21 Agosto 2018
"As coisas mudaram radicalmente no Brasil nos últimos cinco anos após as Jornadas de Junho de 2013 e as ocupações secundaristas de 2016, tudo isso em meio a uma primavera feminista", escreve Rosana Pinheiro-Machado, professora Titular Visitante da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, em artigo publicado por The Intercept, 20-08-2018.
"Vedetes” era apelido das meninas que seguiam os integrantes “bondes” nos rolezinhos no shopping ou no baile funk. Alguns meninos nos relataram, por volta de 2011, que quanto mais roupas de marcas e dinheiro eles ostentassem, mais vedetes “corriam atrás”. Na vanguarda dos “rolês” estavam os homens, cabendo a elas um papel secundário, quase alegórico.
Só que as vedetes viraram o jogo.
As coisas mudaram radicalmente no Brasil nos últimos cinco anos após as Jornadas de Junho de 2013 e as ocupações secundaristas de 2016, tudo isso em meio a uma primavera feminista. Não é novidade que, nas classes populares, as mulheres exercem um papel crucial tanto como chefe de família quanto como lideranças comunitárias. Mas me refiro a um processo novo, de ruptura de estruturas sociais profundas, que ainda sequer é possível mensurar. Esse processo é marcado pela emergência de uma subjetividade contestatória através da qual as meninas se apropriam do debate da grande política, ajudando a formar, por exemplo, uma faixa de contenção à candidatura de Jair Bolsonaro, que encontra grande rejeição entre mulheres.
Quando eu e minha colega Lúcia Scalco visitamos escolas públicas em 2016, esperávamos que os novos “rolezeiros” tivessem participado das ocupações. Ao contrário, o que encontramos foi um discurso conservador e alinhado com Bolsonaro, esbarrando em forte oposição das adolescentes. Essa configuração é elucidativa de uma bifurcação inédita que transcende e potencializa a tradicional liderança comunitária feminina e o antigo conservadorismo patriarcal. De um lado, temos uma geração de mulheres politizadas e feministas; de outro, uma forte reação adversa masculina.
Isso ficou claro em algumas discussões em sala de aula, nas quais as meninas se sobressaiam na argumentação e eloquência diante de meninos quietos e cabisbaixos. Elas denunciavam a falta de coerência, o machismo, o racismo e a homofobia de Bolsonaro. Um deles chegou a me dizer que se sentia “oprimido” pelas colegas. Uma vez sozinhos, eles se referiam ao candidato como um símbolo, uma marca juvenil – tal como a Nike operava na época dos bondes.
Em tempos crise da segurança pública que transformou Porto Alegre em uma das cidades mais violentas do mundo, bem como em um momento de ascensão do feminismo, a figura de Bolsonaro parece ser um totem de virilidade que representa uma arma de fogo – uma arma que se defende de bandidos, mas também de outras ameaças inomináveis.
A bifurcação não se restringe a adolescentes de periferias. Um aspecto revelador nesse sentido é desestabilização dos afetos a partir de novos conflitos entre casais causados pela política. Muitos entrevistados são motoristas de Uber, da faixa de 25-30 anos, que sonham dirigir armados, enquanto suas parceiras temem que isso traga ainda mais perigo para as suas crianças.
Presenciamos incontáveis discussões entre casais, sendo comum ouvir que política é um tema que deve ser evitado nos relacionamentos. Em uma das entrevistas que fizemos, Joana, 53 anos, desatou a criticar Bolsonaro, com uma admirável capacidade argumentativa, diante de seu marido calado, que se dizia indiferente ao candidato. Horas depois, José Carlos, 64 anos, foi para o Facebook postar a famosa corrente das “42 razões para votar em Bolsonaro”. Joana relatou que, no outro dia, ele havia reclamado que ela “tinha falado demais e sido muito saliente”.
Como indicam os estudos publicados na Social Psychological and Personality Sciences e na Critical Sociology, nos Estados Unidos, já existe uma quantidade razoável de pesquisas que mostra que o voto a Donald Trump não se deu em função de uma classe média branca empobrecida, mas foi fundamentalmente motivado pelo preconceito e pela personalidade autoritária do candidato.
No Brasil, é preciso levar em consideração o contexto. Ainda não temos esses números para poder refletir com maior precisão. A crise econômica e política no Brasil foi muito brutal (do crescimento de 7,5% em 2010 para -3,7% em 2014), somando-se ao impeachment de Dilma Rousseff. A combinação do colapso econômico e o vácuo político certamente têm peso importante na intenção de votos a Bolsonaro no Brasil. Mas não podemos ignorar o componente de preconceito de gênero, de raça e sexualidade. É muito sintomática essa identificação masculina com a figura agressiva, e ao mesmo tempo profundamente vazia, de Bolsonaro. Se o candidato tem se mantido estável em segundo lugar após Lula, é preciso lembrar que esse número muda com o recorte de gênero – ele tem 27% de intenção de votos entre homens e 12% entre mulheres, segundo o DataFolha.
Estamos falando de penúria econômica, de falência democrática, mas também da crise do macho. E esses fenômenos são indissociáveis. A identificação com o candidato é também uma jogada desesperada de time que se vê caindo na tabela, uma reação a tantas vozes políticas emergentes que resolveram se rebelar dentro e fora de casa nos últimos anos.
Como num jogo de forças, a ordem de poder até então estabelecida tenta reverter uma transformação que parece não ter mais volta. As mulheres são a renovação política e formam um bloco de resistência contra o autoritarismo.
É a revolta das vedetes.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
‘Vi mulheres brigando com homens que fazem de Bolsonaro sua arma de fogo’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU