11 Outubro 2019
“Francisco é profético, mas com ele é preciso uma linha de comando e de organização clara que se comunique com o interior (a Igreja) e com o exterior (a não Igreja) de maneira compreensível para ambos, mas distinta.”
O artigo é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China. O artigo foi publicado por Settimana News, 08-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na Ásia, pátria de 60% da população mundial, até pouco tempo atrás, o papa e a Igreja Católica eram uma entidade esotérica. Majoritária apenas nas Filipinas, que, na realidade, são uma extensão da América Latina na Ásia, no restante do continente eles eram uma entidade semidesconhecida. Estrangeiros, conectados a escolas e obras beneficentes, e estranhos à vida da grande maioria da população.
Com a chegada do Papa Francisco, Jorge Mario Bergoglio, isso está começando a mudar. Vê-se que o papa é ativo em grandes questões que interessam a todos: pobreza, imigração, ecologia, diálogo entre as religiões. Ele está presente em grandes jogos geopolíticos, como a abertura da China. As suas declarações não se limitam aos boletins paroquiais, mas são frequentes manchetes dos jornais de todo o mundo. Ele tem o dom de conseguir falar ao coração dos homens e das mulheres, fiéis ou não; as pessoas se sentem tocadas por aquilo que ele diz.
Isso é muito evidente na Ásia e parece verdade em uma medida diferente em todos os cantos do planeta. Bergoglio é o primeiro papa global, que saiu das fronteiras dos debates católicos ou até dos debates entre os cristãos ou entre religiões monoteístas. Não é preciso ser batizado ou rezar diante de uma cruz para se interessar pelas suas palavras. Um sucesso na história da Igreja que, depois de ter “conquistado” o império romano e os bárbaros do norte da Europa, havia se fechado progressivamente. Mas aqui também existem os problemas presentes e talvez também alguns futuros.
O interesse pelo papa e por tudo o que ele diz nivela pela primeira vez de modo imediato a comunicação e o debate interno com o debate externo, isso também graças às novas mídias mais universais e imediatas. Só que os dois planos, interno e externo, são muito diferentes e também deveriam ser abordados de modo diferente.
O papa e a Igreja enfrentam desafios internos.
Por um lado, existe aquilo que poderia ser definido em termos políticos de liberalismo. Ele se concentra na esfera sexual, mas não só. Diz respeito ao tema das mulheres padres, à homossexualidade que quer uma maior afirmação, ao matrimônio dos sacerdotes etc.
Por outro lado, existe aquilo que definiríamos como tradicionalismo – a necessidade de conservar a Igreja do passado e os milênios de continuidade cultural.
Ambas as tendências, que em alguns lugares, como nos Estados Unidos, são traduzidas em termos políticos de “direita” e “esquerda”, têm a ver com o enraizamento da Igreja no Ocidente e em certos modelos de pensamento ocidentais (sejam progressistas ou conservadores).
Até poucos anos atrás, esses temas eram praticamente esotéricos, curiosidades bizarras, até porque o debate ocorria a golpes de citações em latim de textos medievais. Pouquíssimos hoje conseguem acompanhá-las, e certamente não aqueles que, em todo o mundo, se comovem com as palavras ouvidas de Francisco sobre os temas do dia.
Na realidade, porém, precisamente porque o papa fala para todos, tais vexatae quaestiones (para entrar no assunto), que na realidade começam desde o Concílio Vaticano II, também se tornam de domínio público e atraem, com justiça, a atenção geral.
O impulso externo. Para além dos assuntos internos, existem os externos. O papa deu um novo impulso social, enfatizando o ambiente, a pobreza, as migrações, a exploração do trabalho.
Existe um desafio geopolítico: diálogo com outros grupos cristãos (ortodoxos e protestantes), com os muçulmanos (o que objetivamente retém a deriva extremista, tanto do mundo islâmico quanto do mundo cristão) e rumo à Ásia e à África, onde o papa tinha sido marginal ou desconhecido por séculos.
Nisso, a contribuição da Igreja para a paz do mundo e para a reconciliação de problemas sociais e políticos no globo é enorme. Porém, isso realmente cria atritos entre a Igreja e os grupos de poder de todos os tipos, com agendas diferentes e concorrentes com as do papa.
Isso pode gerar um diálogo e um debate positivo ou, vice-versa, criar choques mais ou menos evidentes em oposição ao papa e à Igreja. Esses elementos externos se misturam com os elementos e os dissídios internos de várias naturezas, em uma combinação difícil de seguir, e encontram o ponto de interseção na pessoa do papa, ao mesmo tempo ponto de chegada e de partida de questões internas e externas.
Isso leva a duas ordens de problemas. A solidão do papa aumenta se não houver a unidade da Igreja com o papa; nesse ponto, a Igreja se divide, e se diz adeus a 2.000 anos de tradição católica romana e também às perspectivas de renovação da própria Igreja.
Portanto, sem dúvida, haverá milhares de motivos teológicos para ver se o papa, na gestão dos problemas internos ou ao se expor para fora, está saindo da linha; e o suporte teológico é fundamental para a Igreja.
Mas aquilo que o papa vê, diz e faz não pode ser reduzido dentro dos limites da teologia, assim como a fé de Cristo nos tempos de Paulo não podia ser reduzida dentro dos limites da tradição judaica: ela atravessava todas as tradições judaicas e também se abria aos não judeus.
Nisso, a Igreja deve reencontrar o espírito da unidade com o papa. Além disso, a Igreja deve se mover através de uma das suas grandes forças, a sua organização, os sacerdotes, as freiras, os fiéis, como o próprio Francisco enfatizou recentemente.
A China inventou a burocracia. Nos seus excessos, ela certamente é uma corrente no pescoço das pessoas, mas, quando funciona, é um serviço inigualável, eficiente e positivo. Portanto, é verdade que o clericalismo sufoca e mata a Igreja, mas também é verdade que os sacerdotes, as freiras, os leigos que trabalham para a Igreja são a sua enorme força. Eles devem permanecer unidos ao papa; desse modo, devem falar e, nesse falar, enfrentam e superam problemas internos e externos.
Além disso, há um problema de comunicação sofisticada. O papa é bem-sucedido porque fala ao coração dos homens e das mulheres, levando a Igreja no colo, mas sem tê-la na boca todos os minutos. A partir disso, talvez, também nasça uma ideia: é extremamente difícil falar do mesmo modo com crentes e não crentes. É verdade que o nó é inevitável, mas talvez seria preciso pensar em falar de coisas da Igreja de modo compreensível para quem não está na Igreja, para além do jargão interno mais ou menos teológico.
Isso leva a riscos para o futuro. No século XVI, os jesuítas realizaram uma operação estratégica extraordinária: ignoraram o cerco objetivo de protestantes e muçulmanos. Assim, mesmo sendo espanhóis, alinharam-se com o papa e nem sempre foram totalmente alinhados com o rei da Espanha, e chegaram a todos os lugares do mundo. No século XVII, tinham cabeças de ponte importantes por toda a parte, até mesmo nos lugares mais proibidos. É o caso da famosa missão na China iniciada por Matteo Ricci. No século seguinte, o XVIII, os jesuítas foram dissolvidos.
Isso certamente ocorreu por causa da inveja interna e dos ódios externos, mas também porque eles não conseguiram transformar as cabeças de ponte em realidades amplas e concretas. Em termos militares, que talvez teriam agradado a Santo Inácio de Loyola, os jesuítas eram comandos, mas depois deveriam ter chegado as tropas encouraçadas e os infantes, armas diferentes com funções diferentes, para alargar a cabeça de ponte e também mudar a natureza da presença no território.
Em outras palavras, e de maneira simplista, mas útil para os rápidos tuítes aos quais estamos nos acostumando, Francisco é profético, mas com ele é preciso uma linha de comando e de organização clara que se comunique com o interior (a Igreja) e com o exterior (a não Igreja) de maneira compreensível para ambos, mas distinta. Tal distinção é fundamental para “dominar” de maneira secular, no mundo externo, a comunicação e o “avanço do programa”; caso contrário, tais agendas serão dominadas por agentes externos que, de boa ou má-fé, podem empurrar a Igreja para direções diferentes das desejadas pelo papa.
Por isso, parece que, quando o papa fala da sua solidão, ele vê um problema real, não só humano, existencial, a ser resolvido com a oração dos fiéis. Por isso, ofereceremos ao Santo Padre esta reflexão, que não é uma oração, mas gostaria de ser uma obra beneficente.
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Papa, Evangelho e geopolítica. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU