29 Agosto 2013
Martin Luther King falava olhando para o céu. Parece incrível agora, enquanto falamos a respeito como que em um livro de história, que naquele palco do Lincoln Memorial de Washington dois rapazes brancos, Bob Dylan e Joan Baez, tenham logo conquistado a multidão, na imensa praça e em toda a América que acompanhava "ao vivo"
O relato é do deputado, jornalista e escritor italiano Furio Colombo, em artigo para o jornal Il Fatto Quotidiano, 27-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O escritório de Martin Luther King, na parte de trás da igreja batista da Auburn Avenue, em Atlanta, era muito pequeno, ou ao menos pequeno demais para a sua mesa. Naquele dia, ele falava de pé, sempre com a camisa branca e o nó muito apertado. Entre a mesa e a porta, havia apenas lugar para poucas cadeiras volumosas, talvez doado por uma escola. Eu participava pela primeira vez. Andrew Young (que depois se tornaria embaixador das Nações Unidas) tinha me convidado. Havia, como sempre, Jesse Jackson e Joshua Williams. Havia também o informante do FBI, que acompanhava cada movimento de King. Todos fingiam não saber disso, e nem depois foi dado o seu nome.
Era o início de 1961, e esse foi o meu primeiro encontro com Martin Luther King (Doctor King, diziam todos em Atlanta), pastor de uma igreja batista, organizador político e já conhecido como pregador carismático. Dois meses depois, em Nova York, devíamos ser cerca de 20 pessoas, na bela casa de Jean Stein, no Dakota Building, o edifício que se tornou célebre muitos anos depois pelo filme O bebê de Rosemary, de Polanski, e depois nunca esquecido, porque John Lennon foi morto, em uma noite de dezembro, no portão da grande casa que estava voltada ao Central Park.
Jean Stein, filha de um produtor de Hollywood e esposa do vice-ministro da Justiça de Kennedy, já era conhecida como defensora das causas liberais mais audazes (extremistas, teria dito o chefe do FBI, J. Edgar Hoover). Naquela noite, ela queria apresentar aos seus hóspedes um jovem negro com um bigodinho, o sorriso pronto e um forte aperto de mão. Ele já tinha estado duas vezes em Nova York, em busca de ajuda. Nunca em uma casa como esta.
Estavam David Halberstam e Tom Wolfe, com Guy Talese, portanto o "novo jornalismo", estava Kay Graham, proprietária do Washington Post, a jovem Barbara Walters, que se sabia que se tornaria Anchor Woman (apresentadora) do telejornal da ABC. Estava o fundador e chefe da CBS, Bill Paley, com o protagonista do programa jornalístico 60 Minutes, Mike Wallace, ao qual George Clooney dedicaria o seu filme Boa Noite e Boa Sorte tantos anos depois.
Todos sabíamos das marchas e da não violência, mas era a primeira vez que, nesse nível, Martin Luther King podia encontrar, falar, explicar e pedir apoio a um grupo como esse. A anfitriã o apresentava como ele queria na Geórgia: "Doctor King". Era um doutorado em teologia, e o jovem reverendo da Southern Christian Leadership Conference, da qual ele era fundador e presidente, tinha entendido que ser "o doutor King" embaraçava os policiais das cidades grandes e pequenas dos Estados do Sul, onde ele organizava as suas manifestações, as suas marchas, os seus comícios contra o racismo e o apartheid, e onde ele era continuamente preso por "conduta desordeira"...
Ele nunca quis ser "o reverendo King", com a mesma intuição de que, nos mesmos anos, ele estava guiando um jovem e ainda não conhecido professor de Harvard a ser, rigorosamente, em todas as ocasiões, "doctor Kissinger", em vez de "professor", porque esse título expira assim que se deixa de lecionar.
Em um certo ponto, Jean Stein pediu silêncio, os garçons com as bandejas de bebidas se detiveram, e o doutor King falou. Tinha uma sensibilidade muito forte (rara nos pregadores) pela diferença entre espaço público e espaço privado, ou entre o pódio (mesmo que fosse uma caixa) e 20 pessoas interessadas em ouvir.
Portanto, ele falou de modo quase confidencial. Mas os dois passos de distância tinham importância. Ele assumia a responsabilidade de quem traz um anúncio. Ele parecia não notar a relação amigável ou a evidente benevolência de quem o hospedava e de quem o ouvia. Importava-lhe o peso dos fatos. O confronto entre brancos racistas e negros excluídos nos Estados do Sul estava por se tornar revolta. Não era o caso de ser "bom" e "religioso". Ele tinha que ser claro.
Lembro-me esta frase: "Não estou falando a vocês sobre o melhor e o pior, nem sobre justiça e injustiça. Estou lhes falando sobre a diferença, em um grande país, entre conviver e dividir-se". Ele antecipou, em uma narração dos eventos que duraria não mais do que poucos minutos, a grande e ainda obscura verdade de que a África do Sul logo seria a prova. "O racismo anula a dignidade de um país. Anula e mata".
Na marcha de Birmingham (Alabama), no ano seguinte – a multidão já era de muitos milhares, as suas manifestações eram notícia nos telejornais da noite –, eu estava pouco distante, juntamente com Andrew Young e Jesse Jackson, quando ele foi preso. Eu dei um passo à frente para pagar a fiança, que era de 100 dólares, e ele me pediu para não fazê-lo. "Esta é a nossa história – disse-me –, cabe a nós mudá-la". O expediente para impedir que a polícia, até com canhões de água e cães-lobos, dissolvesse as fileiras e dividisse as marchas era que cada um segurasse no braço do outro de modo a formar cortejos em malhas muito estreitos.
Quando estavam, como em Selma, Joan Baez e Bob Dylan, o cordão se formava ao redor e atrás das suas costas, de modo a empurrá-los e detê-los ao mesmo tempo, para que pudessem tocar os violões, mas também para impedir que fossem isolados e presos. A imagem de uma dessas marchas com Baez e Dylan à frente tornou-se a capa de um livro meu (Invece della violenza, Ed. Bompiani, no mesmo ano).
Mas o grande evento tinha ocorrido antes, em 1963, no dia 28 de agosto, a marcha sobre Washington de 250 mil negros, o discurso I have a dream, a reviravolta inesquecível do movimento pelos direitos civis, que mudaria profundamente os Estados Unidos, apesar do sangue e dos crimes, até a ainda incrível presidência de Barack Obama.
Na Auburn Avenue e no pequeno escritório com a mesa grande demais que nunca mudou (mas a casa era na própria Avenue, a poucos quarteirões de distância), os preparativos eram intensos e frenéticos, embora todos soubessem da marcha, e ninguém, do discurso.
Sabia-se que ele sempre o trazia na jaqueta, mas a jaqueta era apertada, e as folhas brotavam do bolso interno. Ele os tirava e os entregava à esposa, Coretta, ou a Andrew Young apenas pelo tempo das entrevistas televisivas cada vez mais frequentes. Mas ninguém tinha lido o texto. Já era um lugar-comum que Martin Luther King era um grande orador. Mas I have a dream – dito de ímpeto, sem ler o texto, quando uma voz lhe gritou: "Martin, conte-nos sobre o teu sonho!" – surpreendeu o mundo, pela grandiosa simplicidade daquele sonho totalmente fundamentado na fraternidade dos brancos e dos negros, uma verdadeira declaração mundial de conversão da humanidade e de fim do racismo. E pelo estupor da grandiosa improvisação.
Martin Luther King falava olhando para o céu. Parece incrível agora, enquanto falamos a respeito como que em um livro de história, que naquele palco do Lincoln Memorial de Washington dois rapazes brancos, Bob Dylan e Joan Baez, tenham logo conquistado a multidão, na imensa praça e em toda a América que acompanhava "ao vivo" (os rádios, as TVs de todo o país).
E três rapazes brancos (Peter, Paul e Mary) fizeram-lhe a escolta, cantando e ficando sempre às suas costas, como guardas com o violão. Dylan começou, sem anúncios e apresentadores, When the ship comes in, e "a sua voz nunca parecera tão jovem, e o seu violão, e o violão e a voz de Baez se uniram como no repicar de um dia de festa", escreveu James Baldwin.
Joan Baez cantou várias vezes We shall overcome em versões que, segundo o Village Voice daqueles dias, "permanecerão únicas". Peter, Paul e Mary, executaram as suas versões, jovens e corajosas, dos cantos do trabalho nos anos da depressão, trazendo um tom fabuloso de festa das crianças. De fato, a multidão gritava como se grita em uma festa, não em um grande evento político.
Quando King se aproximou do microfone, o silêncio era como um enorme recipiente de expectativa. Partiu como um canto o ritmo da voz do líder pregador, e começou a grande viagem rumo ao sonho, que tem a grande força de não acabar, mesmo depois dos tiros de um fuzil de precisão que o matou (4 de abril de 1968), no pátio do Lorraine Motel, em Memphis. Mesmo agora.
Foi aquele discurso de 1963 que lhe mereceu o Nobel que Martin Luther King ecebeu em 1964. Foi aquele discurso que mudou radicalmente os Estados Unidos, leis e sentenças. No entanto, essa grandeza, conhecida e celebrada em todos os Estados Unidos e, agora, no mundo, não mudou muito, não por enquanto, o comportamento dos governadores, dos juízes, da polícia dos Estados do Sul ainda marcados pelo racismo.
Martin Luther King, o líder de I have a dream (a quem John Kennedy tinha escrito "obrigado" com uma carta comovida), o primeiro líder negro do mundo a receber o Prêmio Nobel da Paz, teve que se entregar à prisão de Birmingham em fevereiro de 1965.
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Aqueles dias com Martin Luther King - Instituto Humanitas Unisinos - IHU