22 Novembro 2013
O projeto neoliberal é privatizar e "commoditizar" tudo. No seu fracasso em realizar promessas de eficiência estão as raízes dos protestos que eclodem pelo mundo e no Brasil. Partidos políticos convencionais, reféns do capital internacional, não conseguem canalizar a raiva que emerge das ruas. Não há ideias novas, e as manifestações vão continuar.
A análise é do geógrafo marxista britânico David Harvey, 78. Professor da Universidade da Cidade de Nova York, ele ataca os "oligarcas globais" e afirma que os bilionários foram os que mais ganharam com a crise.
Crítico da realização de megaeventos como Copa e Olimpíada, ele avalia que os governos são muito influenciados pelo capital financeiro. E aponta: "Esses eventos são sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de infraestrutura. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar mais ricos".
A partir da próxima sexta-feira, Harvey participa de debates no Brasil em torno do lançamento de seu livro "Os Limites do Capital" e da coletânea "Cidades Rebeldes".
A seguir, trechos da entrevista concedida por telefone de Nova York (EUA) na semana passada.
A entrevista é de Eleonora de Lucena, publicada no jornal Folha de São Paulo, 20-11-2013.
Eis a entrevista.
Qual sua avaliação sobre a situação mundial?
É muito mutante e volátil. De forma alguma estável. Não sabemos quando novos problemas vão eclodir e por quê. A situação na Europa é preocupante, com taxas muito baixas de crescimento. Nos EUA, há muita instabilidade política. Há questões sobre o modelo de desenvolvimento da China. Isso tudo está conectado e, de repente, há problemas no Brasil em razão de mudança de tom do Fed em relação à liquidez. É uma situação muito complicada e volátil.
Então o pior não passou?
Não, longe disso. Penso que está tão perigoso quanto sempre foi. O que me surpreende é que não há novas ideias. As receitas apresentadas estão aprofundando o modelo neoliberal ou tentam desenvolver alguma forma de keynesianismo. Ambas opções me parecem muito frágeis nas circunstâncias atuais.
O sr. disse em entrevista à Folha em 2012 que a crise deveria aprofundar a concentração de capital e as desigualdades. Isso de fato ocorreu?
Sim. Todos os dados mostram que o número de bilionários cresceu no mundo. A riqueza deles cresceu imensamente nos últimos três anos. Foi o grupo que se saiu melhor na crise, enquanto todos os outros ou permaneceram estagnados ou perderam.
Qual sua visão dos protestos que eclodiram pelo mundo? O sr. defendeu a criação de um "partido da indignação" para lutar contra o "partido de Wall Street". Como essa ideia evoluiu?
Os movimentos não estão indo muito bem. Por várias razões. Primeiro, é interessante notar quão rapidamente o poder político se moveu para tentar reprimir os protestos e prevenir qualquer forma de movimento de massa mais amplo. Segundo, há muitas divisões entre os movimentos. Há divisões teóricas entre marxistas, anarquistas, autonomistas. Há divisões entre políticos. A esquerda está muito dividida, sem sinais de atuar em conjunto. O poder político agiu muito rápido, com ações policiais, para dispersar a oposição. Isso aconteceu com o Occupy Wall Street, na Turquia. Em algum grau está acontecendo também na América Latina.
Qual o futuro desses movimentos?
É praticamente a mesma resposta sobre o que vai acontecer com o capital. A situação é muito volátil. É muito difícil prever. Ninguém previu a eclosão dos movimentos na Turquia, nem ninguém previu os amplos protestos no Brasil.
Qual sua visão sobre os protestos no Brasil?
É difícil falar para quem está longe. Não sei se estou qualificado a falar sobre isso. Mas o que posso dizer é que existe uma desilusão generalizada do processo político. As pessoas estão começando a discutir como modificar os piores aspectos da exploração, da extração capitalista do valor. Há também uma alienação, que leva a alguma passividade, que é interrompida ocasionalmente por explosões de raiva frustrada. O nível de frustração por todo o mundo está muito alto agora. Por isso não surpreende que essas manifestações ocorram. O problema é canalizar essa raiva para movimentos políticos existentes que tenham um projeto. Isso não se enxerga. Prevejo mais explosões de raiva nos próximos anos. Há o Egito com seus problemas não resolvidos, a guerra civil na Síria, protestos na Turquia, na Suécia, no Brasil e uma volta dos protestos no Chile. É uma fotografia que está aparecendo globalmente e suspeito que vai continuar assim dentro de um modo muito volátil.
Há conexão entre esses movimentos?
Sim, cada um tem suas demandas específicas, mas há problemas de base provocados pela natureza autocrática do neoliberalismo, que virou um modelo padrão para o comportamento político. Isso não é satisfatório para a massa da população. Há uma crise na governança democrática. Ao mesmo tempo, há o fracasso do neoliberalismo, que não entregou um mínimo de padrão de vida para a massa da população. Há uma raiva contra as formas tomadas pelo capitalismo. No Norte da África, na Tunísia, no Cairo os protestos foram parcialmente sobre alta nos preços da comida. A segurança alimentar se tornou um tema muito importante. Isso diz respeito ao poder do agronegócio e à especulação com as commodities, que provocaram a alta dos preços. Há inflação nos preços de comida em muitas partes do mundo.
No Brasil, os protestos estouraram por causa da alta nas tarifas de ônibus. Como especialista em questões urbanas, como o sr. avalia esse problema?
O projeto neoliberal é privatizar e "commoditizar" tudo. Então tudo vira objeto das forças do mercado. Dizem que essa é a forma mais eficiente de prover bens e serviços para uma população. Mas, na verdade, é uma maneira muito eficiente de um grupo da população reunir uma grande soma de riqueza às custas de outro grupo da população --sem entregar, de fato, bens e serviços (transporte, comida, casas etc). Essa é uma das razões do descontentamento da população. Por isso explodem manifestações de raiva, insatisfações em diferentes lugares e em diferentes direções políticas. Turquia, Brasil, Suécia. Há uma situação de fundo que dá uma visão comum às batalhas, embora cada uma delas seja especifica e diferente. No Brasil, foi o custo do transporte. Em outros lugares, é preço da comida, da habitação, ou apenas se trata de fazer um ataque a essa "commodização" do espaço público.
Então a privatização é demasiada?
Há muita "commodização". FMI e Banco Mundial dizem que com o mercado tudo será resolvido. Estamos fazendo isso há 30 anos e não está sendo ok.
Aqui se discute a violência nas manifestações. O que o sr. pensa sobre os black blocs e a violência policial?
Uma das dificuldades de falar sobre isso é que, se o poder político responde com violência a qualquer protesto legítimo, em determinado ponto, alguns que estejam nos protestos também vão responder com violência. Há muita divisão no movimento popular. Mas, em algum ponto, não há mais nada a fazer do que responder à violência com violência. Isso significa que a situação ficou fora de controle. Uma das responsabilidades do poder político é, na medida do possível, limitar a violência policial. Pessoalmente não gosto do que fazem os black blocs e acho que em muitas casos eles não ajudam. Sempre ouvimos que deveríamos tolerar o que faz o poder político, o que muitas vezes significa tolerar o intolerável. Em algum ponto, as pessoas começam a dizer: não vou tolerar o intolerável; vou fazer o intolerável para o intolerável. Não estou advogando de forma alguma a violência, mas estou dizendo que é muito difícil em muitas situações --como vimos nas lutas anticoloniais-- sair do problema sem usar algum tipo de força. Lembro aqui do filme de Costa Gavras "A Batalha de Argel", que é um bom exemplo de como as coisas funcionam.
Alguns dizem que há interesse dos EUA nesses movimentos, como forma de desestabilizar governos. O sr. acha que é possível?
Há muitos exemplos históricos mostrando que isso acontece. Seria muito surpreendente identificar que hoje isso não é o caso. É muito difícil controlar isso. Apontar somente os EUA seria errado.
Partidos tradicionais foram pegos de surpresa no Brasil. De outro lado, os movimentos não têm uma organização própria. Como tudo isso pode se transformar em forças políticas organizadas?
Se eu tivesse essa resposta, não estaria falando com você agora. Estaria lá fora fazendo. Não sei a resposta. A situação agora reflete a alienação das pessoas em relação a praticamente todos os partidos políticos e a sua desilusão com o processo político. Nos EUA, o Congresso tem uma taxa de aprovação de 10%. Nessa circunstância, as pessoas não vão canalizar o seu descontentamento para o processo político, pois não enxergam esperança nisso. Por isso, há essa raiva. E assim as coisas vão continuar.
O sr. concorda com a visão de que partidos de todos os matizes caminharam para a direita e que a esquerda se diluiu em ONGs e estruturas voláteis?
Há internacionalmente uma ortodoxia econômica, que é reforçada pelos movimentos do capital internacional. Os partidos políticos convencionais se tornaram reféns desse poder.
Isso acontece com o PT no Brasil?
Isso é para o julgamento de seus leitores. Noto que há uma desilusão sobre o PT entre seus próprios integrantes.
O sr. está escrevendo um livro sobre as contradições do capitalismo. Qual é a principal hoje?
Uma das contradições do capitalismo agora é que o capital precisa crescer. Mas as condições nas quais isso pode ocorrer são cada vez mais restritas. É muito difícil achar novos lugares para ir e novas formas de atividades produtivas que possam absorver a enorme quantidade de capital que está buscando por atividades lucrativas. Como consequência, muito capital agora vai para atividades especulativas, para patrimônio, compra de terras, commodities, criam-se bolhas. Esse é o problema real: como o capital pode continuar crescendo nos próximos anos. Está ficando cada vez mais difícil para o capital achar formas de fazer isso. O crescimento está colocando muito estresse sobre o ambiente.
Quais seriam as principais contradições para o Brasil?
A contradição ambiental, a desigualdade social no Brasil --que é uma contradição muito perigosa no Brasil. E a especulação sobre terras e recursos naturais.
O sr. escreveu em "Os Limites do Capital" que é cada vez mais difícil hoje encontrar o inimigo e identificar quem ele é. Quem é o inimigo e onde ele está?
O inimigo é um processo, não uma pessoa. É um processo de circulação de capital. O capital entra e sai de países. Quando decide entrar, há um "boom"; quando decide sair, há uma depressão. Por isso, é necessário controlar esse processo de circulação. Se algo que é feito desagrada esse processo, ele desaparece. De certa forma, o Brasil tem possibilidades limitadas, porque o capital pode simplesmente desaparecer.
Algo mudou após o inicio da crise ou é só mais do mesmo?
É realmente mais do mesmo. Estados que costumavam pagar muito para instituições financeiras não fizeram nada para proteger o bem estar da sua população. Foi o que aconteceu no México nos anos 1980. E a mesma história se repete, com os ricos ficando mais ricos enquanto falamos.
O sr. escreveu que as políticas que não agem sobre as contradições principais ficam apenas nos sintomas da crise. Por exemplo?
Crescimento talvez não seja possível e talvez não seja mais o objetivo. Falam apenas que temos baixo crescimento, alto desemprego e que precisamos ter o crescimento de volta. Mas há limites.
Isso é dizer para um país como o Brasil que a festa acabou?
Não. O crescimento principal agora ocorre para o 1% mais rico da população mundial. É para esse grupo que todo o crescimento é canalizado. É um problema global, verdadeiro nos EUA, no Brasil. É preciso haver uma redistribuição de renda globalmente e entre classes. Por isso é quase impossível começar a falar disso sem falar de uma luta global. Há muitos bilionários no Brasil, no México, na Índia, na Rússia. O clube dos bilionários é que é o problema. Estamos vendo oligarcas globais controlando potencialmente ¾ da economia global, sugando uma enorme parte da riqueza mundial. O crescimento está sendo canalizado para eles. Meu ponto é: vamos para crescimento zero, sem canalizar o crescimento para eles, e, ao mesmo tempo, devemos fazer uma redistribuição. Por trás de seu argumento está a ideia que se pode redistribuir o crescimento. Mas tivemos muito crescimento que nunca foi redistribuído. Por que precisamos ouvir esse argumento agora, de que o crescimento é necessário para a redistribuição?
Então redistribuição de riqueza é mais importante do que crescimento propriamente dito?
Sim, claro.
Nesse cenário haveria uma guerra e tanto, não?
Olhando para o que está acontecendo nas ruas, se pode pensar que isso esse tipo de coisa não está tão longe assim.
Em São Paulo, há também a discussão sobre o aumento do imposto sobre propriedade urbana. Há protesto dos mais ricos. Isso também evidencia uma luta social?
Vamos chamar de luta de classes. Ela está mais evidente, mas muitas pessoas não gostam de falar sobre isso.
No início, o Brasil parecia estar indo bem na crise. Agora estamos travados. O que deu errado?
Houve mudanças modestas no Brasil no sentido de redistribuir renda, como o Bolsa Família. Mas é necessário fazer muito mais. Muito dos gastos em enormes projetos de infraestrutura ligados à Copa do Mundo e à Olimpíada são uma perda de dinheiro e de recursos. As pessoas se perguntam por que o país está fazendo todos esses investimentos para a FIFA ter um grande lucro. Para o resto do mundo é surpreendente ver os brasileiros se revoltando contra construções de novos estádios de futebol. Mas as pessoas perceberam a diferença entre ter o futebol e colocar todo esse dinheiro nos bolsos de outras pessoas. Além disso, esses projetos de infraestrutura levam a desapropriações, desalojamentos, reengenharia de cidades.
Copa e Olimpíada não fazem bem para o país?
Economicamente, muito poucos projetos. A Grécia está em dificuldades em parte por causa do que foi feito em razão da Olimpíada de Atenas. Muitas cidades olímpicas nos EUA entraram em dificuldades financeiras.
Como o sr. explica o poder da FIFA e do COI e o apoio que obtêm dos governos?
É como qualquer poder monopolista: extrai o máximo do que se tem a oferecer. Os governos são muito influenciados pelo capital financeiro. Esses eventos são sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de infraestrutura, de urbanização. Envolvem também despossuir pessoas, removendo-as de suas residências, como forma de abrir espaço para todos esses megaprojetos. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar mais ricos.
No Brasil, manifestantes pediram o "padrão FIFA" para educação e saúde.
É que precisa ser dito. O dinheiro precisa ir para educação, centros de saúde.
Como o sr. analisa a situação política na America Latina?
Politicamente houve, na superfície, um tipo de política antineoliberal. Mas não houve nenhum verdadeiro grande desafio para o grande capital. Há um discursos anti-FMI. Mas, de outro lado, o Brasil está ofertando a exploração de seu petróleo para empresas estrangeiras, por exemplo. Não é profunda a tentativa de ir realmente contra as fundações do capitalismo neoliberal. É uma política antiliberal só na superfície. Mas há alguns elementos, como o Bolsa Família, que não fazem parte da lógica neoliberal.
A política antineoliberal é retórica no continente?
Muito disso é retórico. Mesmo a Venezuela não vai muito longe em realmente desafiar os interesses do capital.
Os EUA não perderam posições na região?
Os EUA estão mais fracos na América Latina, em parte porque o crescimento da região foi mais orientado para a o comércio com a China, que ampliou o seu papel imensamente. De muitas formas, a economia na América Latina é muito mais sensível ao que ocorre na economia chinesa do que na norte-americana.
E a China para onde vai?
Se tivesse a resposta para isso...estaria especulando e fazendo milhões... [risos] A situação na China é muito volátil. Há muitos problemas: superprodução, superacumulação, especulação com propriedades, superinvestimento em infraestrutura. Não se sabe muito sobre a condição dos bancos.
O sr. diria que o socialismo é objetivo no futuro?
Não sei como chamar. Diria que o objetivo é uma política anticapitalista. Chamar de comunismo, socialismo, anarquismo --não sei se podemos colocar um nome nisso. Mas alguma coisa precisa emergir que não é o capitalismo. Infelizmente, o mundo está indo cada vez mais fundo no capitalismo em vez de sair dele. E o capitalismo não está funcionando bem de nenhuma maneira. O capitalismo não está muito saudável. Quantas crises tivemos nos últimos anos? Se olharmos para o longo prazo, há uma longa crise em cascata: a crise do Sudeste Asiático nos anos 1990, a falência da Rússia, do Brasil, da Argentina. Depois, EUA, Espanha, Europa. É uma longa crise sendo construída gradualmente.
Mas o capitalismo não opera na base de crises?
Sim, mas geralmente nas crises capitalistas aparecia uma coisa diferente. O capitalismo ia se reformando a si mesmo no curso das crises. Foi o aconteceu nos anos 1930 e, de alguma forma, em 1970. Mas agora ele parece não saber como se revolucionar a si próprio no meio da turbulência. Não há nenhuma ideia nova por aí, Ninguém tem novas e boas ideias para sair da crise.
Qual foi o fato mais surpreendente para o sr. neste século 21?
A falta de uma massiva oposição política organizada ao que está acontecendo.
E por que isso ocorre?
Se tivesse uma boa resposta já tinha feito a revolução.
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'Privatização de tudo' gerou protestos, que vão continuar pelo mundo, prevê marxista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU