26 Julho 2019
Dado como morto após a queda da União Soviética, o planejamento está em cena de novo, impulsionado pelo Big Data. As corporações usam-no para turbinar o consumismo. Mas ele pode impulsionar um socialismo radicalmente democrático.
O artigo é de Cédric Durand e Razmig Keucheyan, publicado por Outras Palavras, 12-07-2019. A tradução é de Eleutério F. S. Prado.
Ao fim do século XX, quando o bloco soviético caiu, a questão do planejamento econômico parecia resolvida de uma vez por todas. Na oposição entre o mercado e o plano, o mercado havia conquistado uma vitória decisiva. Quaisquer que sejam as modalidades particulares de sua implementação na URSS, Iugoslávia, Hungria, Alemanha Oriental ou China – as variantes foram muitas –, o planejamento não conseguiu constituir uma alternativa sustentável e credível. Mas trinta anos depois da queda do muro de Berlim, uma coisa é clara: o planejamento não é um assunto secreto. Nos quatro cantos do mundo, os debates que o preocupam estão ganhando impulso, tanto no campo acadêmico quanto no campo política. Em fevereiro de 2018, uma conferência de três dias em Auckland, Nova Zelândia, a convite de sindicatos e um centro de pesquisa, foi intitulada “O retorno do planejamento econômico”. A chamada para obter contribuições declara:
Nas atividades econômicas atuais, há um crescimento notável do planejamento: em termos de estratégias implementadas, a proliferação de técnicas de gerenciamento de risco, sistemas de informação ou no campo dos serviços de entrega e da logística. O planejamento econômico tornou-se uma norma no capitalismo contemporâneo. A questão, portanto, não é mais planejar ou não as atividades econômicas, mas como e para quais propósitos [1].
Em setembro de 2017, o Financial Times publicou uma matéria: “A revolução do Big Data pode ressuscitar a economia planejada” [The Big Data revolution can revive the planned economy]. Aos olhos de um de seus editorialistas, as possibilidades computacionais oferecidas pelo Big Data e pelos algoritmos sugerem que algumas falhas do planejamento central do século XX poderão ser superadas no futuro [2].
Vários motivos levam à reabertura desta temática.
Primeiro, a crise do capitalismo, aquela que irrompe em 2008 e na qual ainda nos encontramos. Essa crise não só demonstrou, mais uma vez, a irracionalidade do mercado ou, mais fundamentalmente, o que Marx chama de “anarquia da produção”. Mas as tentativas de resolvê-la dependeram da maciça intervenção do Estado. Nestas condições, a vitória do mercado “livre e não distorcido” parece menos marcante. Planejar, é claro, é algo além da intervenção simples – e até maciça – dos Estados nos processos econômicos e financeiros. Implica uma forma de controle político sobre a produção, e não apenas a regulamentação ex-post das trocas mercantis. Esse controle pode ser mais ou menos democrático, mais ou menos centralizado e mais ou menos automatizado. Mas é ex-ante, embora seja acompanhado por revisões periódicas das previsões do plano.
Em segundo lugar, novos desafios estimulam o repensar do planejamento. Um deles é a transição ecológica. No campo ambiental, muitas pessoas fazem planejamento sem saber que o fazem ou sem usar o termo. É desenvolvendo cenários ecológicos que os especialistas em energética trabalham atualmente neste campo. A “Associação negaWatt” desenvolve alguns dos modelos de sustentabilidade mais influentes na França [3]. Fundado em 2001, este grupo de engenheiros diz:
Um cenário energético é a tradução em figuras de uma certa visão do futuro, a representação de um futuro tão viável quanto possível, uma ferramenta para refletir sobre as prioridades, os ritmos, a coerência das orientações de uma estratégia de energia sustentável [4].
O planejamento não pode ser definido de modo melhor. Um “cenário” refere-se a uma visão do futuro baseada em prioridades quantitativas, que é obrigatória para os atores econômicos. Tem uma coerência global, fruto de uma deliberação democrática, em que os “especialistas” alimentam os debates. Um cenário permite projetar a longo prazo, abandonando, assim, a “visão de curto prazo” do mercado. O cenário “Negawatt” diz como o aparelho produtivo deve evoluir para atingir a meta de “emissões zero” até 2050. Transporte, agricultura, construção e energia são objetos de cenários que são então mesclados em um “roteiro”.
Esses cenários de transição ecológica têm duas características. Em primeiro lugar, seu ponto focal é o setor de energia:
A temporalidade da energia é o longo prazo: grande parte da infraestrutura e da organização econômica e social que estamos construindo hoje vão determinar a produção e o consumo de energia na segunda metade deste século [5].
Essa centralidade da energia decorre do fato de que a mudança climática é consequência dos gastos insustentáveis nesse campo. As experiências de planejamento do século XX visavam o crescimento da produção, não a diminuição do consumo de energia, daí seu caráter “produtivista”. São resultados de uma visão de planejamento que procurava, muitas vezes, o alçar de economias atrasadas em relação às economias capitalistas avançadas. No caso da transição energética, o foco é colocado na restrição no uso de insumos e, mais amplamente, na interação com o metabolismo do planeta.
O controle da energia e da infraestrutura no longo prazo terá impacto na atividade econômica em geral. O sistema energético em vigor em uma sociedade determina o tipo de bens produzidos, bem como as modalidades de sua circulação. Alguns economistas ecológicos desenvolveram uma teoria do “valor-energia [6]“. Todas as mercadorias contêm um quantum de energia (do qual o trabalho humano é uma das modalidades), que deve ser reduzido como parte da transição energética.
Em segundo lugar, os cenários ecológicos são baseados em uma representação física, não econômica, da economia e de sua evolução. Indicadores econômicos – tais como preço, crescimento, renda, inflação, valorização do mercado… – mentem do seu ponto de vista. O desperdício de energia, por exemplo, aumenta o PIB. Eles estão baseados na ideia, anterior à consciência ecológica, de que o desenvolvimento da economia não está limitado por recursos finitos. Não contemplam a ideia de limite natural do crescimento. Pensar em termos de energia, área agrícola, CO², materiais, biomassa… permite integrar essa restrição e superar as aporias da hipótese de “substitutibilidade”. Segundo esta hipótese, o investimento em capital humano, equipamentos e infraestrutura poderia compensar o esgotamento dos recursos naturais [7].
À sua maneira, os especialistas da transição ecológica encontram, assim, uma intuição fundadora da “crítica da economia política” de Marx. Partindo de sua crítica ao fetichismo das mercadorias, este autor visa subverter as categorias pelas quais a economia clássica representava os processos econômicos. Essa crítica abre o caminho para um projeto econômico radicalmente diferente. Os fracassos no planejamento soviético e suas variantes, no entanto, revelaram grosseiramente seu caráter fragmentário.
O comunismo imaginado por Marx e Engels se opõe à economia capitalista na medida em que não envolve nem mercadoria, nem trabalho assalariado. Trata-se de superar, por meio da cooperação, a divisão em classes que separa os produtores dos meios de produção e a divisão do mercado que separa os produtores de seus produtos. O primeiro ponto é atingido por meio da expropriação dos proprietários capitalistas e a socialização dos meios de produção. O segundo, pelo planejamento, que deve superar o mercado como mecanismo dominante de coordenação.
Para Marx, o papel do planejamento é assegurar que “as relações sociais existentes entre os seres humanos e seu trabalho e entre os seres humanos e o produto de seus trabalhos se tornem algo simples e transparente, tanto na produção quanto na distribuição” [8]. Engels diz que “as utilidades dos vários objetos de uso, tomadas em si mesmas e em relação às quantidades de trabalho necessárias para sua produção, determinarão o plano” [9]. O cálculo econômico comunista deve, portanto, lidar com dois elementos: por um lado, com “os efeitos úteis”, isto é, o valor de uso dos diferentes produtos usados que o plano se propõe a realizar; por outro lado, os recursos necessários para sua produção – ou seja, as quantidades de trabalho, os meios de produção em sentido amplo, sejam máquinas, edifícios, produtos intermediários ou recursos naturais.
O planejamento deve ocorrer sem o uso do dinheiro. Por meio do plano, a atividade econômica passa a ter um caráter diretamente social, que permite à sociedade, plenamente consciente de si e de seus recursos e capacidades, satisfazer as suas necessidades. Desembaraçada da fragmentação dos trabalhos privados e do fetichismo das mercadorias, aliviadas do risco de superprodução inerente à produção mercantil, as relações entre os seres humanos na produção tornam-se transparentes. Eles entram em acordo a priori sobre o que e quanto produzir, o que permite a Engels esperar que “as pessoas resolvam tudo de maneira muito simples sem a intervenção do famoso “valor”.
É com este roteiro em mente que, no início da década de 1920, os economistas soviéticos previam a construção de um sistema de produção totalmente planejado, sem dinheiro e, portanto, sem preço, onde tudo seria calculado com precisão e distribuído de acordo com a necessidade [10]. Este projeto nunca chegou a ver a luz do dia. No rescaldo de batalhas políticas e de terríveis transtornos, surgiu um modelo de planejamento imperativo. Desde o primeiro plano stalinista de cinco anos, de 1928, até a dissolução do Gosplan, em abril de 1991, esse sistema se constituiu como um modo de organização da atividade econômica alternativo ao capitalismo ocidental.
Para bem apreciar esta experiência histórica, é preciso se guardar de qualquer ilusão retrospectiva e, em particular, evitar postular sua inescapável vocação para ficar para trás diante de seu oponente na Guerra Fria. Assim, no início dos anos 1960, o slogan soviético “Alcançando e ultrapassando os países mais avançados!” parecia plausível. Raymond Aron, em suas dezoito lições sobre a sociedade industrial (1962), considerou possível a superação da produção industrial dos Estados Unidos pela da URSS [11]. Até a edição de 1989, Economics, o famoso livro didático de Paul Samuelson, afirmava:
A economia soviética é a prova de que, ao contrário do que muitos céticos anteriormente acreditavam, uma economia de comando socialista pode funcionar e até mesmo prosperar [12].
No meio século entre a revolução de outubro e o final dos anos 1960, o sistema soviético transformou uma sociedade rural e fracamente industrializada herdada do império czarista, construindo um país predominantemente urbano com um os melhores sistemas educativos e com um dos mais poderosos dispositivos industriais [13]. Este impressionante sucesso econômico – somente o Japão fez melhor em termos de produto interno per capita durante este período [14] – foi alcançado apesar, mas também ao custo, de dezenas de milhões de mortes durante a guerra civil pós-revolução, fomes provocadas por coletivizações forçadas, terror stalinista, guerra total contra o nazismo e imensa destruição ambiental.
A partir dos anos 1970, o modelo chegou ao limite, com o surgimento de uma série de sintomas de que entrava em crise: declínio das taxas de crescimento da renda nacional, inflação, dívida externa, insatisfação quantitativa e qualitativa da demanda por bens de consumo [15].
O planejamento soviético possibilitou o desenvolvimento industrial e demonstrou a viabilidade do planejamento econômico em larga escala. Mas a lacuna entre o sistema implantado e o projeto marxiano mostrou-se considerável, o que permite diagnosticar um triplo fracasso da experiência soviética em relação às suas ambições iniciais.
Primeiro, o processo de implementação do plano era muito caótico. O cálculo econômico no interior do plano deriva das prioridades decididas ao nível central. Apoiava-se em padrões de produção e de consumo, bem como de um sistema de balanços materiais destinado a equilibrar, durante um certo período, os recursos com as necessidades de um dado produto ou, em um nível mais agregado, um tipo de produção [16]. No entanto, ao longo de sua existência, o planejamento soviético caracterizou-se por apresentar discrepâncias significativas entre as previsões e os resultados, as quais eram fontes de enormes desperdícios, requerendo incessante ajustes e acordos informais entre as empresas.
Neste contexto – e esta é uma segunda falha –, os preços não funcionavam apenas como unidades de conta para organizar a produção, mas desempenhavam também um papel na alocação de recursos. O nível dos preços era estabelecido durante uma barganha burocrática vertical [17]. Daí a necessidade de acumular dinheiro de tal modo que este passava a ser procurado por si mesmo, tanto por famílias quanto por empresas [18]. De fato, o seu uso não se constituía apenas num exercício formal de contabilidade, mas se tornava uma condição para o comércio na economia legal – era o único meio de pagamento – e ainda mais no contexto da economia paralela. Em suma, o dinheiro continuou ativo e influenciava o comportamento dos agentes econômicos. Essa influência atesta a persistência de formas latentes de competição de mercado e a fragmentação dos processos de trabalho [19], o que impedia que as relações econômicas se tornassem transparentes [19].
Terceiro fracasso: longe de alcançar a abundância, a escassez tornou-se o princípio regulador das economias planejadas. Isso não refletia apenas a disfunção estrutural na alocação de produtos, mas também, à medida que as aspirações para o consumismo eram reforçadas, a incapacidade de estabelecer normas culturais alternativas de consumo em relação às dos países ocidentais. O caráter autoritário – em certos períodos “totalitários” – do partido-Estado soviético aparece aqui. No nível econômico, resultava na perpetuação de uma separação vertical dos produtores dos meios de produção; no contexto da guerra fria, o investimento voltava-se para uma preferência por despesas militares em detrimento da produção de bens de consumo. Sem democracia, a burocracia soviética entrou em confronto militar e produtivista com o Ocidente, sem conseguir a legitimidade do projeto soviético para a satisfação das necessidades da população.
[1] Veja-se a chamada no endereço.
[2] Thornhill John, The Big Data revolution can revive the planned economy, Financial Times, 4 de setembro de 2017.
[3] Um “megawatt” corresponde à economia de uma unidade de energia.
[4] Ver Association negaWatt, Manifeste négaWatt. En route vers la transition énergétique! Paris, Actes Sud, 2015, p. 91.
[5] Ibidem, p. 92.
[6] Ver Costanza Robert, “Embodied energy and economic valuation”, Science, vol. 210 (4475), dezembro de 1980, pp. 1219-1224.
[7] Ver Arrow Kenneth et al., “Are We Consuming Too Much?”, Journal of Economic Perspectives, 18 março de 2004, pp. 147-172.
[8] Marx Karl, Le Capital, Livre 1, Puf, Paris, 2009 [1867], p. 90.
[9] Engels Friedrich, L’Anti-Dühring (M. E. Dühring bouleverse la science) (1878), Paris, Editions sociales, 1950, p. 349.
[10] Ver Boukharine; Nicolas et Preobrajenski, Evgueni, ABC du communisme, Paris, Maspero, 1968.
Asselain Jean-Charles, “Comment le capitalisme a remporté le conflit du siècle”, in Bernard Chavance,
Eric Magnin, Ramine, Motamed-Nejad e Sapir, Jacques, Capitalisme et en perspective, Paris, La Decouverte, pp. 93-102.
[11] Asselain Jean-Charles, “Comment le capitalisme a remporté le conflit du siècle”, in Bernard Chavance, Eric Magnin, Ramine, Motamed-Nejad e Sapir, Jacques, Capitalisme et Socialisme en perspective, Paris, La Decouverte, pp. 93-102.
[12] Samuelson Paul A. e Nordhaus William D., Economics, New York, McGraw-Hill, 1989, p. 837.
[13] Bettelheim, Charles, L’Industrialisation de l’URSS dans les années trente, Paris, Editions de l’EHESS, 1982.
[14] Robert, Allen, From Factory to Farm. A Reinterpretation of the Soviet Industrial Revolution, Princeton, Princeton University Press, 2003, p. 7.
[15] Wladimir, Andreff, La Crise des économies socialistes, Grenoble, PUG, 1993, pp. 275-322.
Michael, Ellman, “Economic calculation in socialist economies”, in Eatwell John et al. (dir.), Problems of the planned economy, Londres, Macmillan, 1990, pp. 91-96.
[16] Michael, Ellman, “Economic calculation in socialist economies”, in Eatwell John et al. (dir.), Problems of the planned economy, Londres, Macmillan, 1990, pp. 91-96.
[17] Ver Alec, Nove, L’Économie soviétique, Paris, Plon, 1963, pp. 198-214. Ver também Janos, Kornai – Le Système socialiste, Grenoble, PUG, 1996, pp. 183-188.
[18] Sapir Jacques, “Le debat sur la nature de l’URSS”, in Ramine Motamed-Nejad, URSS et Russie rupture historique et continuité économique, Paris, Puf, 1997, pp. 98-99. Ver também Aglietta, Michel e Sapir, Jacques, “Inflation, penurie et l’interpretation des desequilibres dans les economies de type sovietique”, in Ivanter, Vladimir e Sapir, Jacques, Monnaie et Finances dans la transition en Russie, Paris, L’Harmattan/Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1995, pp. 3-40.
[19] Bettelheim, Charles, Calcul économique et formes de propriété, Paris, Maspero, 1970.
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