04 Abril 2018
“As relações de um papa emérito com a mídia são importantes demais para serem deixadas ao acaso ou à improvisação. Não deveria haver espaço para a menor dúvida sobre quem realmente está no comando.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por Commonweal, 03-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Problemas de comunicação geralmente não são apenas problemas de comunicação: isso é tão verdadeiro no Vaticano quanto em qualquer outro lugar. O fiasco ao redor da carta de Bento XVI, que recusou o convite para escrever a introdução de uma série de volumes sobre a teologia do Papa Francisco, foi mais do que uma confusão de relações públicas. Ele revela questões mais profundas na transição em curso do pontificado de Bento XVI ao pontificado de Francisco.
Em sua carta já famosa sobre a teologia de Francisco, Bento XVI rejeitou o “tolo preconceito pelo qual o Papa Francisco seria somente um homem prático desprovido de uma particular formação teológica ou filosófica”. Bento também insistiu em uma “unidade interior” entre o seu papado e o de seu sucessor. No entanto, é claro, cinco anos após o pontificado de Francisco, essa teologia católica – pelo menos na Europa e na América do Norte – ainda não recebeu e não explorou completamente a teologia de Jorge Mario Bergoglio.
Houve exceções notáveis, e novos esforços estão a caminho. Mas o fato de que tivemos que esperar até o quinto ano deste pontificado para que um filósofo italiano, Massimo Borghesi, escrevesse a primeira biografia intelectual de Jorge Mario Bergoglio é significativo. Isso ressalta a diferença entre o modo como esse papa tem sido entendido e o modo como os dois papas anteriores foram entendidos. Desde o início de seus pontificados, João Paulo II e Bento XVI foram tratados como teólogos sérios.
Francisco, ao contrário, tem sido tratado – até mesmo por alguns de seus admiradores – como se estivesse menos interessado pela teologia e como se fosse menos intelectual em geral. Em parte, isso é um reflexo do fato de que a teologia católica europeia e norte-americana ainda não leva a teologia latino-americana tão a sério quanto deveria. Também é parcialmente atribuível à incapacidade de Francisco de forjar relações produtivas com teólogos acadêmicos.
Isso não tem a ver apenas com o próprio Francisco; também será uma questão para o conclave que escolherá seu sucessor. Nas décadas anteriores a Francisco, o catolicismo se dirigiu ao mundo secular em termos intelectuais, a fim de combater o que Roma considerava como uma crise cultural. O papado tem sido um poderoso modelador dessa intelectualização do catolicismo por causa da eleição de papas cuja mensagem era mais teológico-intelectual do que pastoral.
No passado, os papas tendiam a confiar a parte intelectual da missão da Igreja a outros – o Santo Ofício, as ordens religiosas, as universidades e academias etc. A evolução do papado em direção a um foco mais intelectual faz parte de um processo mais amplo: o enfraquecimento do papel dos gatekeepers culturais na relação entre a Igreja em geral e o papa. O sucesso comercial de livros escritos pelos três últimos papas é um sinal dessa mudança; os católicos querem ouvir diretamente o homem no topo, e não apenas em suas declarações oficiais. Uma das funções dos teólogos era mediar entre o Vaticano e os leigos, mas, na era do papa-como-teólogo-em-chefe, essa função se tornou redundante.
Agora, a compreensão do papel do papa em relação à teologia católica está mudando novamente com Francisco, e isso deixou muitos sentimentos incertos. A transição do último pontificado para este foi complicada menos por causa da relação pessoal entre Bento e Francisco do que pelas discordâncias sobre a descrição adequada do trabalho do papado moderno.
Isso nos leva a um segundo problema realçado pela crise no escritório das comunicações do Vaticano: o conflito entre a expectativa de que o papa deveria administrar e reformar a Cúria – uma tarefa exigente por si só – e a expectativa de que o papa continuaria desempenhando um papel mais carismático, um papel que começou a tomar forma com as declarações do Concílio Vaticano I sobre o primado papal e a infalibilidade papal.
Nas últimas décadas, os meios de comunicação de massa amplificaram esse aspecto do papado, e foi precisamente isso que tornou tão difícil para um papa se afastar e dar espaço para outro. A estreita associação do ofício papal com a personalidade de quem quer que seja o papa torna mais difícil para muitas pessoas aceitar, ou até mesmo conceber, uma renúncia.
Até agora, pelo menos, houve uma falha em entender as implicações eclesiológicas do caráter carismático do papado moderno – e, em particular, a forma como as mídias de massa e as mídias sociais remodelaram o papado nas últimas décadas.
O terceiro problema, e o mais delicado, diz respeito à instituição do “papa emérito” criado pela decisão de Bento XVI de renunciar em fevereiro de 2013. Cinco anos depois, a transição de Bento para Francisco ainda está incompleta. Quando um papa morre, a transição é rápida e simples: o próximo papa assume seu novo poder institucional e seu novo papel carismático ao mesmo tempo.
Mas, quando um papa se aposenta e permanece no Vaticano, como Bento fez, ele transfere seus poderes institucionais imediatamente, mas seu papel carismático, apenas gradualmente. Enquanto permanecer vivo, ele parecerá desfrutar de uma superioridade em idade não oficial. Além disso, os anos de Bento como prefeito do ex-Santo Ofício continuam jogando uma longa sombra. As penalidades que ele e a Congregação para a Doutrina da Fé, presidida por ele, impuseram a certos teólogos ao longo de quase um quarto de século não foram levantadas. As investigações desse período foram suspensas, mas não encerradas. E isso não é um problema apenas para os teólogos em questão.
A presença contínua de Bento como papa emérito deixou a Igreja com contas pendentes, que uma transição normal entre os pontificados tenderia a resolver. Assim, em sua recente carta sobre Francisco, Bento XVI expressou surpresa pelo fato de um dos teólogos convidados a escrever um volume sobre a teologia de Francisco ser Peter Hünermann, professor emérito de teologia sistemática na Universidade de Tübingen, a quem Bento XVI caracterizou de maneira bastante pessoal como alguém “que, durante o meu pontificado, se destacou por ter encabeçado iniciativas antipapais” (revelação total: Hünermann é um dos meus mentores).
Em toda a confusão em torno da carta de Bento, ainda não está claro qual o papel que sua própria comitiva desempenhou. Mas a tentativa de Dario Viganò, o agora ex-prefeito da Secretaria para a Comunicação vaticana, de obter o apoio de Bento para esse projeto se revelou um fracasso em apreciar a dinâmica em jogo entre o papa emérito e o papa. O fato de Francisco e Bento se darem muito bem pessoalmente, no fim, é menos importante do que o fato de que, para muitos católicos, Bento XVI, não Francisco, continua sendo a verdadeira garantia da ortodoxia. Eles não podem aceitar que o ofício e o ministério de Bento XVI como bispo de Roma cessaram completamente em 28 de fevereiro de 2013, às 8 horas da noite de Roma.
Se todos aceitassem plenamente esse fato, ninguém sentiria a necessidade de extrair do último papa uma declaração pública confirmando a legitimidade teológica de seu sucessor. A tentativa de defender o Papa Francisco por meio de endossos de Bento XVI cria um precedente perigoso e desnecessário, mesmo que não seja imediatamente contraproducente, como aconteceu nesse caso.
A relação entre um pontificado e o seguinte fascina os estudiosos do catolicismo, porque é sempre complicada, mesmo quando não há nenhuma dúvida de quando um terminou e o outro começou. Mas, se os papas vão começar a renunciar, a Igreja precisa definir claramente o que sua aposentadoria significa e como ela se relaciona com o ministério de seus sucessores. Enquanto não havia um “papa emérito”, era impossível saber o que um papa emérito significaria para o papa atual. Agora, estamos descobrindo.
Acontece que a comitiva de um papa emérito, sua residência e suas relações com a mídia são importantes demais para serem deixadas ao acaso ou à improvisação. Não deveria haver espaço para a menor dúvida sobre quem realmente está no comando.
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Perdidos na transição: Francisco, Bento XVI e o conclave que não acabou. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU