15 Janeiro 2019
Segundo a constituição apostólica Veritatis gaudium, “a estrutura dos estudos eclesiásticos tem que assumir a tarefa de uma ‘mudança de paradigma’ e de uma ‘revolução cultural’, a partir do articulado subsequente, isso parece ser possível apenas para uma Igreja em que essa tarefa seja confiada somente ao papa, e depois todos os teólogos podem repetir uma doutrina já completa e perfeitamente coerente, que recebem de cima e à qual obedecem sem reticências”.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, em artigo publicado por Come Se Non, 12-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há algum tempo, venho refletindo sobre um paradoxo realmente curioso. Temos uma tradição muito recente que oferece um espetáculo interessante. Um papa que, com base em uma teologia plenamente conciliar, pede uma nova e estrutural “abertura” à Igreja.
Ao lado dele e ao seu redor, além do entusiasmo popular e da ampla colaboração pastoral e acadêmica, diversos pastores e teólogos têm medo da própria sombra e levantam barreiras para evitar qualquer abertura. Gostaria de tentar interpretar melhor esse paradoxo.
Dizer que a teologia do Papa Francisco é “conciliar” pode ser apenas um slogan. Como tal, seria apenas prejudicial. Parece-me, contudo, que a conciliaridade de Francisco reside em uma “abordagem” que poderíamos definir com uma palavra que acompanhou profundamente o processo de elaboração do Concílio Vaticano II: ou seja, a percepção de uma relação da Igreja com os “sinais dos tempos”.
Essa é uma das intuições mais fecundas de João XXIII, que é expressada com clareza na sua última encíclica, Pacem in terris. Com essa expressão, o Papa João indica “experiências do mundo moderno” com as quais a Igreja tem algo decisivo para aprender.
No texto joanino, fala-se das condições dos trabalhadores, das mulheres e dos povos, que se manifestaram no século XX e sobre as quais a Igreja deve extrair ensinamentos decisivos. Poderíamos dizer que Francisco sabe que a Igreja deve ser, ao mesmo tempo, docente e discente. Pode extrair, dos desenvolvimentos econômicos, dos novos direitos da mulher e da emancipação política dos povos, compreensões mais profundas do Evangelho.
Mas, enquanto Francisco caminha seguro por esse caminho, uma parte consistente do corpo eclesial, tanto no centro quanto na periferia, no campo pastoral e teológico, nas cúrias e nas academias, permanece firme em representações velhas e em práticas superadas. Continua considerando que a Igreja pode e deve “blindar-se” em um corpus completo e imutável de “leis” e de “doutrinas” que o Código e o Magistério conservam ciosamente. Que tem apenas para ensinar e nada para aprender. Que pode gerir cada questão a partir de dentro, sem nunca ter que prestar contas a “terceiros”. Que pode construir uma “lógica paralela” que alimenta a indiferença: leis diferentes, tribunais diferentes, comportamentos diferentes, entendidos não como “transcendência escatológica”, mas como “alternativa institucional”.
Ao lado da “Igreja em saída” de Francisco, vemos expressar-se uma Igreja “de portas blindadas”. Tal ideia de Igreja aplica a ela o ideal iluminista e napoleônico da “lei universal e abstrata” garantida pelo centro.
O que a teologia pode fazer nesse âmbito? É evidente que, na perspectiva de Francisco e dos “sinais dos tempos”, um pensamento teológico vivo e perspicaz, capaz de reflexão e de oração, é um dos instrumentos essenciais para “abrir” a Igreja.
O papa propôs esse relato em muitas ocasiões. O relato de uma teologia que não está “na varanda” ou “na escrivaninha”, mas “na rua”. E expressou isso no famoso discurso ao Colégio dos Escritores da revista La Civiltà Cattolica, como uma “teologia” dos três “Is”: uma teologia da inquietação, uma teologia da incompletude e uma teologia da imaginação. São os três “Is” que, no início de “Tempos difíceis”, de Charles Dickens, são postos no banco dos réus pela nova cultura “geral e abstrata”.
Em certo sentido, podemos dizer que os ideais do “sistema institucional” olham com preocupação para toda manifestação de inquietação, de incompletude e de imaginação. O “sistema eclesial” exige total completude, tranquila autossuficiência, rigoroso princípio de realidade.
E o sistema corre o risco de exigir isso também daqueles “funcionários” que se chamam teólogos. Que deveriam apenas justificar o status quo, e não introduzir elementos de inquietação e de perturbação, e simplesmente repetir aquilo que o código e o magistério afirmaram historicamente: como se a história tivesse acabado, e a Igreja pudesse ser apenas “retro oculata”.
Essa condição paradoxal aparece em toda a sua dilaceração no texto da Veritatis gaudium, a nova constituição apostólica sobre os estudos eclesiásticos. Seria difícil imaginar um contraste mais forte entre um “Proêmio”, cuja abertura é realmente impressionante, e o subsequente “articulado normativo”, do qual impressiona muito o fechamento.
Se, na verdade, a estrutura dos estudos eclesiásticos tem que assumir a tarefa de uma “mudança de paradigma” e de uma “revolução cultural”, a partir do articulado subsequente, isso parece ser possível apenas para uma Igreja em que essa tarefa seja confiada somente ao papa, e depois todos os teólogos podem repetir uma doutrina já completa e perfeitamente coerente, que recebem de cima e à qual obedecem sem reticências.
Mas a história da Igreja demonstra que as coisas nunca funcionaram assim. E deve-se dizer, com grande clareza, que dar forma aos estudos eclesiásticos de acordo com a mens da VG 1-6 não pode, em caso algum, seguir as normativas estabelecidas por aquilo que se segue. Pelo contrário, a doutrina de uma “Igreja em saída” segue uma normativa de uma “Igreja sem saída”.
O título diz respeito aos primeiros seis números. Todos os outros deveriam se intitular Veritatis angor! Não gostaria que os teólogos fossem forçados a reagir com uma “objeção de consciência” em relação à parte normativa, em fidelidade às intenções do “Proêmio”.
Uma Igreja realmente capaz de “aprender também com a história contemporânea” precisa de outra liberdade de pensamento e de outra estrutura de relações acadêmicas e institucionais.
O jurista alemão Wolfgang Boeckenfeorde já havia assinalado isso, muito lucidamente, quando denunciou o maior fechamento da normativa sobre a “liberdade teológica” do código de 1983 em relação ao código de 1917. Eu apresentei em detalhes a posição do grande canonista alemão em um post anterior [disponível aqui, em italiano].
A transformação da normativa “negativa” de 1917 para a “positiva” de 1983 reduziu fortemente o espaço de manobra da pesquisa teológica livre. A imposição do “silêncio” nos âmbitos que merecem uma discussão competente constitui um sinal de perigosa “autorreferencialidade”, sobre a qual a normativa da Veritatis gaudium força ainda mais a mão.
É verdadeiramente paradoxal que, a um “Proêmio” em que, pela primeira vez na história da Igreja, adquirem-se perspectivas de abertura e de liberdade realmente consoladoras e promissoras, corresponda uma normativa que é menos aberta do que a de 1917 e de 1983!
É preciso dizer com clareza: sem uma modificação radical da normativa, as palavras do “Proêmio” correm o risco de ser entendidas como uma envernizada ideológica sem raiz. Elas não impedem o papa de ser profeta, mas, de acordo com o que se segue, proíbem isso resolutamente a todos os sujeitos diferentes dele. E não seria exatamente um bom modo de honrar os “sinais dos tempos”.
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Teologia e sinais dos tempos: Francisco relança. E os teólogos? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU