez mais radicalizada que não tem nenhum paralelo no restante do mundo. Ela está lidando com o desafio de uma secularização acelerada da sociedade e da cultura norte-americanas, incluindo a secularização entre os católicos latinos.
Quatro anos depois que o Papa Francisco viajou para os EUA, o impacto da sua visita parece insignificante, pelo menos nos bispos do país. E o discurso sem precedentes que ele proferiu ao Congresso praticamente foi esquecido desde a estreia da presidência cheia de escândalos, inclusive midiáticos, de Donald Trump.
No entanto, o papado de Francisco redefiniu amplamente as principais questões para a voz pública da Igreja Católica: reformulando as questões tradicionais (sexualidade, casamento, questões da vida) em um contexto mais amplo e destacando com uma radicalidade sem precedente questões como o cuidado da criação e os pobres.
Sobre a imigração, Francisco e os bispos dos EUA falam com uma voz comum, apesar da polarização política dentro da Conferência dos Bispos dos EUA (USCCB, na sigla em inglês). Enquanto alguns bispos parecem querer esperar que Francisco saia, outros têm se inspirado (ou têm sido forçados) a reconsiderar a sua missão.
Há uma grande parte da Igreja dos EUA que não desistiu de Francisco, e, portanto, a visita ad limina poderia ajudar a reenergizar a relação. Além disso, a USCCB elegerá o próximo presidente e vice-presidente em sua reunião de novembro em Baltimore, e, com recentes nomeações episcopais importantes (Washington) e outras ainda por vir (Filadélfia), o momento da visita ad limina parece auspicioso – talvez o suficiente para estimular um novo começo.
Então, o que esperar? É razoável que os bispos dos EUA esperem que o Vaticano valide os esforços deles no combate ao abuso sexual clerical. Apesar de todos os erros e equívocos da USCCB e dos bispos individuais, a Igreja dos EUA tem ajudado a Igreja global a enfrentar a crise.
A cúpula de fevereiro de 2019 sobre o abuso sexual no Vaticano não aconteceria sem a pressão dos EUA – não apenas dos bispos, mas também e especialmente das organizações de vítimas e sobreviventes, dos leigos, da mídia e do sistema de justiça.
Os bispos dos EUA também esperam que a Cúria implemente os novos regulamentos vaticanos para lidar com os abusadores sexuais e as falhas na supervisão do clero – especialmente do motu proprio Vos estis – e sinalize alguns esforços para diminuir a resistência de alguns dicastérios da Cúria em relação à abordagem de “tolerância zero” da Igreja dos EUA.
Por outro lado, ainda permanece uma lacuna entre Francisco e a USCCB na eclesiologia e no sensus ecclesiae – não apenas nas questões candentes, mas também na teologia e na prática da sinodalidade. À medida que outras Igrejas ao redor do mundo começam a adotá-la (a Alemanha com o seu “processo sinodal” nacional, a Austrália com seu conselho plenário de 2020-2021, a Irlanda com seus sínodos locais e até mesmo a Itália), a USCCB parece excepcionalmente resistente a esse aspecto-chave do pontificado de Francisco.
A sinodalidade tem a ver, acima de tudo, com a construção da comunidade. Mas o funcionalismo tecnocrático domina hoje a vida católica norte-americana – seja na assembleia dos bispos dos EUA ou nas reuniões de professores das universidades católicas. É impressionante ver as diferenças de estilo entre as reuniões semestrais da USCCB e o retiro de janeiro de 2019 dos bispos dos EUA em Chicago, para o qual Francisco “convidou” os bispos após o colapso das relações entre o episcopado e Roma no verão de 2018.
O que essa experiência diz sobre como a USCCB conduz os seus próprios encontros? Será que isso importa? As reuniões plenárias dos bispos dos EUA não deveriam ser, nem parecer, as reuniões de meros administradores, mas sim de lideranças de uma Igreja aprendendo a discernir espiritualmente, como uma comunidade de pastores.
E depois há a questão da substância: a USCCB encontrará a vontade de colocar nas pautas das suas reuniões os textos magisteriais do pontífice, como a Amoris laetitia, que recebeu muito menos atenção do que esforços vaporosos como a Fortnight for Freedom [Quinzena pela Liberdade]? Será que os bispos podem se permitir se submeter a uma conversa mais extensa sobre assuntos mais importantes do que as fixações do filósofo-pop Jordan Peterson – como, por exemplo, a ameaça existencial representada pelas mudanças climáticas e como os jovens podem ser evangelizados pela preocupação da Igreja com a nossa casa comum?
Em sua carta de janeiro de 2019 aos bispos dos EUA para o retiro de uma semana em Chicago, Francisco escreveu: “A perda de credibilidade também levanta dolorosas questões sobre o modo como nos relacionamos. Claramente, um tecido vivo se desfez, e nós, como tecelões, somos chamados a consertá-lo”. O chamado para consertar também deve ser a ideia que molda a próxima visita ad limina.
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Bispos dos EUA viajam para reuniões com o papa em Roma: como tecnocratas? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU