23 Agosto 2018
Breves lembranças de como surgiu uma espécie de "modalidade ambiental" que formalizava e legitimava na Igreja uma maneira de pensar que o Papa Francisco foi o primeiro a chamar de "cultura do acobertamento".
A reportagem foi publicada por Il Sismografo, 22-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
A infame "cultura do acobertamento" dos abusos sexuais de menores e vulneráveis dentro da Igreja tem uma vida muito longa. Desde sempre, nos círculos eclesiásticos e em todos os níveis hierárquicos, foram colocados em ação todos os recursos disponíveis para negar, minimizar e tirar a responsabilidade por esses atos, evitando assim uma procura saudável e obrigatória da verdade e da justiça.
É suficiente recordar um episódio para ter a confirmação de tal conduta: em 2010, o cardeal colombiano Darío Castrillón Hoyos – que morreu em 18 de maio último - em uma entrevista à CNN chegou a afirmar, em polêmica com o cardeal austríaco Christoph Schönborn que a Igreja não tem nada a censurar-se sobre sua forma de lidar com a pedofilia clerical porque soube usar a "discrição e a confidencialidade."
Pode-se dizer que, no que diz respeito à prática dos abusos sexuais na Igreja, o acobertamento tenha sido a política aplicada desde os primeiros casos que vieram à público, assim como no Holocausto desde logo se manifestou o negacionismo. Pedofilia e acobertamento são faces da mesma moeda, como acontece com o negacionismo e o extermínio dos judeus.
O cardeal colombiano Darío Castrillón Hoyos, prelado por longo tempo muito importante na Igreja e na Santa Sé, falou de "discrição" e "confidencialidade". Resta ainda entender o que significavam essas duas qualidades para o cardeal, filho espiritual de outro discutido cardeal colombiano Alfonso López Trujillo, ambos muito bem considerados e em posições de destaque durante o pontificado de São João Paulo II.
É fácil entender isso. Em 2001, Castrillón Hoyos, prefeito da Congregação para o Clero, enviou uma carta bastante especial a um bispo francês, Mons. Pierre Pican, diocesano de Bayeux-Lisieux, condenado a três meses de prisão por ter acobertado Padre Rene Bissey, por sua vez condenado a 12 anos de prisão por ser culpado de abusos contra 11 menores. Na carta, assinada como prefeito do Vaticano, Castrillon Hoyos felicitava-se com o bispo francês porque o considerava "um verdadeiro modelo de pai que não denuncia seu filho."
A imprensa da época disse então que o bispo ficou ciente desses abusos durante a confissão e, portanto, estava vinculado por um sigilo inviolável, mas nunca foi esclarecido se o bispo tivesse recebido tal confissão em um único momento ou se o padre o procurasse regularmente para admitir suas falhas, contando sobre novos abusos.
O mesmo Cardeal Castrillon Hoyos, que enfatizou várias vezes esse detalhe relevante do segredo confessional, focalizou toda a sua atenção em outro aspecto e nunca esclareceu a questão, embora existente, do "segredo de confessionário", ou seja, como o confessor tinha realmente sido informado dos relatos do padre pedófilo.
Na carta de 2001, o prefeito escreveu: "Quero parabenizá-lo porque não denunciou um sacerdote à administração civil. Você agiu bem e quero felicitá-lo por ter um irmão no episcopado que, aos olhos da história e dos outros bispos, escolheu a prisão em vez de denunciar um filho-sacerdote"(1). Como é evidente a única preocupação do cardeal colombiano era que não tinha se verificado um caso de suposta "delação", elogiando o espírito de sacrifício de bispo Pican que, pela ótica do cardeal, preferiu a prisão à sicofantia. O cardeal colombiano nunca teve, no entanto, ao longo de sua longa vida, uma única palavra de proximidade e solidariedade por aquelas pobres onze vítimas, devastadas por aquele sacerdote "filho-do-bispo".
Mais tarde Castrillón Hoyos contou que a infame carta havia sido escrita depois de receber a permissão do Papa Wojtyla, que também deu o seu consentimento para que o cardeal enviasse cópia do documento a todos os bispos do mundo e o disponibilizasse na rede no site do dicastério. Esse detalhe muito significativo foi revelado pelo próprio Cardeal Castrillón Hoyos em abril de 2010, em uma conferência na Universidade de Murcia, na Espanha.
Tudo isso acontecia apenas oito anos atrás, quando o Papa Bento XVI estava fortemente empenhado em combater a pedofilia clerical. O então porta-voz do Vaticano padre F. Lombardi assim respondeu ao cardeal colombiano: "Este documento (a carta de Castrillón Hoyos) é uma prova de como foi oportuna a unificação da forma de lidar com casos de abusos sexuais de menores por membros do clero sob a competência da Congregação para a Doutrina da fé, para garantir uma condução rigorosa e coerente, como aconteceu de fato com os documentos aprovados pelo Papa em 2001".
É interessante e importante, como também será visto em lembranças subsequentes que publicaremos proximamente, constatar que os argumentos do cardeal Castrillón Hoyos não eram posturas particulares e privadas do cardeal. As palavras do cardeal colombiano, as ações e os gestos, as polêmicas (também as críticas contra o padre Federico Lombardi) eram o resultado de uma forma de pensar, uma rede específica de atitudes e interpretações das denúncias sobre atos de pedofilia clerical; justamente, uma espécie de “modalidade ambiental" que formalizava e legitimava uma maneira de pensar que o Papa Francisco foi o primeiro a chamar de “cultura do acobertamento".
Nota:
(1) A frase em espanhol: " Me congratulo con usted por no haber denunciado a un sacerdote a la administración civil. Usted ha actuado bien y me felicito de tener un hermano en el episcopado que, a los ojos de la historia y de los otros obispos del mundo, prefirió la prisión antes que denunciar a su hijo-sacerdote".
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A "cultura do encobrimento" em câmera lenta - Parte 1: a discrição e confidencialidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU