09 Setembro 2019
"Espiritualidade, bem viver, cuidado pela natureza, pelo Planeta e pela humanidade também têm que ir juntas na Amazônia, escutando e aprendendo daqueles que tiveram mais tempo para aprender e conviver em harmonia com ela: Os povos originários e tradicionais amazônicos".
O artigo é de Josep Iborra Plans, membro da Comissão Pastoral da Terra – CPT Nacional.
Após os céus novamente se fecharem com a fumaça e o ambiente político acima de nosso estado de Rondônia, dos mais devastados da Amazônia brasileira, não quero deixar de apresentar uma singela contribuição pessoal e comentário sobre o Instrumento Laboris, de preparação do Sínodo da Amazônia. Não é fácil, depois que a atenção do mundo novamente se voltou estes dias para nós, por causa do fogo e destruição.
A história pessoal de vida me levou para Amazônia em 1993, na diocese de fronteira de Guajará Mirim, no estado de Rondônia. Os primeiros anos, até o ano 2.000 fui vigário de Nova Mamoré. Um dos municípios que continuava a receber mais colonos e também grandes grileiros de terra, com imensas derrubadas e queimadas. Resultava muito doloroso ver a exuberante floresta amazônica sendo derrubada e queimada. Mesmo assim, a inexperiência me levou a apoiar quatro comunidades de invasores da Terra Indígena Karipuna, que já encontrei estabelecidas na minha chegada, os mais carentes de toda a Paróquia. Hoje lembro com arrependimento que contribui para que terra indígena fosse reduzida em 35.000 hectares, apesar dos protestos do CIMI. Este foi dos maiores erros dos meus primeiros anos na Amazônia. Com muitas dúvidas, apoiava a abertura da estrada BR - 421 através do Parque Estadual de Guajará Mirim, mas fui recuando, vendo a devastação, descontrole governamental e concentração fundiária aumentando dentro da antiga área indígena.
Porém, pouco a pouco fui percebendo que em boa parte estava no lado errado. Sempre havia muitas coisas que não entendia. Me ajudou participar dum encontro dos Bispos da Amazônia em Manaus, em 1997. No ano 2000 dediquei alguns meses ao mestrado, após uma primeira crise vocacional, a estudar a relação entre ecologia e teologia, uma temática que não tinha entrado no meu currículo teológico básico. O resultado foi um trabalho sobre o papel da Igreja na deflorestação da Amazônia, publicado anos mais tarde, com ocasião da Campanha de Fraternidade sobre Amazônia, em 2007. Antes, porém a reflexão me ajudou a mudar de prioridades pastorais.
O atendimento religioso exemplar da frente migratória. Nossa equipe missionária, como outras tantas, tinha chegado à região impulsada pelas transformações intensas provocadas pela colonização e migração dos anos 70, 80 e 90 na Amazônia. Que converteram o território Federal do Guaporé no atual Estado de Rondônia, passando de dois municípios, Porto Velho e Guajará Mirim, aos atuais 52. Um grande desafio para a Igreja Católica, de dar conta de atender a multidão de povo que estava chegando. Dezenas de novas paróquias foram criadas e centenas de comunidades e capelas rurais passaram a serem formadas e atendidas. Nos sete anos de vigário de Nova Mamoré apoiei a criação de 12 novas comunidades, formadas pelos colonos que chegavam, sempre mais no interior das linhas abertas na floresta por madeireiros clandestinos.
Novas paróquias e núcleos com milhares de pessoas continuavam precisando de atenção e de dedicação, numa concorrência cada vez maior com as igrejas evangélicas, que encontraram nesta situação o espaço para se expandir nas cidades e áreas rurais, tornando Rondônia no segundo estado mais evangélico do Brasil.
Padres estrangeiros éramos em torno de 80% do clero amazônico. Irmãs e freiras, numa porcentagem mais equilibrada, com as religiosas presentes de origem brasileiro sulista. Um grande desafio de décadas, ao qual padres, religiosos e leigos se dedicaram com grande dedicação missionária, criando e equipando com toda estrutura as novas comunidades e paróquias. A labor de uma vida de inúmeras pessoas, com grande contribuição de congregações religiosas, auxiliando as nascentes paróquias e dioceses, sempre carentes de equipe qualificada, que também não deixavam de ter também grande esforço na formação de seminaristas próprios, em busca de autonomia.
A diminuição de vocações do exterior forçou a busca de apoio da Igrejas Irmãs do Brasil, que também de forma generosa e dedicada apoiaram e continuam presentes nas mais diversas paróquias e dioceses amazônicas do Brasil, com apoio e dedicação da Comissão Episcopal da Amazônia, da CNBB. Porém neste processo, indígenas e comunidades tradicionais convertidas em minoria, ficaram relegadas pelas necessidades peremptórias, desta migração massiva e continuada da colonização.
(Fonte: www.6bis.eb.mil.br)
Inclusive escolhendo governadores e deputados do novo Estado de Rondônia, os de fora acabamos dominando completamente o cenário político do poder estadual. Os povos originários e tradicionais se converteram numa minoria afastada e insignificante eleitoralmente, situadas em comunidades isoladas. Povo marginalizado, cada vez mais jogados nas periferias de algumas poucas cidades, como Porto Velho, Guajará Mirim, Costa Marque e o município de Pimenteiras, que ainda tem um número significativo de população de origem autóctone. Muito abandonados, não apenas pelas autoridades, mas inclusive pela própria Igreja Católica: Os indígenas confiados ao Conselho Missionário Indigenista, lá onde a autoridade governamental, a Funai, não os enxotava. E os ribeirinhos e seringueiros, atendidos, apenas pelas tradicionais visitas de desobriga, uma vez por ano.
Quando sofre a natureza, também sofre o ser humano. No estudo sobre ecologia, li que quando a natureza sofria, o ser humano também acabava sofrendo. Fiquei me perguntando, se também era assim em Rondônia? Porque a população colonizadora tinha achado aqui oportunidades de terra, trabalho, renda... Para eles a ocupação e desmatamento da floresta tinha resultado em terra, sucesso, oportunidades, trabalho e fartura. Aí concluí que, a população que tinha sofrido mais pela devastação ambiental e que continuava sendo sempre mais acuada pelo processo migratório e colonizador, era a população indígena e tradicional.
Assim, com o apoio de minha equipe missionária, me dediquei mais aos ribeirinhos quilombolas e indígenas do Vale do Guaporé, na divisa da Bolívia, aos quais voltando prioritariamente os oito últimos anos de ministério presbiteral. Me tornei com eles “beiradeiro”. Deles recebi a devoção do Senhor Divino Espírito Santo, a maior tradição e espiritualidade do Vale do Guaporé. E também me valeu as piores perseguições.
Agora que o Papa Francisco resgatou a importância da ecologia para nossa fé e o olhar do mundo e da Igreja para a Amazônia, também são para estes povos que aponta prioritariamente o documento preparatório do Sínodo da Amazônia. Aqueles que continuam sendo os mais atacados e prejudicados em toda a Pan-amazônia. Perseguidos pelas frentes madeireiras, pela bandidagem da grilagem de terras, da mineração, dos hidrocarburos, das usinas hidroelétricas, da pecuária, das infraestruturas de transporte e pelas monoculturas do agronegócio exportador. Junto as pastorais sociais de Porto Velho temos refletido bastante sobre nosso compromisso neste cenário.
A conversão ecológica da Igreja de Rondônia. Para muitas comunidades e paróquias de Rondônia, parece que o Sínodo não é para elas. Não se sentem muito representadas neste olhar dos documentos de preparação, que se volta especialmente para os indígenas. Mas o primeiro que nos pedia a Laudato Si' já era a conversão para nossa relação com a Criação Divina. Mesmo que a crise econômica está empurrando muitas pessoas de novo para “o mato”, para a colonização do sul do Amazonas, norte do Mato Grosso ou invadindo os últimos remanescentes de florestas de Rondônia.
Hoje o restante território dos Karipuna é das mais ameaçadas de todas as terras indígenas do estado, pelos madeireiros e invasões organizadas. A Reserva Extrativista de Jaci Paraná está invadida há décadas. O mal exemplo e a impunidade fazem que sejam persistentes os saques e as invasões territoriais das reservas dos seringueiros de Machadinho do Oeste. Campanhas eleitorais espalharam promessas de “liberação” das queimadas e da invasão das terras das unidades de conservação. Enquanto as ocupações em demanda de reforma agrária são duramente reprimidas e criminalizadas, as invasões de reservas obtém ampla tolerância e impunidade.
Urge para os agricultores a conversão para agroecologia. Mudar para “produzir sem destruir”, segundo o lema da saudosa Associação de Ouro Preto do Oeste (APA). Todos nós católicos, em virtude de nosso dever de fraternidade com os povos originários desta terra e de nossa responsabilidade com a Criação Divina, não podemos tolerar estas atitudes que continuam vitimando os povos indígenas e tradicionais, assim como os seus territórios e espaços de vida e sobrevivência. Temos que estar ao lado deles e impedir esta barbárie.
Por outro lado, muitos rondonienses de agora, mal conhecem nenhuma aldeia ou povo indígena, por mais que estejam aqui há décadas, e se encontrem no estado pelo menos 60 povos diferentes. Esta é outra conversão que nos pede o Sínodo, olhar e escutar os indígenas e comunidades tradicionais. É a vez deles. Também para que tenham a dedicação justa e necessária, prioritária, das paróquias e comunidades. Mesmo que formadas maciçamente pela população das frentes colonizadoras. Eles que foram acolhidos, formados e atendidos de forma exemplarmente dedicada, durante as últimas décadas em nossas dioceses. Agora olhem para os ribeirinhos, seringueiros e indígenas que já estavam aqui antes. Os respeitem e apoiem em suas necessidades. Nem que sejam comunidades pequenas, residuais, periféricas, de difícil acesso e de outra forma de ser.
Eles merecem todo o nosso empenho e dedicação para garantir os seus territórios, suas culturas, sua vida. Contra as ambições desmedidas e do falso progresso. Como as novas usina de Tabajara ou do Ribeirão, por exemplo. Contra tantas ameaças que ainda vitimam como sempre aos mesmos, assim como aos rios e as florestas das quais depende sua sobrevivência.
Também nas Pastorais da Terra de Rondônia e outras da região amazônica, o povo alvo de nosso apoio sempre foram mais os excluídos do processo de ocupação. Os colonos, os pequenos agricultores que chegavam atraídos pelas promessas de terras que não eram cumpridas. Eles continuam sendo a maior parte dos grupos que exigem nossa atenção, seja pelas demandas de terra por reforma agrária, seja pelos conflitos e contínuas expulsões de grupos de posseiros. A mesma problemática amazônica que deu origem a nossa pastoral nos anos setenta.
Em todas as CPTs da Amazônia há uma grande expectativa, criada pelo processo sinodal de escuta. E também certo desconforto, porque o documento preparatório do Sínodo não parece dar atenção suficiente ao tema dos pequenos agricultores, da violência no campo e os conflitos agrários pelas disputas de terras. Assuntos que atingem de forma desproporcional a região amazônica, se comparados com o resto do Brasil.
A chamada do Sínodo é clara: Nos dediquemos mais a estes grupos de comunidades tradicionais, que também nas últimas décadas cada vez mais se aproximaram da CPT e nós de suas iniciativas e necessidades. Ainda, a conversão ecológica: A resistência social destes grupos não é possível sem a defesa e proteção ambiental da floresta e da Amazônia. Tanto na reformulação da agricultura, não apenas sem veneno, mas também mais adaptada e harmoniosa com o bioma amazônico, como os camponeses agroecológicos mais conscientes já apontam.
É neste empenho que as populações indígenas e tradicionais têm muito a ensinar aos pequenos agricultores, que aqui chegaram para fincar suas raízes. Cuidando das águas e das árvores, que protegem as nascentes e a fragilidade do solo. Deixar-se “amazonizar”, como nos ensina a professora Márcia. “A gente cultiva a terra e a terra cultiva a gente”, como canta maravilhosamente o artista e poeta Zé Pinto.
O desrespeito pelo ser humano e pela natureza andam de lado, como comprovamos pelos piores índices de violência e de desmatamento. Espiritualidade, bem viver, cuidado pela natureza, pelo Planeta e pela humanidade também têm que ir juntas na Amazônia, escutando e aprendendo daqueles que tiveram mais tempo para aprender e conviver em harmonia com ela: Os povos originários e tradicionais amazônicos.
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O desconforto de Rondônia com os documentos do Sínodo da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU