10 Novembro 2018
“Em nome das crianças vítimas, das famílias despedaçadas, dos pais e mães que não conhecem o fim da sua agonia, do corpo de Cristo sujeito à humilhação implacável há décadas, isso tem que acabar. Desta vez, tem que ser diferente. Nós rezamos por vocês.”
Publicamos aqui a carta aberta dirigida aos bispos dos Estados Unidos, publicada pela equipe editorial do jornal estadunidense National Catholic Reporter, 09-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o editorial, "O ponto para além de qualquer controvérsia é que estamos em um momento na história da Igreja dos Estados Unidos – e talvez na história da Igreja global – sem precedentes. Não se trata de assuntos discutíveis – o celibato, ou a cláusula filioque, ou o primado das Escrituras, ou se a Terra é o centro do universo, ou se as mulheres devem ser autorizadas à ordenação, ou qualquer uma das questões candentes que nos mantiveram trancados nas gargantas uns dos outros nessas últimas décadas".
"Ao contrário, continua o editorial - trata-se de uma podridão no coração da cultura incumbida pela liderança da comunidade católica. Uma podridão tão profunda que tocou todos os aspectos da vida da comunidade, rompendo todas as certezas e presunções sobre quem nós somos e sobre quem vocês são, que ajudaram a manter essa comunidade unida".
Caros irmãos em Cristo, pastores, companheiros peregrinos,
Dirigimo-nos a vocês enquanto vocês se aproximam da reunião nacional deste ano em Baltimore porque sabemos que não há mais onde se esconder.
Acabou.
Todas as manipulações e contorções dos últimos 33 anos, todas as tentativas de desviar e equivocar – tudo isso levou a Igreja, mas especialmente vocês, até este momento.
Acabou.
Até os policiais federais estão agora no rastro de vocês. Eles ordenaram que vocês não destruam quaisquer documentos. O Departamento de Justiça está conduzindo uma investigação criminal nacional sobre como vocês lidaram com o escândalo dos abusos sexuais do clero. É um ponto da nossa história sem precedentes. Nós queremos que vocês saibam que não estão sozinhos neste momento, vocês não foram abandonados. Mas, desta vez, deve ser diferente. Desta vez, não vai ser fácil.
Da fábula ao texto sagrado, sabemos como isso continua. Chega-se ao ponto em que todos percebem que o rei está nu, que os acusadores justos leem os escritos na areia e desaparecem, que as autoridades religiosas recebem as repreensões mais pungentes do Mestre. Como uma classe de governantes religiosos, os mais audíveis entre vocês se tornaram muito bons em aplicar a lei e reivindicar a autoridade divina para marginalizar aqueles que transgridem os estatutos. O prolongado escândalo dos abusos, no entanto, sugeriria que vocês não se saíram muito bem ao avaliarem vocês mesmos.
Não temos nenhuma intuição especial sobre por que este momento – o relatório do Grande Júri da Pensilvânia, a queda de Theodore McCarrick – capturou tanto a imaginação pública e empurrou a Igreja até este limite externo de exposição e vulnerabilidade. Existem teorias, entre as quais a de que oportunistas estão tentando usar este momento para derrubar o único papa que realmente destronou bispos e um cardeal devido a seus crimes e indiscrições.
Mas esse é um problema para outro momento.
A realidade, todos nós sabemos, é que isso vem acontecendo há muito tempo. O primeiro relato nacional apareceu ao longo de quatro páginas desta publicação no verão de 1985 [disponível aqui, em inglês]. O pior ocorreu durante o pontificado do apressadamente santo João Paulo II, um gigante no cenário mundial, mas um pastor que deixou os lobos vagarem em seu próprio rebanho. Seu conceito idealizado de sacerdócio heroico aparentemente tornou-o incapaz de ouvir a verdade das testemunhas confiáveis, incluindo os poucos bispos que ousaram perturbar aquele mundo idealizado com relatos perturbadores. Ele promoveu até o fim Marcial Maciel Degollado, fundador da Legião de Cristo e uma persona que passou a representar o pior do escândalo dos abusos. Maciel, um bajulador talentoso, manteve qualquer exame minucioso sob controle com a sua capacidade de espalhar muitos jovens padres e muito dinheiro por todo o Vaticano.
O ponto para além de qualquer controvérsia é que estamos em um momento na história da Igreja dos Estados Unidos – e talvez na história da Igreja global – sem precedentes. Não se trata de assuntos discutíveis – o celibato, ou a cláusula filioque, ou o primado das Escrituras, ou se a Terra é o centro do universo, ou se as mulheres devem ser autorizadas à ordenação, ou qualquer uma das questões candentes que nos mantiveram trancados nas gargantas uns dos outros nessas últimas décadas.
Ao contrário, trata-se de uma podridão no coração da cultura incumbida pela liderança da comunidade católica. Uma podridão tão profunda que tocou todos os aspectos da vida da comunidade, rompendo todas as certezas e presunções sobre quem nós somos e sobre quem vocês são, que ajudaram a manter essa comunidade unida.
Aqueles que trabalharam tão ardentemente no passado para capacitá-los – os fiéis, tão traídos, que simplesmente não podiam acreditar que vocês se envolveriam em um encobrimento tão deliberado; tipos como George Weigel e sua hagiografia cega e acrítica do Papa João Paulo II; a Dra. Mary Ann Glendon e o falecido Pe. Richard John Neuhaus e a sua ingênua comemoração e defesa de Maciel; o restante do coro na First Things e em publicações afins; o silêncio revelador de tantos outros meios católicos; o absurdo do charlatão William Donohue e da sua tola Liga “Católica” – ajudaram a sustentar a fraca narrativa de vocês, enquanto muitos deles difamavam aqueles que levantavam as questões difíceis e buscavam a verdade.
Acabou.
Nenhum deles tem ainda um argumento persuasivo a oferecer. Alguns deles tentam agora pôr a culpa da crise nos padres gays. Vocês podem ser tentados a se agarrar a essa distração, mas isso só prolongará a já intoleravelmente longa agonia.
Padres e bispos homossexuais certamente estão entre nós – provavelmente uma porcentagem maior de gays no clero católico, se é que se pode acreditar na evidência anedótica e na tagarelice privada dos reitores de seminários e dos superiores de ordens, do que se poderia encontrar na população em geral.
A cultura do clero está em profunda necessidade de uma conversa e de uma educação sérias sobre essa questão, e muito mais sobre a sexualidade. Essa discussão é improvável em qualquer escala significativa, porque muitos bispos e muitos padres, se fossem honestos, teriam que admitir uma orientação que a Igreja ainda chama de “desordenada”. A menos que a esmagadora maioria dos especialistas confiáveis tenha subitamente invertido a sua compreensão das coisas, a orientação sexual não é um dos tópicos que estão ligados ao abuso sexual.
A orientação não é um fator determinante no abuso de crianças. Se fosse, teríamos que investigar a orientação heterossexual como causa, porque grande parte dos abusos são perpetrados por homens heterossexuais contra meninos e meninas. Então, tomem esse caminho se quiserem, mas estejam preparados para perder qualquer pingo de credibilidade que ainda possa existir.
Acabou.
Vocês buscaram refúgio em uma cultura que há muito tempo os protege das consequências dos seus piores instintos. As fronteiras que antes mantinham a cultura de vocês a salvo do exame tornaram-se tão irrelevantes hoje quanto os fossos e os muros dos séculos anteriores. Não há mais onde se esconder. Vocês se embeberam dos excessos do poder, da autoridade e do privilégio que se acumularam ao longo dos séculos e, assim como o viciado que chega ao fundo do poço, uma decisão fundamental para a recuperação é essencial para a sobrevivência de vocês.
Acabou.
Vocês chegaram ao fundo do poço não porque o último fluxo de más notícias resultou de uma decisão de fazer limpeza e de dizer a verdade. Ele resultou de mais uma investigação. Em suma, vocês foram movidos a palavras de contrição porque, mais uma vez, vocês foram pegos. Sim, grande parte disso é notícia velha. Sim, o encobrimento foi planejado principalmente por bispos que não estão mais no cargo ou que morreram. As organizações noticiosas que antes relutavam em denunciá-los por medo de serem rotuladas como anticatólicas não estão mais reticentes.
Vocês se tornaram uma espécie de “caça-cliques”. E vocês continuarão a sê-lo enquanto, diocese após diocese, mais documentos estão sendo divulgados e revelados, e mais juris estão examinando o funcionamento interno dessa instituição ao longo dos últimos 50 anos ou mais. É uma dor autoinfligida.
E, por favor, parem de afirmar que vocês não sabiam o que estava acontecendo antes de 2002. Se o escândalo explodiu em 2002, foi porque um longo pavio já havia provocado explosões cidade após cidade, e Estado após Estado, e foi amplamente divulgado por 17 anos antes de a faísca atingir Boston.
No rescaldo dessas explosões, vocês estavam tão certos do que estava acontecendo e das suas possíveis consequências que empregaram legiões de advogados, em nível individual e corporativo. Vocês sabiam o suficiente para manter os arquivos secretos fechados e trancados. Vocês sabiam que eles continham coisas tão ruins que tinham que escondê-los.
Acabou.
Não há como negar que vocês fizeram muito para se ajustar às más notícias. Vocês elaboraram um documento para proteger a juventude (é justo notar que vocês levaram 16 anos para pensar em se incluir entre aqueles que deviam ser responsabilizados). Vocês instituíram um escritório nacional, pagaram estudos elaborados, instituíram conselhos de revisão nacionais e locais, realizaram ritos de reconciliação e exigiram o treinamento de proteção infantil e a verificação de antecedentes, e pagaram bilhões em indenizações.
A Igreja é indiscutivelmente um lugar mais seguro para as crianças devido a todo esse esforço. Mas tudo foi feito como reação a forças externas.
A única coisa que vocês não podem ser forçados a fazer é aquilo que vocês diriam que a nossa tradição sacramental exige: um profundo exame pessoal, dizendo a verdade, implorando o perdão e decidindo-se a corrigir e melhorar.
O exame começa com a pergunta que só vocês podem responder, individualmente e em grupo: como é que nós e os nossos irmãos no passado, como lideranças dessa cultura clerical, chegamos ao ponto em que pudemos pensar em dar as costas às crianças que tinham sido torturadas sexualmente pelos nossos padres para proteger esses mesmos padres e a nossa cultura?
Um dos seus irmãos, o cardeal de Chicago, Blase Cupich, já deu alguns passos apropriados. Os bispos devem “ceder autoridade”, disse ele, para permitir uma maior prestação de contas perante a autoridade externa. Ele também disse que “privilégio, poder e proteção de uma cultura clerical” têm que ser “erradicados da vida da Igreja” ou “todo o resto é secundário”.
Esses são pontos dignos de serem considerados. O retiro que vocês têm agendado para janeiro seria o lugar perfeito para fazer isso como um só corpo. Uma sugestão: participem com traje civil e deixem todos os ornamentos, os colarinhos e os ternos pretos, toda a seda, as rendas e as cruzes peitorais em casa. Deus irá reconhecer vocês. Deem esse pequeno passo em humildade e realmente se encontrem como irmãos. Procurem aqueles entre vocês que sofreram, que conheceram o que significa passar pela dor, pelo vício ou pela doença. Peçam-lhes para ajudá-los a sair desse momento sombrio. Eles saberiam o caminho.
Quando tiver acabado (e aqui fazemos uma sugestão que contraria o interesse jornalístico), fiquem quietos. Não façam grandes pronunciamentos.
Nos meses que se seguirão, enquanto a investigação federal provavelmente tiver exposto mais documentos e aquele estopim aceso continuar provocando explosões, alguns de vocês podem pagar caro por aquilo que fizeram ou deixaram de fazer no passado. Nós saberemos como foi o retiro de vocês pelo modo como vocês agirão nesses momentos.
Nós saberemos se vocês foram até o fim e estão se corrigindo com os melhores interesses da comunidade no coração ou se ainda estão em busca de uma graça barata e do caminho mais fácil.
Acabou.
Em nome das crianças vítimas, das famílias despedaçadas, dos pais e mães que não conhecem o fim da sua agonia, do corpo de Cristo sujeito à humilhação implacável há décadas, isso tem que acabar. Desta vez, tem que ser diferente.
Nós rezamos por vocês.
Suas irmãs e irmãos, seus companheiros peregrinos, a Igreja.
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Carta aberta aos bispos dos EUA: acabou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU