13 Junho 2014
Em entrevista concedida por email, a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora de Antropologia do Desenvolvimento na Universidade de Oxford, na Inglaterra, analisa o legado das manifestações de junho. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-doutora pela Universidade de Harvard, Rosana também analisa a repercussão internacional dos protestos.
A entrevista é de Letícia Duarte, publicada pelo jornal Zero Hora, 08-06-2014.
Eis a entrevista.
Quais as principais diferenças entre os protestos de 2013 e os deste 2014? O que mudou?
Eu acredito que os protestos de 2013 e 2014 são parte do mesmo processo. É uma continuidade de demonstrações públicas de profunda insatisfação com o cenário nacional. Creio que o que temos de diferente hoje é a natureza e do foco dessas demandas. Em 2013, eclodiram diversos movimentos de insatisfação: com a Copa, com as tarifas, etc. Tudo isso culminou em uma grande manifestação que se tornou plural e, certamente, já uma das maiores de nossa história. Hoje os protestos são mais localizados, mais focados em pautas específicas, como a Copa do Mundo, mas, sem dúvida, é uma continuidade. Creio que o que muda também é o fato de que, há poucos dias da Copa, o estrago já foi feito e há pouco para negociar com o governo a essa altura. São manifestações de indignação, de revolta e que querem passar uma mensagem para o Brasil e para o mundo, mais do que negociar com o governo, por isso, tende-se a ter uma repressão ainda mais forte.
O que tornou possível os levantes de junho de 2013? Que fatores foram decisivos para a eclosão das manifestações?
São muitos. Qualquer explicação ainda é superficial. O campo narrativa da história ainda terá muitas disputas discursivas. Mas, ressalto, sem uma análise que englobe múltiplas variáveis, geográficas, temporais, etc, não se dá conta. No âmbito internacional, como diz o sociólogo Manuel Castells, houve o encorajamento que foi possível pelas imagens do Egito. No Brasil, havia diversos protestos antiCopa e contra os rumos políticos do pais: Marco Feliciano, Aldeia Maracanã sendo removida, e o comitê popular da Copa, entre muitos outros eventos. Havia vários protestos nas redes e nas ruas antes de junho. Lembremos de Porto Alegre, insisto em minha palestras que temos que recontar as histórias de junho e não em função de um regionalismo meu, mas porque os 20 centavos de São Paulo se tornaram uma narrativa nacional. O que ocorreu em São Paulo se tornou "A" narrativa dos protestos. Isso é um problema grave do Brasil, dessa capacidade do que acontece no centro se tornar nacional, e o que acontece em outras partes se torna local.
Lembremos que os 20 centavos começou em Porto Alegre, com grande importância de coletivos como o Bloco de Lutas. Porto Alegre levou milhares as ruas e ganhou! Isso foi um fator também encorajador fundamental para estimular o próprio movimento de São Paulo e o MPL (Movimento Passe Livre). Também não entendemos o que aconteceu se não observarmos a trajetória do MPL, que há anos tem uma grande capacidade de mobilização de massas no país. Tudo isso se juntou e culminou em junho. Mas isso não é tudo, são apenas os eventos que se encontraram. Há de se pensar estruturalmente também nos limites do modelo de desenvolvimento brasileiro atual que gerou insatisfação geral. Mas aí a discussão é longa, pois representa a raiva das pessoas de viverem em um país que se vende para o mundo hoje como rico, mas que nao oferece infraestrutura e serviços de qualidade: transporte, saúde e educação.
A senhora escreveu que, em meio à crise global da democracia representativa, o número de filiados aos partidos da "extrema esquerda" aumentou consideravelmente após Junho de 2013. O que esse movimento sinaliza? A afirmação é baseada em algum estudo?
Eu publiquei isso após uma conversa informal na qual soube que houve crescimento de filiados no PSOL. Escrevi isso antes de minha apresentação sobre os protestos aqui em Oxford na qual vários colegas comentavam sobre esse movimento geral que aponta para insatisfação quase global contra a democracia partidária, que se parece unicamente como corrupta e um modelo esgotado. Os movimentos de junho tiveram esse apelo antipartidário com base nos coletivos que reinvindicam e praticam democracia direta. Após a discussão do Facebook, foi conferir os dados precisamente, e sim, houve um aumento, mas nada que fosse fora de uma linha normal. Em resumo, nao houve efeito contrário e antipartidário. No Brasil, a politica tradicional ainda ocupa um lugar central e quiçá se renovará. Creio que há uma tendência de que a democracia direta e os coletivos cresçam e, em vez de destruir e corroer o sistema partidário, possam melhorá-lo, no sentido democrático, pressionando e apontando suas falhas.
Qual o impacto das manifestações na imagem do Brasil no Exterior?
Eu acho que existem duas imagens em negociação. As capas de revistas que falam da incopetência gestora do Brasil e das obras inacabadas, que retatam a vergonha, etc, e das manifestações, que em meu entendimento mostram uma ideia positiva. O povo não é a sua elite gestora. O Brasil não é o país só do samba e do futebol. O Brasil em um país em que as pessoas têm ainda raiva, se mobilizam politicamente. É isso, afinal de contas, que queremos mostrar para o mundo, não é? Eu pelo menos sim!
Pensando no futuro: para onde estamos indo? É possível prever alguma direção?
Estamos vivendo um momento de polarização entre direita e esquerda como poucas vezes vivemos na história. Eu não gosto disso, porque isso vem com paixão, raiva e cegueira. O lado positivo é a capacidade do povo de se mobilizar. O negativo é o contra-ataque. Tenho medo desse momento de reacionário e conservador do país. E quando falo em reacionário e conservador falo literalmente: crimes de racismo se multiplicando na internet, lichamentos, ódio aos grupos populares. Ou seja, não se pode nem dizer que isso seria a direita. A direita liberal clássica defende como prioridade a garantia dos direitos civis. O que vemos no Brasil é uma massa com tendências fascistas, raivosas. Não há como saber se esse é um momento de communitas, de limbo que precede a Copa do mundo. É preciso que os movimentos sociais se mobilizem e se organizem com um discurso organizado a fim de evitar essa guinada ao conservadorismo. A história já demostrou que isso pode ser uma tendência possível.
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Rosana Pinheiro-Machado: "Qualquer explicação ainda é superficial" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU