09 Agosto 2018
O Direito brasileiro não adota a viabilidade do nascituro para proteção de seus direitos.
O artigo é de Eros Grau, advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do STF, publicado por O Estado de S. Paulo, 03-08-2018.
A mulher tem direito sobre o corpo. Mas qual corpo? Aquele que gesta no seu ela pode matar?
(José Antonio Brenner)
O Supremo Tribunal Federal (STF) há de estar começando, por estes dias, a apreciar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamenta (ADPF) 442, que tem por objeto a liberação do aborto até a 12.ª semana de gestação.
Conta-se que num jardim no Inferno há uma placa assim: “É proibido arrancar flores, mas os botões podem ser suprimidos antes de se abrirem”. Na Terra, não. Aqui, aborto é permitido única e exclusivamente nos termos do artigo 128 do Código Penal: “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; e II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Fora dessas hipóteses, é crime. Isso é o que diz a lei, com todas as letras. Daí porque, repetindo o que tenho dito e escrito por aí, mais um grito que dou, bem alto, pela vida!
Há quem diga que a medicina dá como certa a morte do bebê anencéfalo fora do útero materno em 100% dos casos, cerca de 65% das crianças perecendo ainda no ventre da mãe. Não é, contudo, necessária qualquer certeza médica para afirmar que a morte é certa em 100% dos casos de vida extrauterina! Ela é tão certa para o feto anencéfalo como para qualquer um de nós. Ademais, se há morte, é porque em algum momento houve vida, ainda no interior do útero materno, a partir da fecundação.
A estatística dá notícia de que 35% dos fetos anencéfalos vencem o período de gestação e chegam ao parto, momento que lhes é garantido à luz da Constituição do Brasil e da lei. O que a estatística não diz é que a certeza do diagnóstico médico da anencefalia não é absoluta, de modo que a prevenção do erro, mesmo culposo, não será sempre possível. O que dizer, então, do erro doloso?
Causa espanto a ideia de que se possa promover defesa do aborto sem interesse econômico. Estou plenamente convencido de que, embora aludindo à defesa de apregoados direitos da mulher, o que se pretende é a migração da sua prática do universo da ilicitude penal para o campo da atividade econômica. Em termos diretos e incisivos, para o mercado.
O feto faz parte do gênero humano, parcela da humanidade. Há, nele, processo vital em curso. O útero é a morada da vida. Nele se dão momentos anteriores ao nascimento, mas de Vida.
Daí que a proteção da sua dignidade é garantida pela Constituição. É verdade que sua autonomia se manifesta de maneira especial, na medida em que a única opção que detém é nascer. Mas é autonomia. Não há nenhuma dúvida, pois, a respeito do fato de que há, no aborto, destruição da vida.
Anencéfalo ou não, um filho morto em estado puerperal é um ser vivo. Sua morte consubstancia homicídio. Então, pergunto: por que não seria criminoso o assassinato de um feto anencéfalo, que – como dizem os artigos 542, 1.799 e 1.621 do Código Civil – pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e ser adotado?
O processo da civilização vem lentamente banindo desumanidades, de sorte que, entre nós, desde a vigência do primeiro Código Civil, certas patologias deixaram de consubstanciar causa de recusa à capacidade jurídica do recém-nascido.
O nascituro é titular de direitos adquiridos. Leia-se o texto do artigo 2.º do nosso Código Civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Não há, pois, espaço para distinções, como assinala José Neri da Silveira num belo parecer: “Em nosso ordenamento jurídico, não se concebe distinção também entre seres humanos em desenvolvimento na fase intrauterina, ainda que se comprovem anomalias ou malformações do feto; todos enquanto se desenvolvem no útero materno são protegidos, em sua vida e dignidade humana, pela Constituição e leis”.
Há quem argumente com a inviabilidade do nascituro portador de anencefalia, pretendendo justificar a prática do aborto de ser humano que não sobreviverá fora do útero materno. O Direito brasileiro não adota, contudo, a viabilidade do nascituro para proteção de seus direitos. Leiam-se os preceitos do Código Civil que linhas acima referi.
A interpretação/aplicação do direito pressupõe a plena compreensão da realidade pelo intérprete. Mas ele não é autorizado a decidir segundo qualquer outra lógica que não a jurídica. Dela não se pode afastar, seja para ceder à ciência, seja para adotar valores de ética religiosa. Há de decidir no quadro da ordem jurídica, estritamente. E não há como, na moldura da lógica jurídica, conceber o feto como coisa, como res.
Nenhum, entre a hierarquia dos juízes de nossa terra, em tese negaria aplicação do disposto no artigo 123 do Código Penal – que tipifica o crime de infanticídio – à mulher que mate, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho anencéfalo, durante o parto ou logo após, sujeitando-a a pena de detenção, de dois a seis anos. Se o filho anencéfalo morto pela mãe sob a influência do estado puerperal é ser vivo, por que não o seria o feto, que pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e ser adotado?
Glosando o Almada Negreiros, quem defende o aborto está como que a gritar “morra o feto, morra, pim!”.
Uma breve história, por fim. Um homem simples, do campo, ouvindo algumas pessoas discutirem em torno de ser ou não perigosa, para a mãe, a interrupção da gravidez no segundo e no terceiro mês de gestação, perguntou-lhes, ingenuamente, se não seria melhor deixar nascer a criança e matá-la, no primeiro momento de vida fora da mãe...
Um horror! A vida é maravilhosa, mas – lastimavelmente –, em plena hemorragia de subjetividade, juízes sem preconceitos, sem saberem o que é o Direito, fazem suas próprias leis...
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