05 Abril 2018
Passaram-se 50 anos desde aquele 4 de abril de 1968 em Memphis, a capital do contado de Shelby, no Estado do Tennessee, em que Martin Luther King foi morto. Ele tinha ido à cidade para organizar uma manifestação nos dias seguintes.
No final da tarde daquele dia, enquanto da varanda do segundo andar do Lorraine Motel onde ele estava hospedado falava à multidão, às 18h01min foi atingido na cabeça por um tiro de um rifle de precisão.
A reportagem é de Antonio Dall'Osto, publicada por Settimana News, 03-04-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Levado às pressas para o Hospital St. Joseph, os médicos constataram danos cerebrais irreversíveis e foi declarado morto. Eram 19h05min.
O corpo foi enterrado no Cemitério Southview em Atlanta, a capital do estado federal da Geórgia, onde ainda descansa.
Com ele apagou-se uma das vozes mais proféticas nos Estados Unidos, cuja figura se aproxima por suas atividades pacíficas à de Gandhi, líder da não-violência, de que King era estudioso apaixonado e admirador.
Nasceu em Atlanta em 15 de janeiro de 1929, segundo filho de Martin Luther King sênior de origem africano-irlandesa, pastor da Igreja Batista.
Ao nascer, ele foi chamado de Michael King, nome que seu pai mudou por Martin Luther King durante uma viagem à Terra Santa em 1934.
Ainda jovem, foi aconselhado por seu pai a se tornar um pastor batista. Apesar da relutância inicial, ele começou sua trajetória de estudos religiosos no outono de 1948.
Em 1950, ele participou com muita satisfação de uma conferência sobre Mahatma Gandhi. Em 8 de maio de 1951, recebeu seu diploma de bacharel em teologia e 5 de junho de 1955, o doutorado em filosofia.
Junto com Ralph Abernathy e outros ativistas pelos direitos civis da comunidade afro-americana, fundou a Southern Christian Leadership Conference com o objetivo de organizar de forma mais eficaz o movimento e conferir uma autoridade segura de referência para os direitos, unificando os vários grupos de negros que anteriormente circulavam pelas diferentes paróquias da cidade.
O seu envolvimento civil é condensado na Letter from Birmingham Jail (Carta da Prisão Birmingham), escrita em 1963, e em Strength to love (Força para Amar) que constituem uma declaração apaixonada de sua indomável cruzada pela justiça. Muitas vezes foi alvo de ataques e ameaças. Em 1964 ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
King foi reconhecido como um incansável apóstolo da resistência não-violenta, herói e paladino dos rejeitados e marginalizados "redentor de rosto negro". Por esta razão, ele sempre se expôs na linha de frente para derrubar na sociedade estadunidense dos anos 1950 e 1960 todos os tipos de preconceito étnico. Ele pregou o otimismo criativo do amor e da resistência não violenta, como a alternativa mais segura tanto para a resignação passiva como para a reação violenta preferida de outros grupos de cor, como os seguidores de Malcolm X.
Luther King considerava o egoísmo como algo destrutivo para o ser humano. Ele afirmava que qualquer um poderia ser grande, mesmo sem instrução ou competências: bastava uma alma gentil. Ele via no progresso contínuo a ausência da alma humana que se fazia pequena em comparação com suas obras gigantescas. Em sua opinião, a riqueza só poderia ser alcançada se a pobreza tivesse deixado de existir. Afirmava que se uma pessoa não estava pronta para morrer por algo em que ela acreditava, não poderia estar "pronta para viver" e que as qualidades de um homem se mostram somente quando ele é confrontado com uma situação difícil; só a coragem permite superar o medo.
King falou de forma crítica contra o capitalismo selvagem e o socialismo real, presentes na URSS e em outros países. Em seus sermões, especialmente aquele dedicado à justiça e reproduzido na íntegra no livro La Forza di Amare (publicado pela SEI), defendeu a necessidade de reconhecer o bem e o mal em ambos os sistemas econômicos que se enfrentavam durante a Guerra Fria.
Partindo da convicção de que Deus deseja libertar do pecado a própria estrutura social e econômica, defendeu que o capitalismo é fonte de liberdade e de riqueza para os seres humanos, mas, ao mesmo tempo, também fonte de empobrecimento espiritual, pois produz materialismo e consumismo desenfreado, da mesma forma que o comunismo soviético, nascido das justas demandas de igualdade, mas que destruía a liberdade individual e aniquilava o homem com seus meios cruéis e aberrantes.
King acreditava no sonho da fraternidade humana entre os povos da terra, na chamada beloved community (comunidade amada) que, a seus olhos, era a "síntese criativa" da tese (capitalismo) e da antítese (comunismo), motivada por uma profunda fé em Jesus Cristo.
Entre as muitas controvérsias que precisou suportar, uma surgiu por causa de sua introdução para o livro Negroes With Guns (Negros com armas) de Robert Williams, um residente em Cuba, que transmitia regularmente três vezes por semana mensagens consideradas revolucionárias e de insurgência nas ondas curtas. Mas King permaneceu sempre coerente com sua escolha de rejeição total a toda forma de atitude violenta.
Hoje, 50 anos depois de seu assassinato, parece-nos oportuno reler seu famoso discurso de 28 de agosto de 1963, proferido durante a marcha pelo trabalho e pela liberdade em frente ao Lincoln Memorial em Washington em que declarou várias vezes a frase que se tornou símbolo e razão de todos os seus ideais I have a dream (eu tenho um sonho), em que ele expressava o profundo desejo que cultivava no coração, ou seja, que cada homem fosse reconhecido como igual a qualquer, com os mesmos direitos e as mesmas prerrogativas.
É um discurso de extrema importância e válido inclusive para os nossos tempos em que as desigualdades, as rejeições, as exclusões e os muros entre os povos, em vez de diminuir, tendem a crescer. A voz de King, sufocada no sangue, grita mais alto que nunca ao mundo I have a dream.
Abaixo, o texto integral do referido famoso discurso.
Discurso de Martin Luther King (28-08-1963):
"Estou feliz por estar hoje com vocês num evento que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nosso país.
Há cem anos, um grande americano, sob cuja simbólica sombra nos encontramos, assinou a Proclamação da Emancipação. Esse decreto fundamental foi como um grande raio de luz de esperança para milhões de escravos negros que tinham sido marcados a ferro nas chamas de uma vergonhosa injustiça. Veio como uma aurora feliz para pôr fim à longa noite de cativeiro.
Mas, cem anos mais tarde, devemos encarar a trágica realidade de que o negro ainda não é livre. Cem anos mais tarde, a vida do negro está ainda infelizmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação.
Cem anos mais tarde, o negro ainda vive numa ilha isolada de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o negro ainda definha nas margens da sociedade americana estando exilado em sua própria terra. Por isso, encontramo-nos aqui hoje para dramatizar essa terrível condição.
De certo modo, viemos à capital do nosso país para descontar um cheque. Quando os arquitetos da nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam a assinar uma nota promissória da qual todo americano seria herdeiro. Essa nota foi uma promessa de que todos os homens teriam garantia aos direitos inalienáveis de “vida, liberdade e à procura de felicidade”.
É óbvio que a América de hoje ainda não pagou essa nota promissória no que concerne aos seus cidadãos de cor. Em vez de honrar esse compromisso sagrado, a América entregou ao povo negro um cheque inválido devolvido com a seguinte inscrição: “Saldo insuficiente”.
Porém recusamo-nos a acreditar que o banco da justiça abriu falência. Recusamo-nos a acreditar que não haja dinheiro suficiente nos grandes cofres de oportunidade desse país. Então viemos para descontar esse cheque, um cheque que nos dará à vista as riquezas da liberdade e a segurança da justiça.
Viemos também para este lugar sagrado para lembrar à América da clara urgência do agora. Não é hora de se dar ao luxo de procrastinar ou de tomar o remédio tranquilizante do gradualismo. Agora é tempo de tornar reais as promessas da democracia.
Agora é hora de sair do vale escuro e desolado da segregação para o caminho iluminado da justiça racial. Agora é hora [aplausos] de retirar a nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade. Agora é hora de transformar a justiça em realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação não levar a sério a urgência desse momento. Esse verão sufocante da insatisfação legítima do negro não passará até que chegue o revigorante outono da liberdade e igualdade. Mil novecentos e sessenta e três não é um fim, mas um começo. E aqueles que creem que o negro só precisava desabafar e que agora ficará sossegado, acordarão sobressaltados se o país voltar ao ritmo normal.
Não haverá nem descanso nem tranquilidade na América até o negro adquirir seus direitos como cidadão. Os turbilhões da revolta continuarão a sacudir os alicerces do nosso país até que o resplandecente dia da justiça desponte.
Há algo, porém, que devo dizer a meu povo, que se encontra no caloroso limiar que conduz ao palácio da justiça: no processo de ganhar o nosso legítimo lugar não devemos ser culpados de atos errados. Não tentemos satisfazer a sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio. Devemos sempre conduzir nossa luta no nível elevado da dignidade e disciplina.
Não devemos deixar que o nosso protesto criativo se degenere na violência física. Repetidas vezes, teremos que nos erguer às alturas majestosas para encontrar a força física com a força da alma.
Esta nova militância maravilhosa que engolfou a comunidade negra não nos deve levar a desconfiar de todas as pessoas brancas, pois muitos dos irmãos brancos, como se vê pela presença deles aqui, hoje, estão conscientes de que seus destinos estão ligados ao nosso destino.
E estão conscientes de que sua liberdade está intrinsicamente ligada à nossa liberdade. Não podemos caminhar sozinhos. À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos em frente. Não podemos retroceder.
Há quem pergunte aos defensores dos direitos civis: “Quando é que ficarão satisfeitos?” Não estaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos indescritíveis horrores da brutalidade policial. Jamais poderemos estar satisfeitos enquanto os nossos corpos, cansados com as fadigas da viagem, não conseguirem ter acesso aos hotéis de beira de estrada e das cidades.
Não poderemos estar satisfeitos enquanto a mobilidade básica do negro for passar de um gueto pequeno para um maior. Não podemos estar satisfeitos enquanto nossas crianças forem destituídas de sua individualidade e privadas de sua dignidade por placas onde se lê “somente para brancos”.
Não poderemos estar satisfeitos enquanto um negro no Mississippi não puder votar e um negro em Nova Iorque achar que não há nada pelo qual valha a pena votar. Não, não, não estamos satisfeitos e só estaremos satisfeitos quando “a justiça correr como a água e a retidão como uma poderosa corrente”.
Eu sei muito bem que alguns de vocês chegaram aqui após muitas dificuldades e tribulações. Alguns de vocês acabaram de sair de pequenas celas de prisão. Alguns de vocês vieram de áreas onde a sua procura de liberdade lhes deixou marcas provocadas pelas tempestades de perseguição e pelos ventos da brutalidade policial.
Vocês são veteranos do sofrimento criativo. Continuem a trabalhar com a fé de que um sofrimento injusto é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Luisiana, voltem para as favelas e guetos das nossas modernas cidades, sabendo que, de alguma forma, essa situação pode e será alterada. Não nos embrenhemos no vale do desespero.
Digo-lhes hoje, meus amigos, que, apesar das dificuldades e frustrações do momento, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia essa nação levantar-se-á e viverá o verdadeiro significado da sua crença: “Consideramos essas verdades como auto-evidentes que todos os homens são criados iguais.”
Eu tenho um sonho que um dia, nas montanhas rubras da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes de donos de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia mesmo o estado do Mississippi, um estado desértico sufocado pelo calor da injustiça, e sufocado pelo calor da opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho um sonho hoje.
Eu tenho um sonho que um dia o estado do Alabama, com seus racistas cruéis, cujo governador cospe palavras de “interposição” e “anulação”, um dia bem lá no Alabama meninos negros e meninas negras possam dar-se as mãos com meninos brancos e meninas brancas, como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje.
Eu tenho um sonho que um dia “todos os vales serão elevados, todas as montanhas e encostas serão niveladas; os lugares mais acidentados se tornarão planícies e os lugares tortuosos se tornarão retos e a glória do Senhor será revelada e todos os seres a verão conjuntamente”.
Essa é a nossa esperança. Essa é a fé com a qual eu regresso ao Sul. Com essa fé nós poderemos esculpir na montanha do desespero uma pedra de esperança. Com essa fé poderemos transformar as dissonantes discórdias do nosso país em uma linda sinfonia de fraternidade.
Com essa fé poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ser presos juntos, defender a liberdade juntos, sabendo que um dia haveremos de ser livres. Esse será o dia, esse será o dia quando todos os filhos de Deus poderão cantar com um novo significado:
Meu país é teu, doce terra da liberdade, de ti eu canto.
Terra onde morreram meus pais, terra do orgulho dos peregrinos, que de cada lado das montanhas ressoe a liberdade!
E se a América quiser ser uma grande nação, isso tem que se tornar realidade.
E que a liberdade ressoe então do topo das montanhas mais prodigiosas de Nova Hampshire.
Que a liberdade ressoe das poderosas montanhas de Nova Iorque.
Que a liberdade ressoe das elevadas montanhas Allegheny da Pensilvânia.
Que a liberdade ressoe dos cumes cobertos de neve das montanhas Rochosas do Colorado.
Que a liberdade ressoe dos picos curvos da Califórnia.
Mas não só isso; que a liberdade ressoe da montanha Stone da Geórgia.
Que a liberdade ressoe da montanha Lookout do Tennessee.
Que a liberdade ressoe de cada montanha e de cada pequena elevação do Mississippi. Que de cada encosta a liberdade ressoe.
E quando isso acontecer, quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar de cada vila e cada lugar, de cada estado e cada cidade, seremos capazes de fazer chegar mais rápido o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção espiritual negra:
Finalmente livres! Finalmente livres!
Graças a Deus Todo Poderoso, somos livres, finalmente."
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Martin Luther King: o "sonho" despedaçado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU