18 Fevereiro 2019
O outro sapato de Theodore McCarrick finalmente caiu no sábado, quando ele foi formalmente demitido do estado clerical, ou, para usar o jargão coloquial, “exonerado”. Ele já era um ex-cardeal; agora ele também é um ex-padre.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 17-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O veredito foi expressado em um breve comunicado vaticano indicando que McCarrick havia sido considerado culpado de “solicitação na Confissão e violações do Sexto Mandamento do Decálogo com menores e adultos, com o agravante do abuso de poder”.
Em julho, o Papa Francisco aceitou a renúncia de McCarrick do Colégio dos Cardeais, depois de ter sido retirado do ministério, acusado de abusar sexualmente de um coroinha de 16 anos de idade décadas antes, enquanto atuava como padre em Nova York, uma acusação que McCarrick negou.
Desde então, pelo menos duas outras acusações de abuso de menores surgiram, junto com acusações de má conduta sexual com seminaristas e padres adultos. Tudo isso vem acompanhado de indicações de abuso de poder, já que em praticamente todos os casos McCarrick tinha autoridade direta ou indireta sobre a outra parte.
A laicização é a pena mais severa da lei da Igreja para um clérigo, e não há dúvida de que as vítimas de McCarrick e outros indignados com os escândalos vão obter alguma satisfação ao vê-lo sendo responsabilizado.
No entanto, seria terrivelmente prematuro nesta fase dizer que o espetáculo acabou. O Vaticano pode ter desejado que o caso McCarrick acabasse antes de Francisco abrir uma cúpula de presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo e outras altas autoridades na próxima quinta-feira, mas há pelo menos quatro outras dimensões que, coletivamente, sugerem que as consequências do escândalo McCarrick continuarão assombrando o Vaticano e a Igreja dos EUA por algum tempo.
As quatro dioceses dos EUA em que McCarrick atuou durante a sua longa carreira – Nova York; Metuchen, Nova Jersey; Newark; e Washington – estão conduzindo investigações separadas, como resultado do fato de que um pedido das lideranças da Conferência dos Bispos dos EUA por uma investigação apostólica promovida pelo Vaticano foi recusado por Francisco.
Ainda é muito cedo para dizer o que essas sondagens poderão descobrir, mas pelo menos é possível que elas identifiquem outras vítimas além daquelas que já se apresentaram. Isso faria pouca diferença em termos do status eclesiástico de McCarrick, já que ele obviamente não pode ser destituído mais de uma vez, mas certamente contribuiria para o registro histórico do escândalo.
Além disso, essas investigações também poderiam constatar que outras figuras do sistema – tanto clérigos quanto leigos potencialmente – sabiam da má conduta de McCarrick – ou, pelo menos, deveriam saber – e falharam em agir. Se esse for o caso, a questão, então, se tornaria que tipo de responsabilização será imposta.
No dia 6 de outubro, o Vaticano emitiu uma declaração indicando que Francisco ordenou um “estudo acurado” dos arquivos do Vaticano relacionados a McCarrick, em um esforço para responder à pergunta de um milhão de dólares no centro do caso: quem sabia o quê, quando soube e por que falhou em agir?
O veredito de sábado equivale à responsabilização pelos crimes de abuso sexual cometidos por McCarrick, mas essa não é a única parte do drama que incomodou as pessoas. Desde o início, houve também uma questão de como ele conseguiu permanecer no pináculo do poder da Igreja Católica por mais de 20 anos, apesar dos persistentes rumores de que algo estava errado.
“Tanto o abuso quanto o seu acobertamento não podem mais ser tolerados, e um tratamento diferente para os bispos que os cometeram ou os encobriram representa, de fato, uma forma de clericalismo que não é mais aceitável”, dizia o comunicado do dia 6 de outubro.
O Vaticano prometeu que os resultados da revisão seriam comunicados “no tempo devido”, mas até agora não houve nenhuma atualização. Até que essa revelação chegue, é duvidoso que alguém considere que a história de McCarrick está encerrada.
Talvez, uma das razões pelas quais não se soube mais nada dos resultados do estudo vaticano seja a sensibilidade política daqueles cuja reputação pode ser prejudicada.
A declaração do dia 6 de outubro parecia antecipar essa possibilidade, dizendo: “A partir do exame dos fatos e das circunstâncias, poderiam emergir escolhas que não seriam coerentes com a abordagem atual para tais questões”.
Para ser preciso, a preocupação desde o início é de que o Vaticano possa entrar em curto-circuito em seu exame de consciência, porque poderia acabar lançando uma sombra sobre São João Paulo II, pois foi sob seu comando que McCarrick foi nomeado tanto arcebispo de Newark quanto, depois, arcebispo de Washington.
Especificamente, há muito se especula que os principais assessores de João Paulo II favoreceram a ascensão de McCarrick ao poder – incluindo o cardeal Stanislaw Dziwisz, padre-secretário e confidente de João Paulo II, que valorizava o apoio que McCarrick fez ao movimento Solidariedade na Polônia. A teoria é que esses arquitetos do papado de João Paulo II optaram por não olhar muito de perto para os pontos de interrogação sobre McCarrick, porque ele era útil para eles em outras áreas.
A questão, portanto, é se o Vaticano de Francisco está disposto a seguir o rastro de McCarrick aonde quer que ele leve, independentemente de qual legado esteja em risco.
Uma questão que os católicos em outras partes do mundo podem muito bem se perguntar é por que a mídia – e, aliás, o Vaticano – está investindo tanto tempo e energia no caso McCarrick, quando há outros escândalos, sem dúvida ainda mais irritantes, que também merecem uma atenção cuidadosa.
Um exemplo de destaque é o Chile, que viveu uma crise de abusos em uma escala que é basicamente sem precedentes em qualquer lugar do mundo, e onde o próprio papa acusou os bispos do país de acobertamento, incluindo a destruição de provas. No entanto, não há nenhum clamor equivalente da mídia ou da opinião pública, e nenhuma ação similarmente draconiana do Vaticano.
Francisco é lendariamente um papa das periferias, o que torna especialmente irônico que a sua ação mais dramática sobre os escândalos de abuso até agora tenha ocorrido nos Estados Unidos, basicamente a definição de dicionário de “centro”.
Na noite passada, Peter Isely, um sobrevivente de abusos, assim como psicoterapeuta e membro fundador do grupo de defesa Ending Clergy Abuse, conversou com o Crux sobre as suas esperanças para a cúpula do papa desta semana. Em suma, seus comentários sugerem que a exoneração de McCarrick, por mais complicada que seja, na verdade, pode ter sido a parte fácil para Francisco e sua equipe.
“Por que o [Papa Francisco] está encobrindo pessoas que encobriram esses crimes? Esse é o problema”, disse Isely.
“Ele terá tempo durante a cúpula. Se ele ouvir os sobreviventes e ouvir as pessoas, e ver isso acontecendo, talvez ele possa repensar e reconsiderar isso”, afirmou.
Saberemos em breve se essa reconsideração ocorrerá – porque, no fim, a questão em aberto do caso McCarrick é precisamente o encobrimento, e não o crime.
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Apesar da demissão, a saga McCarrick ainda não acabou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU