25 Setembro 2019
“Amar alguém significa aprender a arte de ler seu rosto. Aprendemos a penetrar atrás de sua máscara”, escreve Timothy Radcliffe, frade dominicano, em artigo publicado por l'Espresso, 15-09-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, “a história do cristianismo é a história do rosto de Deus: Israel queria ver o rosto de Deus”.
“A pele é o maior dos órgãos humanos – constata o frade dominicano, ex-superior geral da Ordem dos Pregadores. Ela nos circunda e, ao mesmo tempo, constitui a fronteira entre nós e os outros. Mas também é o local dos contatos mais íntimos. A própria palavra "contato" tem em sua raiz uma sensação tátil recíproca: com-tato. Mas como a pele é o local de contato, também é preciso que haja a distância certa. Se sempre nos tocamos, tornamo-nos intrusivos”.
“Nossa sociedade está vivendo uma crise de contato físico”, afirma Radcliffe.
Eu realmente gostei de receber o pedido para falar sobre a música de Patti Smith "The night belongs to lovers", a noite pertence aos amantes.
O que um velho padre católico tem a dizer sobre esse texto, tão cheio de paixão erótica? E mais ainda um padre inglês? No entanto, imediatamente me pareceu um assunto fascinante.
Não só porque, como todos vocês, sou um ser humano. Mas porque tudo o que tem a ver com amor nos diz algo sobre aquele Deus que nós consideramos ser amor.
O texto mais apaixonado de todo o mundo antigo é encontrado precisamente na nossa Bíblia: é o Cântico dos cânticos. E então sim: a noite pertence aos amantes. Mas o dia também é feito para eles. O amor se enriquece na alternância de noite e dia. E um precisa do outro se nosso amor deve ser verdadeiramente apaixonado, humano e até mesmo santo.
Vamos começar pelo rosto. Na escuridão da noite, o rosto do amado não pode ser visto. Talvez possamos tocá-lo, mas é invisível para nós. A invisibilidade do rosto é um sinal de grande intimidade. Quando vemos alguém que amamos do outro lado da sala, vemos todo o corpo. Depois, quando nos aproximamos e o abraçamos, podemos apenas ver seu rosto. E, se o beijamos, o rosto também desaparece. Mas não podemos permanecer abraçados para sempre. Mais cedo ou mais tarde, devemos nos afastar e começar a nos olhar novamente. O mesmo acontece com a nossa relação com Deus. Wittgenstein escreveu: "O rosto é a alma do corpo". Revela o que somos. Ou, às vezes, o esconde.
Todos nós às vezes usamos máscaras. Eleanor Rigby, na música dos Beatles, sai de casa "colocando a cara que guarda no pote perto da porta". Os nossos rostos podem ser máscaras atrás das quais nos escondemos, com falsos sorrisos ou com uma gélida indiferença.
Amar alguém significa aprender a arte de ler seu rosto. Aprendemos a penetrar atrás de sua máscara.
Certa vez eu estava viajando para a Argélia com o bispo de Oran. Por causa dos combates, não conseguimos pegar o avião e tivemos que usar o velho carro do bispo. Fomos bloqueados por violentos combates entre a população e o exército. As pessoas cercaram o carro e mandaram descer o motorista e os passageiros, presumivelmente para levá-los como reféns.
Na frente do carro, um jovem, segurando uma pedra do tamanho de uma bola de futebol, gritava para a multidão nos cercar.
Enquanto os outros chegavam, parecia que nós também seríamos presos. Mas o bispo viu uma saída, acelerou e conseguimos escapar.
Jamais esquecerei o rosto daquele jovem. À primeira vista, ele parecia apenas cheio de raiva. Mas sob a raiva, eu podia ver o medo. Talvez ele estivesse se perguntando como tinha acabado naquela confusão e o que teria que fazer naquele momento. E depois, sob o medo, se podia ver o rosto de um jovem amado e amável. O rosto de uma pessoa da qual, em outras circunstâncias, eu poderia ter gostado. Olhando para trás aquele encontro, fiquei impressionado pela complexidade de seu rosto, um verdadeiro caleidoscópio de emoções.
Nosso amor uns pelos outros, seja amizade ou paixão amorosa, exige que olhemos, toquemos e conheçamos bem o rosto do outro. No entanto, à noite, se temos uma relação de paixão, o rosto desaparece, assim como desaparece em um abraço afetuoso.
O rosto daquele que se une fisicamente a nós deixa de existir como rosto de outra pessoa. Tornamo-nos um único ser, "uma só carne", como diz a Bíblia. As fronteiras desaparecem. Não existe mais "eu" ou "você", apenas "nós". Mas, como diz o Eclesiastes, "há um tempo de abraçar e um tempo de se afastar". O amor significa que nós cuidamos com carinho da independência e da alteridade do outro.
Como cristão, acredito que esse ritmo de noite e dia, de separação e proximidade, seja uma pequena parte daquele amor infinito que é Deus, porque, como disse Santo Agostinho, Deus está mais próximo de nós do que nós mesmos. Ou, como o Alcorão expressa, "Deus está mais perto de mim do que minha jugular". Deus está no centro do meu ser, e isso me dá existência. E se Deus me parece ausente, talvez seja porque eu estou ausente de mim mesmo. Deus está mais perto do que eu possa imaginar.
A história do cristianismo é a história do rosto de Deus: Israel queria ver o rosto de Deus:
"Deixe seu rosto brilhar sobre nós e seremos salvos." Ser salvo significava ser admitido à visão o rosto de Deus. Acreditamos que dois mil anos atrás Deus se fez carne e sangue no rosto de um judeu do primeiro século, Jesus. Ele olhou para as pessoas e viu quem elas eram. Eles olharam para ele e o mundo se aclarou. Foi o momento diurno da nossa relação.
Depois o rosto de Jesus desapareceu e não estava mais entre nós. Nem sabemos como era o rosto dele. Cada geração inventa a sua imagem. No entanto, essa não é uma ausência de Jesus, mas uma mais profunda intimidade. É a intimidade da noite que é feita para os amantes. Todos nós perdemos o rosto de Deus algumas vezes. Só que o cristão perde Deus para encontrar Deus ainda mais perto de si. Para o ateu, há apenas a ausência. Ateus e cristãos perdem ambos a imagem infantil de Deus como um bom velhinho com uma barba branca sentado numa nuvem. Para os crentes, isso significa redescobrir Deus ainda mais perto. Para o ateu, cada uma dessas experiências significa uma ausência mais profunda.
Mick Jagger do Rolling Stones canta assim: "Você não quer sair por aí e falar sobre Jesus / você só quer ver o rosto dele". Nesta época em que é noite e não vemos o rosto de Jesus, nós devemos ser esse rosto uns para os outros. Como talvez tenha dito Santa Teresa de Ávila: "ele não tem outro rosto senão o teu". O testemunho mais importante de nossa fé é o nosso próprio rosto, que olha o mundo com amor e compaixão, que sorri. Podemos encontrá-lo em qualquer lugar.
Brian Pierce, um dominicano norte-americano, durante seus anos de universidade estava viajando pelo Peru para estudar espanhol. Um dia, estava atravessando de carro um pobre vilarejo andino quando uma mulher indígena olhou para ele pela janela para pedir uma moeda. Ele ficou impressionado pelo seu rosto. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o carro se afastou: desde então, ele se arrepende de não ter sequer tocado a sua mão. Seu rosto cheio de sofrimento e dignidade permaneceu impresso em sua memória. Será para sempre. Foi o começo de sua vocação dominicana. Ele escreveu: “Na superfície, eu estava simplesmente cansado, meu estômago doía. Mas nas profundezas do meu ser, Deus estava preparando o terreno. Graças a Deus, vi aquele rosto e tentei tocar aquela mão muitas e muitas vezes. Hoje, para mim, aquele rosto é o rosto da coragem e da dignidade. Hoje penso naquele rosto como o rosto de Deus”.
A noite é o momento de tocar-se. Mas isso, a música nos diz, é certo. "Minhas mãos não podem te ferir." São Tomás de Aquino nos diz que o tato é o mais humano de todos os nossos sentidos. É também o único a ser intrinsecamente recíproco. Eu posso ver sem ser visto. Eu posso ouvir sem ser ouvido. Eu posso sentir cheiros sem ser percebido. Mas quando se toca de modo adequado e seguro, então também se é tocado.
A pele é o maior dos órgãos humanos. Ela nos circunda e, ao mesmo tempo, constitui a fronteira entre nós e os outros. Mas também é o local dos contatos mais íntimos.
A própria palavra "contato" tem em sua raiz uma sensação tátil recíproca: com-tato. Mas como a pele é o local de contato, também é preciso que haja a distância certa. Se sempre nos tocamos, tornamo-nos intrusivos.
Mas isso não pode durar. Sempre chega o tempo de separar-se e voltar a ser distinto. São Tomás de Aquino explica bem quando escreve: "No amor, dois se tornam um, mesmo permanecendo distintos". Se não houvesse separação, estaríamos nos devorando. E assim a noite é feita para os amantes, mas o dia também. Há o tempo para ser dois e o tempo para ser um. A arte de amar consiste em saber quando dar espaço e quando ser íntimos. Desenvolver a capacidade de amar outro ser humano significa aprender a estar próximo dos outros, mas também saber como dar-lhes espaço, para que não sejam sobrepujados por nós. No coração do cristianismo está a crença de que Deus é um deus que nos toca. Na Capela Sistina, Michelangelo pintou Deus que estica a mão para dar vida a um Adão adormecido. O toque divino se tornou carne e sangue em Jesus, e agora em nós mesmos. Jesus tocava os intocáveis: os leprosos, os doentes e até os mortos. Isso o tornava ritualmente impuro aos olhos dos Fariseus. Jesus não tinha medo de ser tocado.
Nossa sociedade está vivendo uma crise de contato físico. Muitas vezes sentimos isso como um abuso ou um gesto possessivo. Um gesto que invade a privacidade do outro, que não respeita sua alteridade. Essa crise também contagiou a Igreja, que sofreu acusações de abusos sexuais em todo o mundo. Isso é algo que destrói a própria essência, o centro do ser de uma pessoa. É uma experiência de aniquilação. Como podemos reencontrar a beleza de um toque que não cause mal? Precisamos do toque da noite, respeitoso, não possessivo. E também, às vezes, do não se tocar. De deixar que a outra pessoa seja. Porque a pessoa que amamos não está ali apenas para nós. Ele ou ela também é filha ou filho, mãe ou pai, amigo ou amigo de outras pessoas. Todos somos frutos de muitas relações diferentes.
É uma ilusão do romantismo moderno imaginar que no mundo podemos existir apenas "nós dois". Todos nós precisamos de tantas relações diferentes para permanecermos plenamente na existência.
No romance de Madeleine Thien sobre os imigrantes chineses nos Estados Unidos, intitulado "Não digam que não temos nada, em tradução livre", um dos protagonistas diz: "Nunca tente ser uma única coisa, um ser humano indiviso. Se tantas pessoas te amam, você pode honestamente dizer que é uma única coisa?” Assim o amor da noite deve deixar espaço a um amor do dia. O amor do outro deve nos levar a reconhecer que ele é mais do que ele é para mim. A existência do outro precisa de outros rostos, de outros sorrisos, de outras palavras além das minhas. Todo amor profundo significa que nós teríamos o desejo de possuir o outro e, no entanto, devemos deixá-lo ir.
A noite pertence aos amantes, e o dia também. Cada coisa a seu tempo. Quando o sol se põe, mesmo que haja luz elétrica, tudo diminui ou até para. Não vemos mais sombras se alongando como acontece durante o dia sob o sol. O tempo para. E você sente o toque da eternidade.
Os amantes gostariam que a noite nunca terminasse. No entanto, acaba. Porque somos corpos e vivemos com as memórias do passado e com as esperanças do futuro. Henri Lacordaire, um dominicano francês do século XIX, dizia: "Entre o passado onde estão as nossas memórias, e o futuro, onde estão as nossas esperanças, está o presente". Devemos sempre retornar ao dia, durante o qual o tempo flui. E nós mesmos envelhecemos.
O tempo sem tempo da noite dá lugar ao dia, que toma forma na memória e nas expectativas.
Os cristãos têm orações para a noite que servem para deixar ir o passado. Um amigo meu, ministro no culto batista, Ian Stackhouse escreve: "A noite se macula pelo que para nós modernos é a extrema heresia: nos obriga a parar. Para dormir bem, é preciso abandonar algo, deixar ir. E já que deixar ir não é algo fácil para nós, muitos não dormem bem”. E então temos orações para a manhã, que servem para nos abrir ao novo. Pedimos a Deus que nos surpreenda! E depois temos orações para o presente que, como os amantes na noite, são muitas vezes silenciosas.
À noite, os amantes não dizem muitas palavras. A comunicação assume outras formas.
Quando dois amantes são felizes, seu silêncio compartilhado fala a linguagem da intimidade.
Todas as palavras ditas desde o primeiro momento os levaram à comunicação mais completa, na qual não há mais necessidade de dizer nada. Talvez o único som que se ouça seja o da respiração. Mas são necessárias tantas palavras para preparar esse silêncio repleto de significado. E então, no dia seguinte, haverá palavras novamente, quando os dois se separarão novamente e se olharão no rosto à luz do dia. As palavras levam ao silêncio, e o silêncio às palavras. Vivemos no ritmo de sua alternância, como os amantes vivem na alternância de noite e dia.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Amantes. Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU