27 Setembro 2019
Na quinta-feira, 5 de setembro, durante sua viagem a Moçambique, o Papa Francisco se encontrou em particular com um grupo de vinte e quatro jesuítas, vinte dos quais eram de Moçambique, três do Zimbábue e um de Portugal. Entre eles, estava o provincial Padre Chiedza Chimhanda. A reunião aconteceu na nunciatura, por volta das 18h15, após o Papa retornar de seus compromissos do dia.
A reportagem é de Antonio Spadaro, jesuíta, publicada por La Civiltà Cattolica, 26-09-2019. A tradução é do Cepat.
A província dos jesuítas de Zimbábue-Moçambique foi fundada no final de dezembro de 2014. Atualmente, possui 163 membros, 90 dos quais jovens em formação [1]. Os jesuítas aplaudiram o Papa em sua chegada. Ele pediu para que formassem um círculo com as cadeiras. A conversa durou um longo tempo. Após as saudações do provincial, o Papa convidou os jesuítas a fazer perguntas para iniciar a conversa.
O primeiro a se manifestar foi o padre Paul Mayeresa, que trabalha em Beira, no apostolado educacional. Ele pediu ao Papa uma reflexão sobre as preferências apostólicas da Companhia [2] e um conselho sobre como vivê-las em Moçambique. O Papa respondeu da seguinte maneira:
“Não é fácil reconstruir uma sociedade dividida. Vocês vivem em um país que passou por lutas entre irmãos. Penso que, por exemplo, a preferência apostólica que tem a ver com os Exercícios Espirituais pode ajudar muito neste contexto. Os Exercícios podem ser oferecidos a pessoas comprometidas com os diferentes setores da sociedade e, assim, torná-las mais aptas a desenvolver sua função de união e reconciliação. Trata-se da experiência do discernimento espiritual que guia a ação.
É necessário um acompanhamento adequado, especialmente se na sociedade e na nação houver necessidade de unidade, de reconciliação. Sabemos que, às vezes, o ótimo é inimigo do bom e, em um momento de reconciliação, é preciso engolir muitos sapos. Neste processo, é necessário ensinar a ter paciência. É preciso a paciência do discernimento para ir ao essencial e deixar de lado o acidental. Às vezes, realmente, é preciso muita paciência! Mas, depois, também é necessário ensinar os conteúdos, ou seja, a Doutrina Social da Igreja. Mas, atenção: em todo caso, o jesuíta não deve dividir. Na sociedade de Moçambique, há necessidade de reconciliação: unir, unir, unir, unir, unir, ter paciência, esperar. Nunca dar um passo para dividir. Somos homens do todo, não da parte.
Você trabalha no apostolado educacional e está no meio dos jovens. Seu trabalho é importante e exigente. Os jovens têm boa vontade, mas podem ser uma presa fácil para o engano, para a impaciência. É necessário estar próximo dos jovens, dar a eles espaço para que possam discernir o que acontece em seu coração. A formação considera ao mesmo tempo as ideias e os sentimentos. Para agir bem, é preciso sempre considerar as ideias e os sentimentos que possuem. Por exemplo, é necessário ajudar os mais jovens a reconhecer quando vivem na resignação e, portanto, na paralisia. E também a reconhecer quando, ao contrário, vivem uma saudável inquietação. Em resumo, é necessária uma obra de discernimento espiritual, de acompanhamento para o bem da sociedade”.
Papa Francisco se encontra com jesuítas de Moçambique e Madagascar (Fonte: La Civiltà Cattolica)
Na sequência, o padre Bendito Ngozzo, capelão da escola Santo Inácio de Loyola, diz: “Algumas seitas protestantes utilizam a promessa de riqueza e prosperidade para conquistar adeptos. Os pobres se deixam fascinar e esperam enriquecer entrando nessas seitas que usam o nome do Evangelho. Dessa forma, abandonam a Igreja. Que recomendação pode nos dar para que nossa evangelização não seja fazer proselitismo?”
“O que você diz é muito importante. Assim e em tudo, é preciso distinguir bem entre os que se denominam ‘protestantes’. Há muitos com os quais podemos trabalhar muito bem e que se importam com um ecumenismo sério, aberto e positivo. Mas, há outros que apenas buscam fazer proselitismo e utilizar uma visão teológica da prosperidade. Você foi muito preciso em sua pergunta.
Na revista La Civiltà Cattolica foram publicados dois artigos importantes a esse respeito. Eu os aconselho. Foram escritos pelo Padre Spadaro e pelo pastor presbiteriano argentino Marcelo Figueroa. O primeiro artigo falava do ‘ecumenismo do ódio’. O segundo versava sobre a ‘teologia da prosperidade’ [3]. Ao lê-los, verá que existem seitas que realmente não podem ser definidas como cristãs. Pregam a Cristo, sim, mas sua mensagem não é cristã. Não tem nada a ver com a pregação de um luterano ou de outro cristão evangélico sério. Esses chamados ‘evangélicos’ pregam a prosperidade, prometem um evangelho que não conhece a pobreza, mas simplesmente procura ganhar adeptos. É justamente o que Jesus condena nos fariseus de seu tempo. Já disse várias vezes: o proselitismo não é cristão.
Hoje, senti certa amargura ao concluir o encontro com os jovens. Uma senhora se aproximou de mim com um jovem e uma jovem. Indicou-me que faziam parte de um movimento um pouco fundamentalista. Ela me disse, em espanhol perfeito: ‘Santidade, venho da África do Sul. Esse garoto era hindu e se converteu ao catolicismo. Essa garota era anglicana e se converteu ao catolicismo’. Mas, disse-me isso de maneira triunfante, como se tivesse feito uma caça, com o troféu. Senti-me incomodado e lhe disse: ‘Senhora, evangelização sim, proselitismo não’.
O que quero dizer é que a evangelização liberta. Ao contrário, o proselitismo causa a perda da liberdade. O proselitismo é incapaz de criar um caminho religioso na liberdade. Sempre prevê gente de um modo ou de outro submetida. Na evangelização, o protagonista é Deus, no proselitismo o eu.
É verdade, há muitas formas de proselitismo. O dos times de futebol, a torcida, tudo bem, por favor! E, além disso, está claro que existem formas de proselitismo das associações comerciais, dos partidos políticos. O proselitismo está generalizado, sabemos bem. Mas, não deve existir entre nós. Devemos evangelizar, algo que é muito diferente do proselitismo.
São Francisco de Assis disse a seus irmãos: ‘Ide ao mundo, evangelizai. E, se for necessário, também com as palavras’. A evangelização é essencialmente testemunho. O proselitismo é convincente, mas é tudo afiliação e tira de você a liberdade. Acredito que esta distinção pode ser de grande ajuda. Em Aparecida, Bento XVI disse uma coisa maravilhosa: a Igreja não cresce pelo proselitismo, cresce pela atração, a atração do testemunho. As seitas, ao contrário, ao fazer prosélitos, separam as pessoas, prometem-lhes muitas vantagens e, depois, as abandonam a si mesmas [4].
Entre vocês, certamente, há teólogos, sociólogos e filósofos. Peço-lhes que estudem e aprofundem a diferença entre proselitismo e evangelização. Leiam a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI. Nela fica claro que a vocação da Igreja é evangelizar. Mais ainda, a identidade própria da Igreja é evangelizar. Mas, lamentavelmente, não só nas seitas, também dentro da Igreja Católica há grupos fundamentalistas. Enfatizam mais o proselitismo que a evangelização.
Outra coisa típica da atitude do proselitismo é que não distingue entre foro interno e foro externo. E é o pecado no qual, hoje, muitos grupos religiosos caem. For isso, pedi à Penitenciária Apostólica que fizessem uma declaração sobre o foro interno, e a declaração que fizeram é realmente muito boa [5].
A evangelização nunca viola a consciência: anuncia, semeia e ajuda a crescer. Ajuda. Por outro lado, qualquer um que faça proselitismo viola a consciência das pessoas. Não as torna livres, faz com que dependam. A evangelização não te dá uma dependência ‘paterna’, ou seja, faz você crescer e liberta. O proselitismo te dá uma dependência servil, de consciência e social. A dependência do evangelizado, a ‘paterna’, é a lembrança da graça que Deus te deu. O prosélito, ao contrário, depende não como um filho, mas como um escravo, que ao final não sabe o que fazer se não lhe é indicado.
Mais uma vez, recomendo-lhe estes dois artigos da revista La Civiltà Cattolica. Leia-os, estude-os, porque neles há muito do que lhe disse. Aqui, tentei comunicar a intuição principal”.
Toma a palavra um estudante, Leonardo Alexandria Simão, que está cursando seu período de formação em Beira. Relata o seu trabalho com os jovens. O Papa lhe diz que é um trabalho importante e que sua “tarefa é comunicar o Evangelho e fazer com que os jovens sejam interiormente livres”. Em seguida, o jesuíta pergunta se sua experiência de Deus mudou desde que foi eleito Papa, e de que maneira. Francisco demora um pouco para refletir e depois responde ...
“Não sei dizer a você, de verdade. Ou seja, acredito que, fundamentalmente, minha experiência de Deus não mudou. Continuo sendo sempre o mesmo de antes. Sim, percebo um sentimento de maior responsabilidade, sem dúvida. Além disso, minha oração de intercessão se tornou muito mais ampla do que antes. Mas, também antes vivia a oração de intercessão e sentia a responsabilidade pastoral. Continuo caminhando, mas não há mudanças realmente radicais. Falo com o Senhor como antes. Sinto que me dá a graça que preciso para o tempo presente. Mas, o Senhor também me dava antes. E, além disso, cometo os mesmos pecados de antes. A eleição papal não me converteu bruscamente, de modo a me tornar menos pecador que antes. Sou e continuo sendo um pecador. Por isso, confesso-me a cada duas semanas.
Nunca me haviam feito esta pergunta e te agradeço por me perguntar, porque me faz refletir sobre a minha vida espiritual. Entendo, como te dizia, que minha relação com o Senhor não mudou, exceto um maior sentimento de responsabilidade e uma oração de intercessão que se ampliou ao mundo e a toda a Igreja. Mas, as tentações são as mesmas e também os pecados. O simples fato de agora me vestir todo de branco não me tornou nada menos pecador e mais santo do que antes.
Conforta-me muito saber que Pedro, a última vez que aparece nos Evangelhos, é ainda inseguro como antes. Junto ao mar da Galileia, Jesus lhe pergunta se o ama mais do que os outros e lhe pede que apascente suas ovelhas, e depois o confirma. Mas, Pedro continua sendo a mesma pessoa que era: teimoso, impetuoso. Paulo terá que enfrentar e lutar com essa teimosia por causa dos cristãos que vinham do paganismo e não do judaísmo. No começo, em Antioquia, Pedro vivia a liberdade que Deus lhe havia dado, sentava-se à mesa com os pagãos e comia com eles tranquilamente, deixando de lado as regras alimentares judaicas. Mas, depois, chegaram lá alguns de Jerusalém, e Pedro, por medo, retirou-se da mesa dos pagãos e só comia com os circuncidados [6]. Em suma: da liberdade passa novamente à escravidão do medo. Eis o Pedro hipócrita, o homem do compromisso. Ler sobre a hipocrisia de Pedro me conforta muito e me coloca em vigília. Acima de tudo, ajuda-me a compreender que não há mágica alguma em ter sido eleito Papa. O conclave não funciona por mágica”.
Intervém o Padre Joachim Biriate, sócio do padre provincial, para fazer uma pergunta: “Como se faz para evitar cair no clericalismo, durante a formação para o ministério sacerdotal?”
“O clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja. O pastor tem a capacidade de ir na frente do rebanho para lhe indicar o caminho, de estar no meio do rebanho para ver o que acontece em seu interior, e também de ir atrás do rebanho para garantir que ninguém fique para trás. Ao contrário, o clericalismo pretende que o pastor esteja sempre à frente, estabelece uma rota e pune com a excomunhão aqueles que se afastam do rebanho. Em síntese: é justamente o oposto do que fez Jesus. O clericalismo condena, separa, frustra, despreza o povo de Deus.
Uma vez fui confessar em um santuário no norte da Argentina. Terminada a missa, saí com outro sacerdote. Uma senhora se aproximou dele com adesivos e rosários lhe pedindo que abençoasse esses objetos. Meu amigo lhe explicou: ‘Você esteve na missa e, ao final da missa, já recebeu a bênção, portanto, tudo já foi abençoado’. Contudo, a senhora continuou lhe pedindo a bênção. E o sacerdote continuou em sua explicação teológica: ‘A missa é o sacrifício de Cristo?’ E a senhora respondeu que sim. ‘É o sacrifício do corpo e do sangue de Cristo?’ E a senhora respondeu que sim. ‘E você acredita que Cristo, com seu sangue, salvou a todos nós?’ A senhora respondeu que sim. Justamente nesse momento, o sacerdote viu um amigo dele e se distraiu. E a senhora imediatamente se dirigiu a mim, pedindo-me: ‘Padre, me dá a bênção?’ Pobre gente que precisa implorar para ter uma bênção! O clericalismo não leva em consideração o povo de Deus.
Na América Latina, há muita piedade popular e é muito rica. Uma das explicações que se dá ao fenômeno é que este ocorreu porque os sacerdotes não estavam interessados e, portanto, não a puderam clericalizar. A piedade popular tem coisas a serem corrigidas, sim, mas expressa a soberania do povo santo de Deus, sem clericalismo. O clericalismo confunde ‘serviço’ presbiteral com o ‘poder’ presbiteral. O clericalismo é ascensão e domínio. Em italiano se chama ‘arrampicamento’, escalada.
O ministério entendido não como serviço, mas como “promoção” ao altar é fruto de uma mentalidade clerical. Vem a minha mente um exemplo extremo. Diácono significa ‘servidor’. Mas, em alguns casos, o clericalismo atinge paradoxalmente justamente os ‘servidores’, os diáconos. Quando se esquecem que são os guardiões do serviço, surge, então, o desejo de se clericalizar e de ser ‘promovidos’ ao altar.
O clericalismo tem como consequência direta a rigidez. Nunca viram jovens sacerdotes totalmente rígidos de batina preta e capelo com a forma do planeta Saturno na cabeça? Aí estão eles. Por trás de todo rígido clericalismo há sérios problemas. Recentemente, tive que intervir em três dioceses por problemas que se expressavam nestas formas de rigidez que escondiam desequilíbrios e problemas morais.
Uma das dimensões do clericalismo é a fixação moral exclusiva no sexto mandamento. Uma vez um jesuíta, um grande jesuíta, disse-me para que ficasse atento ao dar a absolvição, porque os pecados mais graves são os que tem maior caráter ‘angelical’: orgulho, arrogância, domínio... E os menos graves são os que têm menos caráter angelical, como a gula e a luxúria. Concentra-se no sexo e, depois, não dá peso à injustiça social, à calúnia, às fofocas, às mentiras. Hoje, a Igreja tem necessidade de uma profunda conversão neste aspecto.
Por outro lado, os grandes pastores dão às pessoas muita liberdade. O bom pastor sabe conduzir seu rebanho sem o submeter a regras que o mortifica. Ao contrário, o clericalismo conduz à hipocrisia. Também na vida religiosa.
Muitas vezes, conto o caso de um jesuíta em formação. Sua mãe estava gravemente doente e ele sabia que não iria viver por muito mais tempo. Vivia em outra cidade do mesmo país, e por isso pediu a seu provincial para mudar de sede para poder estar mais tempo com sua mãe. O provincial disse que refletiria na presença de Deus e que lhe responderia antes de partir novamente, na manhã seguinte. O jovem jesuíta permaneceu por longo tempo na capela naquela noite, pedindo que o Senhor lhe concedesse a graça. Mas o provincial, uma vez que precisaria partir cedo, na realidade, não pensou muito no assunto e escreveu todas as respostas às cartas que precisava deixar e as entregou ao ministro da comunidade [7] para que as distribuísse no dia seguinte. Entre elas, estava a resposta a este jovem. O ministro, levando em conta que era tarde e pensava que todos estariam dormindo, deixou as cartas junto às portas dos interessados. O jovem, que durante a noite retornou da capela para o quarto, viu a carta do provincial e a abriu. Percebeu que estava com a data do dia seguinte. Dizia: “Após ter refletido, orado, celebrado a missa e feito um longo discernimento diante do Senhor, penso que deve permanecer neste lugar”. Aí está: isto é clericalismo, é a hipocrisia que conduz ao clericalismo. O jovem jesuíta não perdeu a vocação, mas não esqueceu aquela hipocrisia. O clericalismo é essencialmente hipócrita”.
Toma a palavra o Pe. Alfonso Mucame, pároco da Paróquia Santo Inácio, na Diocese de Tete, e pede algumas reflexões sobre o Apostolado da Oração, que agora se chama Rede Mundial de Oração do Papa e que acaba de completar seus 175 anos de atividades [8].
“Penso que temos que ensinar às pessoas a oração de intercessão, que é uma oração de coragem, de parresia. Pensemos na intercessão de Abraão por Sodoma e Gomorra. Pensemos na intercessão de Moisés por seu povo. Temos que ajudar as pessoas a exercer com maior frequência a intercessão. E nós mesmos devemos praticá-la mais. A Rede Mundial de Oração do Papa está indo muito bem, como é chamada agora, dirigida pelo Padre Fornos. É importante que as pessoas orem pelo Papa e por suas intenções. O Papa é tentado, é muito assediado. Só a oração de seu povo pode libertá-lo, conforme se lê nos Atos dos Apóstolos. Quando Pedro esteve preso, a Igreja orou incessantemente por ele. Se a Igreja ora pelo Papa, isso é uma graça. Sinto de verdade, continuamente, a necessidade de pedir a esmola da oração. A oração do povo sustenta”.
A última pergunta é do estudante Ermano Lucas, que desenvolve seu serviço na escola Santo Inácio. Sua pergunta é sobre a crescente xenofobia.
“A xenofobia e a aporofobia [9] são, hoje parte de uma mentalidade populista que não admite soberania aos povos. A xenofobia destrói a unidade do povo, também a do povo de Deus. E o povo somos todos nós, aqueles que nasceram no mesmo país, não importa se têm raízes em outro lugar ou se são de etnias diferentes. Hoje, somos tentados por uma forma de sociologia esterilizada. Parece que se considera um país como se fosse uma sala de cirurgia, onde tudo está esterilizado: minha raça, minha família, minha cultura ... como se existisse o medo de sujá-la, manchá-la, infectá-la. Deseja-se bloquear esse processo importante que dá vida aos povos, que é a miscigenação. Misturar faz você crescer, te dá uma nova vida. Desenvolve cruzamentos, mutações e confere originalidade. A miscigenação é o que experimentamos, por exemplo, na América Latina. Em nossas terras há de tudo: o espanhol e o índio, o missionário e o conquistador, a linhagem espanhola e a miscigenação [10]. Construir muros significa se condenar à morte. Não podemos viver asfixiados por uma cultura da sala de cirurgia, asséptica e não microbiana”.
O encontro do Papa Francisco com os jesuítas foi encerrado com os agradecimentos, uma oração de todos juntos e a foto do grupo.
No dia 8 de setembro, durante sua visita a Madagascar, no final do encontro com os sacerdotes, religiosos e seminaristas no campo esportivo do Collège de Saint Michel [11], dos jesuítas, o Papa Francisco se reuniu, na capela do colégio, com 200 dos 260 jesuítas da província malgaxe, liderados pelo provincial, Padre Fulgence Ratsimbazafy. O encontro durou cerca de 40 minutos. [12]
A entrada do Papa foi acompanhada pelo canto do Veni Creator, em uma atmosfera cordial, mas também um pouco solene. O Papa quis atenuar imediatamente essa solenidade, dizendo que não daria discursos e que também não queria ouvi-los. Pediu, ao contrário, para “falar como irmãos” e manter uma conversa com perguntas e respostas totalmente espontâneas. No encontrou, alternaram-se respostas rápidas [13] e três respostas mais amplas.
O Padre Joseph Emmanuel Randriamamonjy, comprometido com o apostolado dos Exercícios Espirituais, pega o microfone e faz a pergunta em italiano: “Qual foi a sua impressão sobre Madagascar? O que mais te impressionou?”
“Uma coisa que me impressionou bastante e que, pelo que me parece, é o fio condutor da visita foram as pessoas, o povo malgaxe. Vi um povo capaz de suportar a pobreza, sofrimento e exploração. Fiquei impressionado com a capacidade de expressar alegria, mesmo quando falta o necessário. É uma verdadeira graça. Também diz muito a nós, os consagrados, e questiona nossas exigências refinadas e, às vezes, típicas de uma elite. Vi um povo que busca o essencial para sobreviver, mas que, justamente por isso, é fecundo. Não percam de vista as raízes que tornam o seu povo alegre também no sofrimento. Quando vier a tentação de ficarem um pouco azedos e insatisfeitos, concentrem-se bem no espírito do seu povo e em sua fecundidade”.
O Padre Noël Cyprien, coordenador do apostolado social e ecológico da província, toma a palavra: “O senhor vem da América Latina. Agora está em Madagascar. Nota alguma relação entre nossos diferentes povos?”
“Diria que nossos povos precisam estar atentos para não cair na colonização ideológica que tira a nossa identidade. Nossos povos ainda têm a capacidade de se expressar de maneira popular, sem cair no populismo. É importante preservar a identidade do próprio povo, uma identidade que vem da expressão espontânea do povo. Por outro lado, precisamos nos defender de uma identidade que seja ideológica. A experiência do povo vai muito além das ideologias, que são abstratas: de museu ou de laboratório. A ideologia nos faz perder a identidade. A identidade de um povo não pode ser expressa em conceitos, mas, sim, em histórias. O povo é soberano nas próprias expressões de arte, cultura, sabedoria. Santo Inácio compreendeu isso muito bem. Se vocês se recordam, em nossas Constituições há uma espécie de refrão que retoma as eleições que são feitas e o modo de atuar, que depende sempre do contexto, da realidade ‘segundo os lugares, os tempos e as pessoas’.
O critério da ação nunca é abstrato, mas tem como referência um certo lugar, procurando a organizar, dialoga com a realidade, insere-se na história, desenvolve-se no tempo. Isto faz com que o guia da ação seja o discernimento, respeitando sempre a variedade das culturas, dos povos, da interioridade das pessoas.
É por isso que a Companhia de Jesus pôde ter figuras como São Francisco Xavier, Matteo Ricci, De Nobili, Valignano. Nossas missões na América do Sul foram criativas junto ao povo e não o reduziram a um esquema teórico. A regra de ação nas missões sempre levou em conta a concretude dos lugares, dos tempos e das pessoas. A regra é este discernimento”.
O Padre Joseph Rabenirina, diretor da editora Ambozonyany, pergunta: “Ouvi de meus pais e de meus avós que os missionários franceses costumavam dar como penitência pelos pecados a plantação de árvores. O que pensa disso?”
“Parece-me uma intuição pastoral muito criativa! Pelo que você me diz, tratava-se de uma penitência social, ambiental, que se preocupa em construir a sociedade. Hoje, quando fui à ‘Cidade da amizade’, O padre Pedro me fez ver alguns pinheiros. Disse-me que ele própria os havia plantado, há vinte anos. Isto é realmente muito belo”.
No final do encontro, foram entregues ao Papa vários presentes. Entre eles, um livro sobre Antonio de Pádua Rahajarizafy, que foi o primeiro provincial malgaxe. Francisco o havia citado durante seu discurso no palácio presidencial, quando falava da cultura ‘fihavanana’. Em seguida, o Papa escreveu uma dedicatória no livro das bodas de ouro para os cinquenta anos da província malgaxe, que serão celebrados em 2021. Depois, estampou sua assinatura na tradução malgaxe da encíclica Laudato Si’. Em um clima de grande simpatia e também de uma certa confusão, Francisco se retirou enquanto os presentes entoavam o canto de Taizé ‘Ubi caritas’.
[1] Em Moçambique, os jesuítas trabalham em seis paróquias: uma na Arquidiocese de Maputo, outra na Arquidiocese de Beira e quatro na Diocese de Tete. No Zimbábue, administram nove paróquias. A atividade principal da província está ligada ao apostolado educacional, onde os jesuítas trabalham em dezoito escolas primárias e secundárias. Em sua maioria, são escolas que a Companhia administra em nome dos respectivos bispos e em colaboração com os Governos. A província possui cinco dessas escolas. Há também um centro social, dois centros de espiritualidade, dois projetos de assistência a órfãos e um projeto de reabilitação de crianças de rua.
[2] Um amplo processo de escuta e discernimento permitiu à Companhia de Jesus apresentar ao Santo Padre quatro preferências apostólicas universais, que são as seguintes: 1) Mostrar o caminho para Deus através dos Exercícios Espirituais e o discernimento; 2) Caminhar com os pobres, os descartados do mundo, os vulnerados em sua dignidade em uma missão de reconciliação e justiça; 3) Acompanhar os jovens na criação de um futuro de esperança; 4) Colaborar no cuidado da Casa Comum (Cúria Geral da Companhia de Jesus, ‘Preferências Apostólicas Universais da Companhia de Jesus - 2019-2029, Roma, 19 de fevereiro de 2019, p. 1 [texto original em espanhol], disponível em: https://jesuits.global/it/documenti/send/8-uap-docs/62-preferences-apostolicas-universales).
[3] A. Spadaro - M. Figueroa, “Fundamentalismo evangélico e integrismo católico. Un ecumenismo sorprendente”, em La Civiltà Cattolica Iberoamericana 1 (2017) n. 7, pp. 7-15; id., “Teología de la prosperidad. El peligro de un evangelio ‘diferente’”, em ibid., 2 (2018), n. 19, pp. 7-20.
[4] Cf. Bento XVI, “Homilia na missa de abertura da V Conferência Geral do Episcopado Americano e do Caribe” (esplanada do Santuário de Aparecida, 13 de maio de 2007): “A Igreja não faz proselitismo. Cresce muito mais por ‘atração’: como Cristo ‘atrai todos a si’ com a força de seu amor, que culminou no sacrifício da cruz, assim a Igreja cumpre sua missão na medida em que, associada a Cristo, realiza a sua obra conformando-se em espírito e concretamente com a caridade de seu Senhor”. Texto disponível em: http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/es/homilies/2007/documents/hf_ben-xvi_hom_20070513_conference-brazil.html.
[5] "Nota della Penitenzieria Apostolica sull'importanza del foro interno e l'inviolabilità del sigilo sacramentale”, de 1 de julho de 2019, disponível, em italiano, em: http://www.vatican.va/roman_curia/tribunals/apost_penit/ documentos / rc_trib_appen_pro_20190629_forointerno_it.htm.
[6] “Quando Pedro foi a Antioquia, eu o enfrentei em público, porque ele estava claramente errado. De fato, antes de chegarem algumas pessoas da parte de Tiago, ele comia com os pagãos; mas, depois que chegaram, Pedro começou a evitar os pagãos e já não se misturava com eles, pois tinha medo dos circuncidados. Os outros judeus também começaram a fingir com ele, de modo que até Barnabé se deixou levar pela hipocrisia dele. Quando vi que eles não estavam agindo direito, conforme a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro, na frente de todos: “Você é judeu, mas está vivendo como os pagãos e não como os judeus. Como pode, então, obrigar os pagãos a viverem como judeus?”” (Gl 2,11-14).
[7] O “ministro” da comunidade é o vice-superior.
[8] F. Fornos, “La red mundial de oración del Papa”, em La Civiltà Cattolica Iberoamericana 3 (2019) n. 30, pp. 64-69.
[9] A xenofobia é uma aversão genérica a estrangeiros, ao que é estrangeiro ou percebido como tal. Aporofobia representa o medo da pobreza ou dos pobres e também pode ser interpretada como repulsa aos pobres ou desamparados.
[10] Cf. ‘V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe’, ‘Documento Conclusivo’, Aparecida, 13 a 31 de maio de 2007 (‘Documento de Aparecida’), Bogotá, CELAM 2008, n. 43: “A realidade social, que descrevemos em sua dinâmica atual com a palavra globalização, impacta, portanto, antes de qualquer outra dimensão, nossa cultura e a maneira como nos inserimos e nos apropriamos dela. A variedade e riqueza das culturas latino-americanas, das mais originais àquelas que, com o passar da história e a miscigenação de seus povos, se sedimentaram em nações, famílias, grupos sociais, instituições educacionais e a convivência cívica, constituem um fato bastante óbvio para nós e que valorizamos como uma riqueza singular”. Cf. também ‘III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, “Puebla. A evangelização no presente e no futuro da América Latina” (Documento de Puebla), Bogotá, CELAM, 1979, nn. 307, 409.
[11] Fundado em 1888 por missionários jesuítas franceses, o colégio recebeu o nome de Saint-Michel em homenagem ao padre Michel Lanusse, que teve a ideia de fundá-lo. Hoje, é um instituto conhecido pela alta qualidade do ensino que oferece a seus 3.700 alunos.
[12] A Companhia de Jesus está presente em 11 das 22 dioceses da Igreja em Madagascar e desenvolve várias atividades pastorais ligadas à educação básica e universitária, à formação, tanto dos jovens como do clero e dos religiosos, ao apostolado dos Exercícios Espirituais, bem como aos apostolados sociais, da primeira evangelização e paróquia. A província foi fundada em 1971.
[13] Ao Padre Hilarion Rakotoarison, que perguntou qual era a principal prioridade apostólica das quatro estabelecidas pela Companhia, o Papa respondeu, sorrindo: “A primeira, a segunda, a terceira e a quarta. Todas!”. A Vincent Anastase Rakotovao, que lhe perguntou sobre a escolha do nome “Francisco”, o Papa disse: “Me veio à mente no Conclave, quando, no momento final da eleição, o cardeal Hummes me pediu para que não me esquecesse dos pobres”. Ao irmão Bernardin Ramarolahy, que lhe perguntou como viveu o clima daqueles dias, respondeu: “Senti um pouco de frio ontem, mas hoje me agasalhei melhor com um suéter”. Ao noviço Hasiniaina Iombonana Josephat, que lhe perguntou o que se lembra de seu noviciado, disse: “Era um noviciado clássico, como se fazia em outro tempo: tudo era regulado. Agradeça que a Companhia teve como geral o Padre Pedro Arrupe, que se dedicou à formação”.
[14] Cf. “Constituciones de la Compañía de Jesús. Examen primero y general, cap. 4, n. [64], em “San Ignacio de Loyola”, “Obras”, Madri, BAC, 1997, p. 478.
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“A soberania do povo de Deus”. Diálogos do Papa Francisco com os jesuítas de Moçambique e Madagascar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU