10 Outubro 2016
Em quatro Estados, dezenas de escolas ocupadas contra a Medida Provisória-746. Estudantes afirmam: Reforma do Ensino é necessária, mas deve ter sentido emancipador, oposto ao pretendido pelo governo.
A reportagem é de Maíra Mathias em texto publicado originalmente no site da Escola Politécnica de Saúde Joaqum Venâncio (Fiocruz) e reproduzido por Outras Palavras, 09-10-2016.
Desde a semana passada, jovens de vários cantos do país voltaram a ocupar escolas e ruas. Diferente da primeira leva de ocupações, que começou em novembro do ano passado em São Paulo e se espalhou por vários estados contra as respectivas políticas de educação, a nova onda mira um alvo comum e tem pressa para derrubá-lo. Trata-se da Medida Provisória (MP) 746, que institui a reforma do ensino médio. Enviada pelo presidente Michel Temer ao Congresso Nacional em 22 de setembro, a MP tem 120 dias para ser votada. Contrários ao método da mudança – considerado autoritário – e ao conteúdo da reforma, estudantes secundaristas apostam nessa estratégia como forma mais eficiente de pressionar governo e parlamento. Rio Grande do Norte, Goiás, Distrito Federal e Paraná já têm escolas estaduais e institutos federais ocupados.
“Todos os dias tem manifestação, mas a ferramenta mais eficiente é a ocupação. Em âmbito nacional. Vai ser efeito dominó. Nosso objetivo é derrubar a MP e fazer com que, se houver uma reforma no ensino médio, essa reforma seja articulada com estudantes, professores e sociedade”, afirma Isabella Pereira, 18 anos, estudante do 3º ano do Centro de Ensino Médio 414 de Samambaia, uma das cidades satélite de Brasília. A escola foi a primeira ocupada no Distrito Federal, em 3 de outubro.
“Primeiro a gente fez passeatas e outros manifestos que não incomodavam ninguém. Então a gente decidiu ocupar porque aí as aulas só voltam quando a Medida Provisória for cancelada. Os estudantes estão na luta, a gente tem muitas escolas organizadas e vamos ocupar tudo”, reitera – a 1,3 mil quilômetros dali, em São José dos Pinhais, no Paraná – Mariana da Silva. A menina, de 16 anos, estuda no Colégio Estadual Pe. Arnaldo Jansen, primeiro a ser tomado no município que fica na região metropolitana de Curitiba – que até o dia 5 de outubro já tinha 20 escolas ocupadas. De acordo com Mariana, muitos jovens de outros estados têm procurado os estudantes paranaenses para saber como podem organizar ocupações em suas unidades. Ela ressalta que são os próprios alunos que estão à frente do movimento. “A maioria dos estudantes que estão organizando são independentes. E todos são contra a Medida Provisória. Agora, se é a favor de Dilma, de Temer ou de nenhum dos dois, a gente não está entrando nesse assunto”.
De forma inédita, os Institutos Federais – os antigos Cefets – também aderiram à onda de ocupações. O campus de Natal do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) foi o primeiro a ser ocupado no país, em 28 de setembro. No dia 29, os campi de Mossoró e Ipanguaçu seguiram o mesmo caminho e, na sequência, outros 11 paralisaram as atividades contra a reforma do ensino médio. “As ocupações duraram até sexta-feira porque tivemos que liberar as unidades para a Justiça Eleitoral. Mas vamos voltar a partir desta semana, com mais força”, afirma Pedro Gorki, 15 anos, vice-presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) no estado. Segundo ele, por lá a pauta das ocupações é “primeiramente fora Temer” e, além da Medida Provisória, abrange ainda a luta contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 – que cria um teto para os gastos públicos, afetando diretamente áreas como educação e saúde – e contra “a lei da mordaça”, apelido dado ao projeto de lei Escola sem Partido.
O campus de Águas Lindas do Instituto Federal de Goiás (IFGO) também está ocupado desde 3 de outubro. “Nós tivemos intensos debates, lemos a Medida Provisória e concluímos que somos totalmente contra. É a primeira MP na educação. Consideramos isso um comportamento extremamente autoritário do governo. Eles falam que a reforma está sendo discutida desde 2012. Mas discutida com quem? Não sabemos de nenhuma escola que tenha participado da discussão. Nenhum aluno, nenhum professor. O que nos leva a pensar: com quem eles estavam debatendo essa reforma?”, questiona Isak Batista Serafim, que está no 3º ano do ensino médio integrado ao curso técnico em vigilância em saúde.
Não passa despercebido aos estudantes um descompasso: embora o governo sustente que a reforma do ensino médio vem ao encontro dos interesses dos jovens, a proposta ignora o diagnóstico feito por eles próprios. Consideradas por muitos o maior movimento recente da educação brasileira, as ocupações começaram em novembro de 2015, se estenderam (de forma intermitente) até julho e abarcaram em maior ou menor grau dez estados: São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Paraná, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia. Levantaram uma série de problemas, a maior parte vinculada ao sucateamento da educação pública decorrente da falta de investimentos, à crescente privatização do ensino com a entrega da administração de unidades para organizações sociais (OSs) ou parcerias público-privadas (PPPs) e à falta de democracia na gestão.
“Incrivelmente, depois das ocupações no país inteiro temos esse projeto que ataca diretamente a educação como se fosse uma resposta aos jovens que queriam melhorias, que lutavam por coisas básicas. O que a gente fez nas ocupações oferece um prato cheio sobre o modelo de educação que queremos. E a resposta deles foi o Escola sem Partido, foi a Medida Provisória. Então vai ter muita luta”, garante Izabel Catão, 17 anos, diretora de comunicação da Associação Municipal dos Estudantes Secundaristas (Ames) no Rio de Janeiro e estudante do Colégio Estadual Souza Aguiar, que ficou ocupado entre abril e junho deste ano.
“As ocupações foram o reflexo da educação que queremos. Uma educação libertária, uma educação que leve o estudante além. A reforma proposta não leva nada disso em consideração. A reforma é um grande problema porque não é só um retrocesso no ensino. É o primeiro passo para a privatização das escolas, uma forma de aprofundar ainda mais o desmonte da educação pública no país”, analisa Marcelo Rocha, 19 anos, aluno do 3º ano da Escola Estadual Profa. Maria Elena Colonia, localizada em Mauá, na região metropolitana de São Paulo. A unidade foi ocupada no início do movimento, em 18 de novembro do ano passado, e voltou a ser ocupada em março no contexto da pressão pela instauração da CPI da merenda para apurar esquema de desvio que envolveu, segundo as investigações apontam, altos funcionários da Casa Civil do governo Geraldo Alckmin (PSDB).
Em São Paulo e no Rio, os estudantes organizaram protestos que reuniram centenas de pessoas no dia 30 de setembro. “Mas mais importante do que atos e manifestações agora é a conscientização. E a gente tem trabalhado muito nisso aqui em São Paulo. Conscientizar e mostrar para o aluno o que é a reforma do ensino médio. O governo vai mostrar tudo como a coisa mais perfeita, mas a gente sabe que não é bem assim” afirma Marcelo.
A maior crítica dos jovens à reforma do ensino médio proposta pelo ministro da educação Mendonça Filho é a adoção de um currículo mínimo a partir da metade do segundo ano, composto por apenas três matérias obrigatórias – matemática, português e inglês – enquanto as outras disciplinas dependeriam do itinerário formativo “escolhido” pelo jovem. Contudo, não está claro se esta será uma escolha ou imposição da realidade, já que, na forma como foi redigida a MP, as escolas não estão obrigadas a oferecer os cinco itinerários: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional.
“A gente entrou num consenso de que a reforma quer tirar o nosso senso crítico. Eles querem tirar a nossa chance de aprender a pensar com as matérias que são essenciais: sociologia, filosofia, história, geografia. E querem transformar a escola da periferia em produtora de mão de obra barata. A juventude da periferia saberia perfeitamente apertar um parafuso, fazer uma conta [compatível com a função] de caixa de mercado”, pontua Isabella Pereira no DF. Em São Paulo, Marcelo Rocha faz coro: “A obrigatoriedade só das disciplinas de matemática, português e inglês não é flexibilização. É prisão. Porque se o aluno não tem conhecimento algum, ele não tem opção e vai seguir o fluxo do sistema capitalista. É isso o que o governo federal quer hoje: não pense em crise, não pense na situação política: trabalhe”, diz.
Os jovens se preocupam com a criação de um abismo entre gerações e o aprofundamento da desigualdade de oportunidades entre as classes sociais. “Os jovens que estão saindo já têm um posicionamento crítico. Mas os jovens que estão entrando não. E, com isso, terão menos condições de lutar pelos seus direitos”, acredita a paranaense Mariana da Silva. “Nas escolas particulares, os alunos continuarão a ter sociologia, filosofia, história, geografia. E entrarão na faculdade”, prevê Isabella.
A adoção do ensino integral é mais um elemento nessa equação da iniquidade: “A periferia necessita trabalhar, principalmente durante o ensino médio. Não tem como se manter estudando das 7h às 14h. Com isso, a gente prevê uma evasão gigantesca. O ensino médio noturno fez com que os jovens conseguissem ter acesso ao mercado de trabalho e ao ensino médio regular. Vai ter gente criando estratégias de emprego na madrugada. Essa juventude menor de idade vai sofrer muito mais do que já sofre para conseguir manter sua renda em casa, ter o básico. Problema que a burguesia não tem”, nota Marcelo.
Isak Serafim, de Goiás, elenca outros pontos negativos da MP: “A questão de que qualquer um pode dar aula desde que tenha ‘notório saber’, que desqualifica as licenciaturas, os profissionais que se preparam muito para ser professores. A divisão das matérias em blocos. Não tem cabimento um professor de sociologia dar aula de geografia, história, filosofia. Ia precarizar muito o estudo. E a questão do itinerário. Estudantes de 14 anos não têm maturidade para decidir o seu futuro. Se o jovem que escolheu exatas se arrepender vai ter que voltar ao ensino médio?. Essa MP deixa muita brecha.”, critica.
As ocupações e manifestações país afora deixam claro que grande parte da juventude brasileira não concorda com a medida provisória 746. Mas alguns acham que o ensino médio precisa, sim, de reforma. Os estudantes não querem só o feijão com arroz e se insurgem contra o ensino médio pautado na decoreba de conteúdos para o Enem ou outros sistemas de avaliação de ensino que trabalham com a premissa do currículo mínimo para ranqueamento.
“O modelo de educação proposto pela reforma é reforçar essa vivência de sala de aula com as fileiras, de olhar para a nuca, de não conversar e o professor à frente como pessoa que transmite o conhecimento. A gente vê mais isso nas aulas de matemática, português, que impõem esse padrão mais do que nas outras – filosofia, sociologia – onde a gente consegue fazer uma roda de debates, fomentar o senso crítico. A gente vê a educação física até como uma recreação. O futebol, o vôlei deixam a gente mais próximo dos amigos. Na aula de artes o aluno consegue expressar as suas emoções seja através de uma pintura, teatro, dança. A reforma quer calar a gente”, acredita Marcelo.
Para os jovens, a reforma precisa ser ‘mais’: mais democrática, com mais recursos. “O governo mostra sua contradição quando quer ao mesmo tempo congelar o que chama de gastos com educação aprovando a PEC 241 e passar uma medida que vai transformar o ensino médio em integral o que subentende mais investimentos”, pontua Isak. “Eles só dão a canetada. A gente é que sabe o que está faltando. E está faltando ventilador, data show, auditório, lanche, passe livre. Mais professores – porque estamos com déficit grande – e professores bem pagos”, lista Isabella.
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Secundaristas: a potência das novas ocupações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU