29 Mai 2019
Em seus primeiros comentários diretos sobre o caso do ex-cardeal Theodore McCarrick, o Papa Francisco disse que “sobre McCarrick eu não sabia nada, obviamente, nada, nada”.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 28-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Eu disse isso várias vezes, que eu não sabia de nada, não fazia ideia”, disse Francisco em entrevista à jornalista mexicana Valentina Alazraki [a íntegra da entrevista, em espanhol, está disponível aqui].
Falando sobre a acusação feita pelo arcebispo Carlo Maria Viganò, que afirmou em agosto passado que ele havia dito ao papa sobre as restrições impostas pelo Vaticano contra o ex-arcebispo de Washington, Francisco disse: “Eu não me lembro se ele me falou sobre isso. Se é verdade ou não. Nem ideia! Mas vocês sabem que eu não sabia nada sobre McCarrick, senão não teria me calado, não?”.
McCarrick foi removido do Colégio dos Cardeais no ano passado, depois de ter sido acusado de abusar sexualmente de menores e seminaristas. No início deste ano, o Vaticano anunciou que Francisco o havia removido do estado clerical, depois que ele havia sido considerado culpado.
Em uma entrevista abrangente, ele também falou sobre os Estados Unidos e o México.
Falando sobre a viagem que fez ao México em 2016, onde celebrou a missa na fronteira com os EUA, Francisco disse que não entende essa “nova cultura de defender territórios fazendo um muro”.
“Já conhecemos um, o de Berlim, que nos trouxe muitas dores de cabeça e bastante sofrimento... Mas parece que o que o homem faz é o que os animais não fazem, não? O homem é o único animal que cai duas vezes no mesmo buraco, não? Voltamos para o mesmo, não? Levantar muros como se fosse a defesa, não? Quando a defesa é o diálogo, o crescimento, a acolhida e a educação, a integração, ou o saudável limite do ‘não se pode mais’”.
Ainda falando sobre migração, o pontífice voltou-se para o exemplo do que está acontecendo na região espanhola de Ceuta e Melilla, que fica na costa do norte da África e é separada do Marrocos por cercas de arame farpado. Francisco disse que é cruel separar as crianças dos pais e que isso vai contra a lei natural.
Questionado sobre o que diria se, em vez de Alasraki, o papa estivesse diante do presidente estadunidense, Donald Trump, sem as câmeras, Francisco disse que diria a mesma coisa, porque ele disse isso em público antes.
“Eu também disse em público que quem constrói muros acaba prisioneiro dos muros que constrói”, disse Francisco, acrescentando que o território pode ser defendido, mas através de uma ponte, e não de um muro. “Mas estou falando de pontes políticas, de pontes culturais, não é? Não vamos fazer uma ponte em todas as fronteiras, não? É impossível.”
Alazraki também perguntou ao papa sobre o bispo Gustavo Zanchetta, o ex-bispo de Oran, no norte da Argentina, que foi transferido pelo papa para o Vaticano e atualmente está suspenso de seu cargo na Administração do Patrimônio da Santa Sé (APSA).
A jornalista disse que muitos não entendem por que Francisco o levou a Roma, em primeiro lugar, quando já havia denúncias contra o bispo.
O pontífice confirmou que Zanchetta está atualmente sendo julgado pelo Vaticano.
“Antes que eu pedisse a sua renúncia, houve uma acusação, e eu imediatamente o fiz vir para cá com a pessoa que o acusava e explicá-la”, disse Francisco. A acusação envolveu o telefone do bispo, que continha pornografia homossexual e imagens sexuais explícitas de Zanchetta em seu quarto.
“A defesa é que ele teve o seu telefone ‘hackeado’, e ele se defendeu bem”, disse o papa, acrescentando que isso criou dúvidas suficientes, por isso Francisco disse a Zanchetta para voltar atrás.
“Evidentemente, ele tinha um trato que alguns chamaram de déspota, mandão, um manejo econômico não totalmente claro das coisas”, embora, como observou o papa, isso não tenha sido provado.
“Mas, certamente, o clero não se sentia bem tratado por ele”, disse Francisco. “Eles se queixaram, até que fizeram, como clero, uma denúncia à nunciatura”, ou seja, a embaixada do Vaticano na Argentina.
O papa disse que, então, chamou o núncio, que lhe disse que a acusação de maus-tratos era “séria”, e o papa entendeu que se tratava de um caso de “abuso de poder”. Então, ele enviou Zanchetta à Espanha para receber tratamento psicológico e pediu-lhe para renunciar à Diocese de Oran.
O tratamento, disse Francisco, descobriu que Zanchetta estava dentro da faixa normal, mas aconselharam que ele recebesse um tratamento adicional uma vez por mês em Madri, de modo que o papa o levou para Roma. Em suas próprias palavras, “estacionou-o” na Itália.
Quando se trata do fato de que Zanchetta é acusado de usar fundos indevidamente, Francisco disse que, neste momento, não há provas disso, apenas que ele era “desordenado” em relação ao dinheiro. Apesar de não ser bom em acompanhar as questões econômicas, disse o pontífice, o bispo tinha uma “visão boa”.
Assim que ele encontrou um substituto para o bispo, o pontífice disse que abriu a investigação das acusações. Ele recebeu o resultado da investigação 15 dias atrás, “e eu vi que era necessário fazer um julgamento. Então, passei para a Congregação para a Doutrina da Fé”.
Em relação aos “impacientes” que o acusam de não ter feito nada, Francisco disse que o papa não precisa “ficar publicando todos os dias o que está fazendo, mas não fiquei quieto desde o primeiro momento desse caso”.
Como observou Francisco, ele pediu a investigação no fim do ano passado, mas, entre as festas e a lentidão do verão argentino – que ocorre de dezembro a março –, as coisas demoraram mais do que deveriam.
“Há casos que são longos, que esperam mais, como este, e eu explico por que: porque eu não tinha os elementos”, disse. Mas agora Zanchetta está em julgamento. “Ou seja, eu não parei.”
Francisco também disse que sempre deve seguir o princípio da “presunção de inocência”, algo que até mesmo os juízes mais “anticlericais” seguem. No entanto, disse, há casos em que a culpa “é evidente”, como foi o caso de McCarrick, razão pela qual ele o removeu do Colégio dos Cardeais mesmo antes do julgamento ter terminado.
Falando sobre o Conselho dos Cardeais que aconselha o papa sobre a reforma da Cúria Romana, Francisco disse que era “óbvio” que o cardeal Javier Errázuriz, emérito de Santiago, Chile, não poderia continuar fazendo parte da equipe. Francisco não dá uma razão, embora ele o compare com o cardeal australiano Pell, que está “preso e condenado, bem, ele apelou, mas foi condenado”.
Errázuriz é um dos nove bispos chilenos que foram intimados pelo Ministério Público por acusações de ter encoberto casos de abuso sexual clerical.
Como observou Alazraki, também há denúncias contra o coordenador do grupo, o cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga, de Honduras. Francisco disse que “vão dizer coisas sobre o pobre [homem] de todos os lados, mas não há nada comprovado, não… Ele é honesto e me preocupei em averiguar bem as coisas. Aí são calúnias”.
“Ninguém conseguiu provar nada para mim”, disse o pontífice. “Talvez ele se equivocou em alguma coisa, ele teve alguns equívocos, mas não do nível que querem jogar sobre ele. Isso é importante, então eu o defendo nisso.”
Francisco disse que não saberia dar uma explicação sociológica para o que está acontecendo com a violência contra as mulheres, mas “me atrevo a dizer que a mulher ainda está em segundo lugar”.
No imaginário coletivo hoje em dia, disse, quando uma mulher alcança uma posição de poder, isso é notado como uma grande coisa: “Oh, veja, uma mulher fez isso! Chegou a ganhar um Prêmio Nobel. Grande casualidade”.
Passar do “segundo lugar” para serem tratadas como escravas, disse Francisco, não é um longo caminho. Isso acontece na Itália, disse, nas ruas de Roma, onde as mulheres são forçadas à prostituição. “São mulheres escravas. Escravas. Pois são para isso... E, bem, daí a matá-las...”
O número de feminicídios está crescendo em toda a América Latina, com uma mulher sendo morta a cada 40 horas na Argentina por um parceiro ou ex-parceiro.
“O mundo sem a mulher não funciona”, disse ele. “Não porque é ela que traz os filhos [ao mundo], deixemos a procriação de lado… Uma casa sem a mulher não funciona. Há uma palavra que está prestes a cair do dicionário, porque todo mundo tem medo dela: ternura. É patrimônio da mulher. Agora, daí ao feminicídio, à escravidão, é um passo, não? Qual é o ódio? Eu não saberia explicar”.
Como costuma ocorrer quando fala aos repórteres, Francisco respondeu a perguntas sobre a homossexualidade.
Ele foi perguntado em particular sobre algo que ele disse no ano passado, que os pais que têm filhos gays deveriam consultar um especialista.
Ele disse que “as pessoas homossexuais têm o direito de estar na família, e os pais têm o direito de reconhecer esse filho como homossexual, essa filha como homossexual. Ninguém pode ser expulso da família, nem tornar sua vida impossível por causa disso...”.
Dizer que uma pessoa tem o direito de estar em sua família, continuou o papa, não significa “aprovar os atos homossexuais, nem muito menos”.
Questionado sobre o fato de que, na Argentina, ele era conhecido como “doutrinalmente conservador”, o papa interrompeu Alazraki para dizer: “Eu sou conservador”.
“Quando o elegeram papa, parecia muito mais liberal do que na Argentina”, respondeu a jornalista.
“A graça do Espírito Santo existe certamente”, respondeu Francisco. “Eu sempre defendi a doutrina. E é curioso, na lei sobre o matrimônio homossexual… É uma incongruência falar de matrimônio homossexual.”
No entanto, Francisco reconhece, sim, que é uma pessoa diferente do que era antes de ser eleito para o pontificado em 2013.
“Eu confio que cresci um pouco, que me santifiquei um pouco mais. Nós mudamos na vida. Que eu ampliei os meus critérios, isso pode ser. Vendo os problemas mundiais, eu tive mais consciência de certas coisas das quais não tinha antes. Não, acho que, nesse sentido, há mudanças, sim. Mas conservador… eu sou as duas coisas.”
Falando sobre sua relação com a mídia, ele disse que passou a apreciá-la e que entende a necessidade de os jornalistas serem críticos, embora não se importe em corrigi-los quando acha que foram injustos. Os repórteres, disse o papa, não só têm a responsabilidade de ser críticos, mas também de “construir”.
Perguntado sobre qual ele acha que é a coisa mais bonita que fez, o papa disse que foi “estar com as pessoas”, passando o tempo nas favelas, nas prisões, nas praças públicas.
Repassando os seus erros, ele disse que algo que ele não faria da mesma maneira é o modo como lidou com a situação no Chile, onde cometeu alguns erros de julgamento, coisas que ele teve que “corrigir” depois de fazer maus julgamentos.
Francisco admitiu na entrevista que as perguntas dos jornalistas o fizeram repensar a sua forte defesa do bispo Juan Barros, que havia sido acusado de encobrir o abuso do notório pedófilo e ex-padre Fernando Karadima.
Em sua entrevista com Alazraki, o papa admitiu que, depois que os jornalistas perguntaram sobre o caso, ele refletiu e rezou sobre o assunto, antes de enviar alguém para investigar a situação.
“Eu me dei conta de que a informação que eu tinha não era aquilo que eu tinha visto [anteriormente]”, disse.
Alazraki chamou a atenção internacional quando foi convidada para falar na cúpula do Vaticano sobre o abuso sexual clerical, que ocorreu em Roma entre os dias 21 e 24 de fevereiro. Ela disse aos presidentes das Conferências dos Bispos do mundo que os jornalistas serão os “piores inimigos” dos bispos se eles continuarem encobrindo os abusos.
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Em nova entrevista, Papa Francisco diz que ''não sabia nada'' sobre McCarrick - Instituto Humanitas Unisinos - IHU