28 Setembro 2019
O dominicano Timothy Radcliffe publicou um novo livro, “Una verità che disturba. Credere al tempo dei fondamentalismi” [Uma verdade que perturba. Crer no tempo dos fundamentalismos, em tradução livre] (Ed. Emi).
Nesse ensaio, Radcliffe investiga a relação entre a fé e a cultura atual através de algumas temáticas (a palavra de Deus, a vida religiosa, a esperança, os populismos) e algumas grandes figuras da Igreja, como Oscar Romero, São Domingos, Bartolomeu de Las Casas, Marie-Dominique Chenu.
“Toda boa conversa pressupõe o prazer da diferença e toma direções inesperadas.”
Radcliffe foi Mestre Geral da Ordem Dominicana de 1992 a 2001, é professor de Sagrada Escritura da Universidade de Oxford e renomado estudioso da Igreja e da sociedade contemporânea.
O artigo foi publicado por Avvenire, 26-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Escutar a palavra de Deus não significa absorvê-la passivamente. De acordo com a Dei Verbum, significa engajar-se no diálogo de Deus com a humanidade. “Em virtude desta revelação, Deus invisível, na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele” (n. 2). Na Verbum Domini, o Papa Bento XVI escreveu: “A novidade da revelação bíblica consiste no fato de Deus Se dar a conhecer no diálogo, que deseja ter conosco” (n. 6).
A vida de Deus é um eterno diálogo entre o Pai e o Filho no Espírito. A Revelação é o convite que Deus nos dirige para nos sentirmos sempre em casa, naquela eterna e amorosa conversa, não é receber mensagens do espaço com os exegetas que tentam desesperadamente decifrar estranhos sinais como fazia o matemático Alan Turing no Bletchley Park. A Revelação significa ser absorvido naquele eterno diálogo que é a vida de Deus.
Portanto, é extremamente apropriado afirmar que a palavra de Deus se faz carne no diálogo com o ser humano. O Evangelho de João, por exemplo, é uma sucessão de conversas – do diálogo de João Batista com os sacerdotes e os levitas até a conversa final de Jesus com Pedro na margem do lago. Na noite antes de morrer, ocorre aquele que costumamos chamar de “discurso da despedida”, mas, na realidade, é o último diálogo que Jesus tem com os seus amigos. É Pilatos quem encerra a conversa com um “o que é verdade?”.
A Palavra é silenciada. Mas a conversa retoma quando Maria de Magdala encontra Jesus no jardim. Não é por acaso que os primeiros documentos cristãos não eram livros ou profissões de fé, mas sim cartas de São Paulo: a outra metade das suas conversas com as pessoas. Ler Paulo é como escutar alguém falando ao telefone e tentar imaginar o que o interlocutor está dizendo do outro lado da linha.
Por isso, a palavra de Deus não se dirige a nós com uma pureza imaculada que precede as nossas interpretações. Não podemos voltar aos autores bíblicos em busca da verdade crua, de uma palavra nua. Os defensores da Reforma diziam: “Esqueçam, abandonem a tradição que a corrupta Igreja Católica acrescentou, voltem à pura palavra da Bíblia!”. Depois, no século XIX, os estudiosos começaram a dizer: “Atenham-se à Bíblia, ao carpinteiro da Galileia... Atenham-se a Paulo, que inventou o cristianismo. Fiquem com os evangelistas: cada um têm a sua própria agenda. Voltem à pura mensagem, antes que ela seja distorcida pelas nossas respostas”.
Mas, desse modo, cada um encontrou o Jesus que amava encontrar. O historiador judeu Geza Vermes nos fez voltar a um Jesus que era um rabino judeu. Teólogos militantes latino-americanos descobriram que ele havia sido um político revolucionário. Os professores de Oxford reconheceram nele outro professor, que, como eles, certamente teria apreciado um copo de xerez antes da Última Ceia. Os californianos, por sua vez, descobriram um hippie gentil, querido com todos, que provavelmente teria preferido maconha ao xerez.
Depois, há o Jesus gay, o Jesus apaixonado por Madalena, o Jesus quase-Gandhi não violento... qualquer Jesus que lhe agrade! Na realidade, se você começar a descascar as várias camadas da cebola, pouco a pouco, até o centro, certamente encontrará um Jesus que se assemelha justamente com você! Então, em vez de descascar a cebola, dialoguemos. Entremos em diálogo com a palavra de Deus e deixemo-nos sacudir. Dialoguemos com a tradição. Uns com os outros. A conversa leva à conversão.
A chave de tudo o que o Papa Francisco está fazendo é o esforço para trazer o diálogo novamente para o coração da Igreja. Ele nomeou um Conselho dos Cardeais, com os quais se reúne regularmente para discutir questões da Igreja. Está tentando transformar o Sínodo em uma verdadeira conversa, em vez de ter pessoas que simplesmente se encontram para ler os textos que escreveram antes de chegar a Roma.
Eu estive em três sínodos e lhes asseguro que podem ser momentos longos e extremamente chatos. Ele, em vez disso, quer que se instaure o diálogo no coração de cada paróquia, de cada diocese. Mas o fundamento de tudo é o nosso diálogo com Deus. A Dei Verbum cita Santo Ambrósio (século IV): “A Ele falamos quando rezamos, a Ele ouvimos quando lemos os oráculos divinos”.
Toda boa conversa pressupõe o prazer da diferença. Não faz sentido ter um diálogo com quem pensa exatamente como você. É tão chato! Uma boa conversa toma direções inesperadas. Não pode ser controlada. E a Bíblia está repleta de diálogos. No Antigo Testamento, há conversas litigiosas entre os profetas e os reis; e há um diálogo entre o Antigo e o Novo Testamento.
O Novo Testamento abraça as diferenças com um entusiasmo temerário. No seu centro, está o diálogo entre os quatro Evangelhos. Como escreveu o teólogo Francis Watson: “Surgiu lentamente um consenso de que os quatro Evangelhos devem ser lidos um ao lado do outro, e que nenhum outro Evangelho deve ter a permissão de compartilhar a conversa intratextual deles”. Quatro Evangelhos que não concordam entre si.
No século II, a Igreja se opôs firmemente àqueles temerosos que queriam reduzi-los a uma narrativa única e coerente. A nossa interpretação da morte de Jesus é um diálogo sem fim, por um lado, com os relatos de Marcos e Mateus que falam de um homem que grita que Deus o abandonou, e, por outro, com as narrativas dos mais serenos Lucas e João, nas quais ele confia e se abandona ao Espírito.
É uma conversa que continuará até descobrirmos a verdade de Deus que permanece para além de toda palavra. Coloquemo-nos à escuta dessa conversa e encontremos a coragem para intervir, como crianças que ousam se intrometer nas conversas dos adultos. E assim, lentamente, ela nos transforma. Desmonta um por um os nossos preconceitos, cura-nos da violência. De uma geração à outra, como o fermento na Igreja. Foram necessários milhares de anos até que o Deus violento dos textos mais antigos se tornasse o Deus misericordioso, pai do filho pródigo.
Pensem apenas na escravidão. Paulo escrevia que, em Cristo, “não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Mas, na sua Carta a Filemon, ele parece tolerar a escravidão. Ele considera Onésimo seu filho e gostaria que ele fosse tratado como um irmão amado, mas nunca põe em discussão a instituição da escravidão. Ela era universal na época, não se poderia imaginar uma sociedade sem ela.
Só com Bartolomeu de Las Casas – como visto acima – é que a própria ideia de escravidão começou a ser repudiada. Os dominicanos espanhóis conseguiram convencer o papa a denunciá-la na encíclica Sublimis Deus, de 1537. Muitas vezes, esquecemos que, durante séculos, o papado denunciou qualquer forma de escravidão. Mas ainda temos muito caminho a percorrer.
No século XIX, reconhecemos a escravidão dos trabalhadores acorrentados às suas máquinas. Hoje, assistimos à redução à escravidão das mulheres que se deve ao tráfico sexual. Embora a Palavra tenha sido pronunciada por Jesus de uma vez por todas e para sempre, o seu eco continua nos interrogando, nos desafiando, nos urgindo a ir além.
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Em diálogo com a Palavra. Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU