03 Julho 2019
“Durante muito tempo, a relação entre o catolicismo e a política se centrou na implementação de políticas que poderiam ser mais ou menos progressistas, mas substancialmente baseadas em um consenso político e cultural. Esse consenso entre a Igreja e as nossas comunidades políticas não existe mais.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado em La Croix International, 02-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Carola Rackete, uma capitã de barco alemã de 31 anos, foi presa no porto italiano de Lampedusa no dia 29 de junho por salvar migrantes de se afogarem no Mediterrâneo.
A prisão ocorreu por insistência do ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, o líder emergente do partido anti-imigração do país, a Liga.
Poucas horas após a prisão, o arcebispo Gian Carlo Perego, de Ferrara-Comacchio – a arquidiocese do norte da Itália onde eu fui batizado, confirmado e me casei – propôs que o porto de Lampedusa fosse rebatizado de Capitã Rackete.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a cidade de Ferrara tem sido governada por forças políticas de centro-esquerda. Mas, no mês passado, ela caiu nas mãos da direita, quando o partido de Salvini venceu as eleições, marcando uma reversão impressionante dos últimos 70 anos.
Enquanto isso, do outro lado da praça principal da cidade, está a residência do arcebispo. Desde 2017, ela é ocupada por Perego, um dos clérigos mais socialmente progressistas e francos da Itália em favor da ajuda aos imigrantes.
Essa situação é emblemática da mudança no equilíbrio de poder que muitas Igrejas locais na Itália estão experimentando agora.
Esse é o resultado de duas razões separadas, mas interconectadas – primeiro, a nomeação de novos bispos pelo papa Francisco para dioceses pastoralmente negligenciadas; e, segundo, os ventos contrários na situação política nacional e local.
Ferrara tem uma interessante história eclesiástica. No período crucial que se seguiu ao Concílio de Trento, seu bispo era Giovanni Fontana (1590-1611).
Primeiro, ele havia sido o bispo auxiliar de São Carlos Borromeu, o homem que mais bem modelou e definiu o ofício pastoral dos bispos no catolicismo tridentino.
Fontana foi um arquirreformador em uma diocese e em uma cidade que, em 1598, ficaram sob o controle direto do papado.
Durante dois séculos – até a invasão de Napoleão em 1796 e depois a unificação do novo Reino da Itália em 1861 – os legados cardeais governariam Ferrara.
Assim, a cidade estava eclesiástica e politicamente sob o controle imediato de Roma, que muitas vezes usava a sé de Ferrara como prêmio a ser dado aos prelados.
Isso continuou basicamente até ontem.
Entre os anos 1980 e a eleição do Papa Francisco, Ferrara foi quase um desastre do ponto de vista pastoral.
O último arcebispo com um projeto pastoral e a energia para realizá-lo foi Filippo Franceschi, que atuou de 1976 a 1982.
Seus sucessores eram bons homens, mas foram enviados a Ferrara para se preparar seja para a aposentadoria, seja para a promoção a uma sé episcopal maior e mais importante.
O primeiro foi Luigi Maverna (1982-1995), um clérigo que passou anos trabalhando na secretaria da Conferência Episcopal Italiana durante tempos turbulentos.
Ele encerraria seu ministério em Ferrara antes de ser substituído pelo teólogo moral sediado em Roma Carlo Caffarra (1995-2003).
A nomeação de Caffarra foi um caso clássico de promoveatur ut amoveatur. Ele foi “chutado escada acima” (ou seja, removido) depois de se tornar visível demais para os seus escritos controversos sobre questões de moral sexual que encontraram seu espaço no magistério de João Paulo II.
Ferrara foi apenas um trampolim para Caffarra, pois, no fim, ele se tornou cardeal-arcebispo de Bolonha.
Em setembro de 2016, ele foi um dos quatro cardeais que emitiram as infames “dubia” que desafiaram o ensinamento de Francisco na Amoris laetitia. Caffarra morreu em 2017.
Os dois últimos arcebispos de Ferrara – Paolo Rabitti (2004 -2012) e Luigi Negri (2012-2017) – foram ambos promovidos de suas designações anteriores como chefes da diocese de San Marino, na república independente de mesmo nome, perto da costa do Adriático.
Durante o tumultuado mandato de Negri, Ferrara tornou-se algo semelhante à capital italiana da oposição ao Papa Francisco.
As declarações públicas do arcebispo eram críticas (ou pior) em relação ao papa jesuíta.
Além disso, Negri confiou uma das maiores e historicamente mais importantes paróquias da cidade central à “Familia Christi”, uma fraternidade sacerdotal conhecida pelo seu tradicionalismo teológico e litúrgico.
Ele procurou proteger e elevar o grupo como o paradigma do catolicismo ortodoxo.
Então, em fevereiro de 2017, poucos meses depois de Negri alcançar a idade normal de aposentadoria de 75 anos, Francisco escolheu Giancarlo Perego para ser arcebispo de Ferrara. A maioria dos católicos da arquidiocese acolheram a escolha como um sinal de esperança.
Perego foi a Ferrara com a reputação de ser um clérigo enérgico e franco, total e publicamente engajado em questões relativas aos migrantes.
Ele havia atuado como diretor da Migrantes, a fundação dos bispos italianos em matéria de migração.
Ele não teve dias fáceis, devido ao fato de que seu antecessor (Negri) ainda mora na arquidiocese e de que o mesmo antecessor não parou suas críticas públicas contra Francisco.
O arcebispo Negri reside em um apartamento na paróquia supervisionada pela “Familia Christi”. Desde dezembro de 2018, a fraternidade sacerdotal tradicionalista está sob investigação da Congregação para a Doutrina da Fé.
O laicato católico de Ferrara teve que suportar três décadas de negligência de Roma, assim como um clero cada vez menor e mais velho. Isso é comum em muitas Igrejas locais na Europa. Mas aqui, em particular, a arquidiocese nunca se recuperou realmente depois de 1984, quando os jesuítas deixaram a “Casa Cini”, um centro cultural que eles administravam no centro da cidade.
No entanto, a última gota foi a rixa que o arcebispo Negri criou sobre o tradicionalismo, que nunca havia sido uma questão importante na arquidiocese.
A única exceção era uma paróquia no centro da cidade, onde algumas poucas pessoas nostálgicas pelo fascismo se reuniam para celebrar a missa em comemoração a Italo Balbo, um herói local da aviação e profeta de Mussolini.
Por razões tanto políticas quanto teológicas, Negri era um defensor entusiasta do motu proprio de Bento XVI de 2007, Summorum pontificum, que liberalizou o uso da Missa Tridentina. Isso teve graves consequências em Ferrara, não só causando divisões em toda a arquidiocese, mas também dentro das paróquias.
Muitos viram a nomeação do arcebispo Perego como um sinal de que a ajuda está a caminho da Igreja local de Ferrara. Espera-se que não seja tarde demais. Mas a recente eleição do prefeito de direita e do conselho da cidade mudou radicalmente a situação política e criou novos desafios.
Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, existe um governo municipal em Ferrara apoiado por extremistas de direita com simpatias fascistas.
É uma mudança radical para uma cidade que, como muitas outras na Itália, alcançou a transição do fascismo para a democracia através do fogo da guerra, seguido por alguns meses de vendetas privadas depois da Libertação, em abril de 1945.
Ferrara foi um dos primeiros berços do fascismo, onde os católicos apoiavam Mussolini. Mas, depois da guerra, seu povo abraçou totalmente a democracia.
Por outro lado, os socialistas e os comunistas haviam sido ferozmente anticlericais antes da Segunda Guerra Mundial, mas, depois de 1945, eles aceitaram a partilha do poder com os católicos.
Se não no conselho da cidade, pelo menos nas salas de reuniões, os católicos e os esquerdistas trabalharam juntos para tomar decisões importantes sobre a economia e as empresas de propriedade da cidade.
Essa estranha aliança era algo típico em toda a Itália e sobreviveu até a era Berlusconi (1994-2011).
O que está acontecendo agora com Ferrara é apenas o exemplo mais chocante do que está acontecendo em todo o país sob a direção de Matteo Salvini e o seu partido, a Liga.
Em uma cidade com um problema de décadas com uma economia estagnada e a falta de empreendedores, a última eleição, subitamente – e quase magicamente –, tornou-se um referendo sobre a imigração. E a Liga venceu com grande maioria.
Essa é a situação de uma cidade em particular, mas diz muito sobre o paradoxo do pontificado do Papa Francisco no mundo ocidental.
Durante muito tempo, a relação entre o catolicismo e a política se centrou na implementação de políticas que poderiam ser mais ou menos progressistas, mas substancialmente baseadas em um consenso político e cultural.
Esse consenso entre a Igreja e as nossas comunidades políticas não existe mais.
Por um lado, havia uma Igreja clerical formada por católicos politicamente moderados ou conservadores.
Por outro, havia uma elite política que consistia em progressistas, mais ou menos, que lidavam com uma Igreja cuja relevância (ou irrelevância) pública se limitava ao seu ensino sobre a moral sexual.
A Igreja e os políticos trabalhavam juntos, em um respeito silenciosamente mútuo e concordado pela separação das áreas de competência.
Essa costumava ser uma das principais diferenças entre o catolicismo norte-americano e europeu no campo da política.
Mas agora houve uma inversão de posições. Os bispos que o Papa Francisco nomeou devem lidar com movimentos e partidos políticos radicalmente anti-establishment que não têm medo de antagonizar com a Igreja Católica.
Políticos como Matteo Salvini são provocativos porque eles sabem que podem contar com os votos de alguns (ou mesmo de muitos) católicos.
Isso é semelhante à situação dos anos 1920 e 1930, em que as hierarquias clericais relutavam em reagir contra os regimes autoritários a fim de colher os benefícios prometidos por Mussolini e seus semelhantes.
Mas a sua relutância também se deveu às tendências políticas dos católicos comuns. E os bispos próximos a Francisco não têm medo de falar contra políticos como Salvini sobre as questões de imigração.
Por muito tempo, os chamados “católicos do Vaticano II” nem sempre puderam contar com os seus bispos.
Em vez disso, eles contavam com líderes culturais e políticos que encarnavam uma dissidência crítica clara, embora frequentemente silenciosa, das hierarquias.
Agora, apesar da enorme crise de autoridade dos bispos por causa do abuso sexual clerical, esses católicos não têm outros líderes visíveis do que os bispos nomeados por Francisco e aqueles que são abertamente leais a ele.
Essa situação não é apenas algo típico da Itália, mas também de outras regiões e áreas do mundo.
Se olharmos para a América Latina, por exemplo, fica claro que, em apenas poucos anos, Francisco não tem mais interlocutores políticos no continente, dada a virada que muitos países deram em relação a líderes de direita ou a “homens fortes” populistas e antissistema.
Talvez estava escrito nas estrelas que um pontificado engajado de maneira nova em questões sociopolíticas em nível global teria dificuldade em contar com um alinhamento político. Até agora, Francisco produziu principalmente um “desalinhamento”. Ele libertou a Igreja Católica de uma aliança inevitável com os conservadores baseada apenas nas “questões da vida”.
E o resultado pode ser que o catolicismo agora embarcou em um longo caminho no deserto político.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O deserto político do catolicismo local em tempos de Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU