04 Mai 2019
Os Estados mais poderosos e as megacorporações preparam o hipercapitalismo, um inferno de desemprego e precariedade. Há saída, previam Marx e Stephen Hawking. Exigirá descriptografar o Big Data e resgatá-lo de seus sequestradores.
O artigo é de Gabriel A. Méndez H., professor de Ciências Políticas e Relações Internacionais na Universidade Autônoma de Manizales, Colômbia, publicado por Outras Palavras, 02-05-2019. A tradução é de Rôney Rodrigues.
Este artigo tentará dar conta de um fenômeno emergente no espaço das relações políticas: a “guerra mundial cibernética”. Primeiro, definirei os termos que utilizarei ao longo do texto. Em seguida, aplicarei os ditos conceitos ao contexto do fenômeno apontado e, depois, tentarei fazer uma interpretação original do mesmo, para concluir com um olhar prospectivo sobre sua possível transformação em “guerra civil cibernética”.
Para fazer e mover coisas necessita-se de energia. A revolução industrial multiplicou exponencialmente a energia à disposição da sociedade humana por meio de máquinas de todo tipo. No entanto, essas máquinas necessitavam de supervisão e controle humanos para cumprir seus fins. Há três tipos ideais de máquinas: as que transformam um tipo de matéria em outro tipo de matéria. As que transformam energia de um tipo a outro. E as máquinas que transformam informação. É com essas últimas que se ocupa a “cibernética”. Nesse sentido, a Internet pode ser concebida como uma imensa máquina cibernética que se estendeu por todo o comprimento e largura do planeta com o potencial de colocar em Comum todos os seres humanos em tempo real (trata-se do embrião de uma sociedade global).
Agora mesmo está sendo desenvolvido o próximo salto evolutivo: a Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês) que, como pode-se inferir pelo nome, permitirá conectar todas as coisas umas com as outras e com os humanos. Isso implica que as coisas, em breve, terão, como as máquinas cibernéticas de hoje, algum grau de “inteligência” – que, para algumas funções específicas, será igual ou superior à humana (por exemplo: captar, registrar e transmitir informações).
Dessa forma, surge diante de nossos olhos o que Karl Marx antecipou com o termo “cérebro social”: Desde os tempos remotos, coisas e humanos constituíram um sistema único, a sociedade humana, formando um só objeto sócio-técnico, o Ator-Rede, no sentido de Bruno Latour & Michael Callon (1), onde os atores colocavam aos desejos e a inteligência; e as coisas, a energia e a matéria transformada. No entanto, eles não se “falavam” uns com os outros. Mas agora uma disrupção silenciosa iniciou quando as coisas começaram a adquirir diversos graus de “inteligência”.
Essa disrupção foi antecipada por Marx no célebre Fragmento sobre as máquinas (1857):
A acumulação do conhecimento e as habilidades das forças produtivas gerais do cérebro social, [são] absorvidas assim, dentro do capital.
No fragmento citado (Caderno VI-VII do Grundrisse), o filósofo alemão antecipou, sob a denominação de “intelecto geral” ou “cérebro social”, o processo pelo qual o capital vai subsumindo, como um vampiro, os conhecimentos e as habilidades extraídos dos trabalhadores. Tal extração (2), na forma de luta de classes, moldou a história do real, ou seja: “o material transposto e traduzido no cérebro humano” (3). A concepção marxista de cérebro, como ser genérico ou social, permite-nos derivar uma teoria do conhecimento (epistemologia) da teoria do valor: o cérebro é social (4). Hoje em dia, essa realidade se chama “virtual” ou, também, Big Data. Embora o correto seria denominá-la de realidade criptografada (5).
A privatização do Big Data ou cérebro social é o que explica as estrelas midiáticas do Vale do Silício dominarem o mundo. Nas palavras de Slavoj Žižek (2012)
Como Bill Gates se converteu no homem mais rico dos Estados Unidos? Sua riqueza não tem nada a ver com a produção de um bom software pela Microsoft a preços mais baixos que seus concorrentes, tampouco devido ao “aproveitamento” de seus trabalhadores mais talentosos (a Microsoft paga a seus trabalhadores intelectuais um salário relativamente alto). Milhões de pessoas seguem comprando o software de Microsoft porque ele nos foi imposto como norma quase universal, praticamente monopolizaram a área, realizando o que Marx chamou de “intelecto geral”, referindo-se ao conhecimento coletivo em todas suas formas, desde a ciência até conhecimentos práticos. Bill Gates privatizou parte do intelecto geral e ficou rico apropriando-se dessa renta que veio em seguida.
Quando tal privatização chegar a suas etapas finais, o capital necessitará de pouquíssima quantidade de trabalho vivo para sua reprodução. Até lá, se não houver intervenção do Estado, o risco será que a maioria dos trabalhadores sejam jogados ao inferno do desemprego e da precariedade. No entanto, ao fazer isso, o capital estará minando seus próprio terreno — a mais-valia — já que ela somente pode ser criada pelo trabalho vivo. Nas palavras de Marx (1980, p.222):
O capital trabalha, assim, a favor de sua própria dissolução como forma dominante da produção.
Mais recentemente, Stephen Hawking (2015), o famoso astrofísico britânico, chamava nossa atenção para o mesmo fenômeno:
Se as máquinas produzem tudo o que necessitamos, o resultado dependerá de como se distribuem as coisas que as máquinas produzem. Todo o mundo poderá desfrutar de uma vida ociosa se a riqueza produzida pelas máquinas for compartilhada; ou a maioria das pessoas pode acabar sendo miseravelmente pobre, se os proprietários das máquinas fizerem pressão política exitosa contra a redistribuição da riqueza. Até agora, a tendência parece ser a segunda opção, com a tecnologia provocando crescente desigualdade.
Se a previsão de Hawking tornar-se realidade, chegaremos a uma situação em que o todos os produtos serão produzidos, praticamente, só por máquinas e, talvez, por uma ínfima quantidade de trabalho vivo. Mas:
Isso não é, em certo sentido, muito similar àquele processo, apontado por Marx, do crescimento da composição orgânica do capital, que deveria levar a eutanásia do capitalismo (para usar um termo de Keynes em uma estrutura marxista)? (Milanovic, 2015).
Segundo Bruno Milanovic, antigo economista-chefe do Banco Mundial, em Marx a suposição é de que o processo de valorização implica na intensificação do capital, relativa ao trabalho vivo. Desse modo, os capitalistas tendem a acumular cada vez mais capital e a eliminar mais tempo de trabalho vivo por unidade de produto. Isso, em uma estrutura marxista, significa cada vez menos necessidade de horas de trabalho assalariado que, obviamente, geram cada vez menos a mais-valia: e essa mais-valia minguante, em relação a uma crescente acumulação de capital, significa uma queda na taxa de lucro, até o limite de zero.
Como a robotização afetará o capitalismo? Karl Marx nos dá algumas pistas. Como escreveu, cada capitalista individualmente está constrito por leis de ferro do mercado para investir em processos mais intensivos do capital, para ser mais competitivo que os outros capitalistas. Mas quando todos fazem o mesmo (apesar das contra-tendências), a taxa de lucro cai para todos. Por isso, a longo prazo o que fazem os capitalistas, no final das contas, é “sair do negócio”, ou, mais precisamente, avançar para uma taxa zero de lucro.
Em qualquer caso, o trabalho vivo será substituído por máquinas, em um grau tão extremo que o grosso da produção será realizada por robôs. O emprego será insignificante. Em Marx, o último desequilíbrio político – ou crise terminal – se daria entre um enorme “exército de reserva de desempregados” e uma pequena camada de capitalistas e assalariados de sucesso. Para visualizar esse desequilíbrio, Milanovic (2015) nos convida a que
Imaginemos milhares de robôs trabalhando em uma grande fábrica e um só trabalhador controlando-os, sendo que os robôs só têm vida útil de um ano: isso significa que há que substituir, continuamente, os robôs, ou seja, enormes custos anuais de reposição e reinvestimento. A composição do PIB seria muito interessante. Se o PIB total é de 100, poderíamos ter uma consumo = 5, um investimento líquido = 5 e uma reposição = 90. Viveríamos em um país com um PIB per capita de 500 mil dólares, mas 450 mil dólares seriam para reposição.
Suponhamos, agora, que as máquinas passem a ser propriedade dos perdedores do sistema, depois de uma Guerra Civil Cibernética, similar a recriada em V de Vingança. Teríamos, então, as mesmas fábricas imensas cheias de robôs, mas todo o produto líquido seria apropriado pelos excluídos, que usariam essa renda para ter uma vida de muito ócio, com jornadas de trabalho reduzidas — ou, inclusive, nenhuma — olhando telas ou jogando divertidos jogos em seus celulares. Desse modo, a guerra civil cibernética seria uma deslocada luta de classes.
Porém, qual seria a ideologia dos novos ciberproletarios? Talvez um rejuvenescido “fetichismo digitalizado” ou o “reino da liberdade”, segundo teorizou Marx? Nas palavras de Ricardo Sanín (2016, p.116).
As maravilhosas máquinas de alta tecnologia e comunicação estão programadas em linguagens altamente sofisticadas e em ambientes extremamente elitistas, que servem ao poder para estender o domínio do capital da melhor maneira possível. Apesar de estarmos irremediavelmente conectados a uma rede que sempre amplia a informação, como se fora o Intelecto Geral, a imagem cultural da máquina permanece criptografada: seus fluxos e comandos seguem dependendo da fome do mercado, e seu principal intelecto segue sendo material escasso. Por isso, a informação só pode tornar-se democrática quando a máquina – em um ponto de absorvição do conhecimento ao poder – se decriptar e se liberar politicamente.
“Máquinas maravilhosas” que embora englobem uma grande promessa de emancipação, também continuam replicando seus “fluxos e comandos” às mesmas mesquinhezes morais: racismo, sexismo, imperialismo, capitalismo, da matriz política que lhe deu vida: o Colonialismo Globalizado.
São os grandes e perturbadores enigmas que nos trazem a realidade criptografada e seu colonialismo globalizado.
Até agora as sociedades ciberneticamente mais desenvolvidas do mundo: Estônia, Singapura e Israel, são:
1- Demograficamente pequenas e politicamente homogêneas;
2- Possuidoras de Estados policiais muito fortes; e
3- A educação elitista é uma prioridade para o Estado e a sociedade.
Por outro lado, trata-se de sociedades que, curiosamente, estão muito distantes da Califórnia: já se desmonta esse mito idiota de que “tudo se inventa no Vale do Silício” (6).
Mas agora estamos diante de um ponto de fuga. Em uma nova reviravolta da atual Guerra Mundial Cibernética (uma reedição, em formato digital, da Guerra Fria entre Leste e Oeste), Vladímir Putin anunciou, no começo de junho de 2017, no Fórum Internacional Econômico de São Petersburgo, um programa político qualitativamente novo que, a julgar pelos discursos, se apoiará na plena “digitalização” da sociedade e da economia russas, que eles pensam em extrair de suas formidáveis “escolas de matemáticos e físicos”. Naquele fórum, Putin e seus ministros anunciaram uma aliança com o Ethereum para um sistema descentralizado de serviços de Internet, baseado na tecnologia blockchain – tecnologia que está na base das criptomoedas, formada por nós interconectados de informação criptografada e distribuída por todo o mundo e que funcionam como base de dados e cópias de segurança. Segundo informações do Kremlin, o presidente Putin encontrou-se com o fundador de Ethereum, Vitálik Buterin, um programador de 23 anos, nascido na Rússia em uma família que emigrou para o Canadá. Putin apoiou as ideias de Buterin e propôs estabelecer contatos de trabalho com potenciais sócios russos. Segunda uma nota do El País sobre o encontro:
Putin está “totalmente apaixonado” pela digitalização da economia e pelas novas tecnologias, segundo o vice-primeiro ministro, Igor Shuválov. Disse que o presidente reuniu um pequeno grupo de funcionários da administração e do governo para debater esses temas e só os “deixou sair” depois de “uma da madrugada”. Em São Petersbrurgo, Putin esboçou as linhas básicas do programa de digitalização que o governo elaborou a seu pedido. Entre as metas, está a “alfabetização digital geral” com “programas de ensino para pessoas das mais diversas idades” e uma base “normativa nova e ágil para introduzir tecnologias digitais em todos os campos”, tendo em conta “a segurança informática do Estado, dos negócios e dos cidadãos”. Putin anunciou ações “para incrementar nossa superioridade intelectual, tecnológica e de quadros no campos da economia digital”.
Em sua opinião, as “excelentes escolas no campo da matemática e na física teórica” permitem à Rússia “conseguir a liderança em diferentes direções da denominada nova economia, sobretudo digital”. A economia digital não é apenas mais um ramo, mas “a base que permite criar um novo modelo qualitativo de negócios, comércio, logística, produção, que altera o formato da educação, da saúde, da direção do Estado, da comunicação entre as pessoas, e em consequência cria um novo paradigma de desenvolvimento do Estado, da economia e de toda a sociedade”, argumentou Putin (Bonet, 2017).
Essa estratégia de Putin, não envolve a possibilidade de que nos encontremos às portas daquilo que Alain Badiou formulou como o “Acontecimento”: uma intervenção do que não pode ser explicado em função de suas “condições objetivas” preexistentes? Com a tecnologia blockchain em cena, a riqueza das sociedades não só está se transformando de uma “imensa acumulação de mercadorias” (Marx) para uma imensa sinapse planetária, como também , devido a sua revolucionária estrutura matemática (7), poderia alterar as geometrias tradicionais do poder global.
Então, o que aconteceria se em um futuro próximo Rússia, China e Índia copiassem com sucesso a digitalização da Estônia, de Singapura e de Israel? Claramente, trata-se de uma intensificação da Guerra Mundial Cibernética contra as potência ocidentais. No entanto, ao ser todos eles estados policiais e capitalistas – com suas opacas e corruptas oligarquias bem instaladas nos postos de comando da economia e da administração – o desafio dos hacktivistas – tanto do Leste quanto do Oeste, tanto do Norte quanto do Sul – será transformar essa Guerra Mundial Cibernética em Guerra Civil Cibernética, socializando as bases de dados (8), ou seja, descriptografando o Big Data e toda a potência de sua inteligência artificial coletiva para, assim, liberá-los de seus atuais “sequestradores” – tanto estatais (Estados Unidos, União Europeia, Rússia, China etc.) como privados (Google, Facebook, Netflix, Microsoft, Apple etc.).
(1) Ver Michael Callon, (2001).
(2) Para uma concepção alternativa e não eurocêntrica (como a de Marx) do “extrativismo” e da tecnologia em geral, ver Ramón Grosfoguel (2016).
(3) Ver Karl Marx, El Capital, Vol. 1, Epilogo a 2ª Ed. Alemana.
(4) Ver Guglielmo Carchedi (2014).
(5) Ver Gabriel Méndez e Ricardo Sanín (2012).
(6) Curiosamente, o antecedente do Big Data como uma tecnologia política emancipadora se encontra nos anos 1970 e em um país do sul global, ver Eden Medina (2013).
(7) Veja aqui.
(8) Ver Evgeny Morozov (2015)
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