13 Março 2018
O protecionismo de medidas como a tarifa imposta pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre importações de aço tem muitas semelhanças com o cenário de guerras comerciais que levaram, cem anos atrás, a conflitos militares como a Primeira Guerra Mundial.
A avaliação é do historiador americano Marc-William Palen, para quem essa perspectiva do passado é fundamental para entender o que pode acontecer com o mundo a partir das políticas de Trump e de outras manifestações de protecionismo no mundo, como o Brexit, a saída do Reino Unido na União Europeia.
A entrevista é de Daniel Buarque, publicada por BBC Brasil, 13-03-2018.
Enquanto os impactos econômicos das disputas entre os EUA, a China, o Canadá e até o Brasil têm dominado as atenções no caso das tarifas americanas, Palen defende que não se deve deixar de lado uma análise sobre os efeitos geopolíticos desse tipo de protecionismo.
"Guerras comerciais e o protecionismo transformam amigos e vizinhos em inimigos", afirma ele em entrevista à BBC Brasil.
Professor na Universidade de Exeter, na Inglaterra, o historiador passou as últimas semanas publicando artigos para criticar as tarifas anunciadas por Trump e refutar a sua declaração de que "guerras comerciais são fáceis de vencer". "Certamente podemos ver as semelhanças com um século atrás na criação de tensões entre Estados. Tensões que não existiam antes dessas políticas protecionistas", diz.
Segundo ele, um grande erro é ignorar o quanto as economias são conectadas no mundo atual. "Não há vencedores em guerras comerciais."
Codiretor do Global Economics and History Forum (Fórum de Economia e História Global, em tradução literal), em Londres, Palen é especialista na intersecção entre o imperialismo do Reino Unido e dos Estados Unidos do século 19 à globalização dos dias atuais.
Ele também autor do livro "The 'Conspiracy' of Free Trade: The Anglo-American Struggle over Empire and Economic Globalisation, 1846-1896" ("A conspiração do livre mercado: a luta anglo-americana por império e globalização econômica, 1846-1896"), lançado em 2016 pela Cambridge University Press.
Segundo o historiador, o retorno ao protecionismo, assim como a ascensão de políticas contra imigração, são "um retorno ao status quo que havia antes da Segunda Guerra Mundial", uma reação populista à crise financeira global, e se manifesta de forma semelhante em vários países do mundo, e que pode levar a uma desintegração sem precedentes da ordem econômica global.
O senhor argumenta que, cem anos atrás, o protecionismo levou a conflitos internacionais que geraram a Primeira Guerra Mundial. A situação atual é comparável ao que houve então?
É muito difícil prever o futuro, mas há muitas semelhanças ostensivas entre os dois períodos. Um dos aspectos mais marcantes é a dimensão geopolítica do protecionismo, que acaba sendo muito deixada de lado. Tendemos a enfocar como as medidas vão afetar consumidores, que também é importante, mas não é o único ponto em questão.
Quem pensaria, dois anos atrás, que haveria animosidade entre os EUA e o Canadá, que por décadas era o maior aliado e parceiro comercial dos americanos. É impressionante que agora haja este clima de disputas sobre tarifas sobre aço, tentativas de acabar com o Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio, na sigla em inglês), o que está gerando grandes tensões entre vizinhos.
Certamente podemos ver as semelhanças com um século atrás nessa criação de tensões entre Estados. Tensões que não existiam antes dessas políticas protecionistas.
Que tipo de problemas geopolíticos o protecionismo pode gerar?
O foco principal da análise atualmente está sendo a forma como as tarifas vão afetar a economia doméstica, se vai gerar empregos, se vai afetar a Bolsa, como vai mudar os preços de carros… Tudo isso é importante, mas também é importante lembrar que essas tarifas, essas guerras fiscais, vão muito além da esfera doméstica.
Isso é algo que minha pesquisa vê claramente na virada do século 19 para o século 20, quando a ordem econômica global era muito protecionista. Meu estudo mostra que essas guerras comerciais e o protecionismo transformavam amigos e vizinhos em inimigos. Essas guerras econômicas têm a tendência de formar as bases geopolíticas para conflitos militares.
Ainda é muito cedo para saber se isso vai ser ressuscitado no futuro próximo, mas, ao olhar para as relações entre os EUA e o Canadá ao longo do último ano, vemos claramente a mudança de tom da relação amigável à animosidade.
Que tipo de escalada de confrontos o protecionismo gerou no passado?
Um exemplo que analisei foi exatamente a relação entre Canadá e os EUA em meados do século 19. EUA e Canadá tinham uma relação de reciprocidade comercial. Depois da Guerra Civil, o Partido Republicano colocou uma série de barreiras comerciais nesta relação, o que gerou tensão.
O que tento fazer com minha pesquisa é mostrar que há esta tendência de ver o protecionismo como sendo uma anomalia dentro da história de defesa do livre mercado do Partido Republicano dos EUA. Mas isso realmente não existia até Ronald Reagan nos anos 1980. Na maioria da história do Partido Republicano, ele foi amplamente o partido do protecionismo.
O Canadá frequentemente era o alvo de leis protecionistas, o que levou à escalada de disputas entre os dois países, o que quase gerou confrontos militares. A escalada chegou a um ponto em que, nos anos 1920, o Canadá tinha planos de invasão dos EUA e vice-versa. Felizmente esse conflito militar nunca chegou a acontecer, mas as chances de conflito foram muito altas.
O que criou a atual onda de políticas protecionistas no mundo? Pode ser ainda reflexo da crise financeira internacional?
É difícil ver uma resposta clara para esta pergunta. O protecionismo não apareceu de repente, e fez parte consistentemente da campanha que levou Trump à Presidência, com o argumento de colocar "os Estados Unidos em primeiro lugar" ("America First").
Trump sempre deixou claro que acha que a globalização e o livre mercado são palavrões - chegando a chamar "livre mercado" de "mercado estúpido". O argumento dele é que é importante proteger e gerar empregos em alguns setores nos EUA. No caso atual é a indústria do aço e do alumínio. Ele está levando adiante suas promessas de campanha. Só acho que as repercussões dessas decisões não foram muito bem pensadas.
O Brasil acabou pressionado por essas decisões, já que é um dos principais mercados de onde os EUA importam aço.
O aspecto brasileiro dessa questão é muito problemático. O Brasil é um parceiro importante, é o segunda maior fonte de importações de aço dos EUA. E, ironicamente, o Brasil também é um grande importador de carvão americano, que é usado na indústria do aço, que é vendido aos EUA. Então o protecionismo americano, que afeta o Brasil, pode acabar tendo efeitos sobre a produção de carvão, que também é uma área de interesse e proteção de Trump.
Canadá e Brasil são os dois países mais afetados pela tarifa sobre o aço, mas a retórica de Trump em disputas comerciais sempre esteve voltada contra a China. O que houve, neste caso? Ele simplesmente errou o alvo, ou realmente queria atingir parceiros como Canadá e Brasil?
É difícil entender a justificativa dele para isso. O argumento de defesa nacional não faz sentido quando ele fala sobre a China. A forma como o governo Trump está tentando explicar a medida não está muito clara. É difícil saber o quanto ele realmente pensava na China quando decidiu tomar essa medida, mas de fato os países parceiros são os maiores afetados, não a China.
Em uma situação assim, considerando os EUA como a economia mais forte em uma disputa comercial, o que um país mais pobre como o Brasil pode fazer para reagir a tarifas em uma guerra comercial deste tipo?
É difícil saber. O governo Trump pode oferecer vantagens a países parceiros em troca de outras vantagens na relação. O Brasil sempre pode apelar à OMC (Organização Mundial do Comércio), o que pode ter algum efeito. A ironia é que os EUA foram os grandes responsáveis pelo que se tornaria a OMC, e agora vão passar a ser pressionados por ela. É difícil saber como Trump vai tratar a relação com o Brasil.
Trump disse que guerras comerciais são fáceis de serem vencidas. O que acha disso?
A resposta imediata que qualquer historiador e economista daria sobre isso seria que não há vencedores em guerras comerciais, apesar do que Trump falou. É provável que haja alguns setores que vão sair ganhando no curto prazo, como os produtores de aço nos EUA no caso atual, que terão mais lucro. Mas a história sugere que vai haver muito mais perdedores, especialmente entre os consumidores, no longo prazo.
Todos os países envolvidos em guerras comerciais, e mesmo os que estão fora dessas disputas, já que vivemos em uma economia integrada globalmente, vão sair perdendo. É difícil achar que isso não vai afetar a economia global como um todo. E as populações mais pobres vão acabar sendo as mais afetadas, com aumento de preços de alimentos.
O que Trump e os EUA têm a ganhar com este tipo de política protecionista?
Isso tem um apelo emocional com seus eleitores. Isso ficou claro durante sua campanha presidencial, e é um apelo emocional e populista a eleitores que se acham abandonados pela economia global. Os EUA já foram a grande nação industrial e defensora do livre mercado internacional, mas as coisas mudaram.
Não me surpreenderia se ele achasse que está fazendo isso para defender seus eleitores. O problema é que o setor produtor de aço, especificamente, é uma parcela muito pequena dos EUA, e ajudar este grupo temporariamente vai ter efeitos muito mais amplos em toda a população dos EUA.
Falamos bastante dos EUA, mas o Brexit e a eleição francesa também foram pontos de debate sobre protecionismo, com uma escalada de políticas contra a globalização. Esses fenômenos estão conectados de alguma forma?
Sim. Não se trata de um fenômeno apenas dos EUA. Precisamos ver essas questões sob uma perspectiva histórica mais ampla, e não achar que é uma anomalia populista contra o livre mercado. O sistema econômico global nos últimos 200 anos foi quase todo dominado pelo protecionismo. O movimento pelo livre mercado que se desenvolveu depois da Segunda Guerra Mundial é a exceção à regra.
Neste sentido, o retorno mundial a políticas econômicas nacionalistas e políticas anti-imigração são um retorno ao status quo que havia antes da Segunda Guerra Mundial. Vemos isso claramente no Brexit, com o Reino Unido alegando que vai defender o retorno do livre mercado internacionalmente enquanto rompe com a União Europeia. Isso enquanto está reagindo para limitar a imigração.
É uma reação populista à crise financeira global, e se manifesta de forma semelhante em vários países do mundo.
Você escreveu que estamos assistindo à desintegração da ordem econômica global. O que vem depois disso?
O problema é que não há um precedente histórico para o que está acontecendo agora.
Na forma como a ordem econômica global funcionou dos anos 1840 aos anos 1930, o Reino Unido era o país industrial mais poderoso e maior defensor do livre mercado. Enquanto isso, o resto do mundo resistia e usava políticas protecionistas. Foi somente nos anos 1930, quando todo o mundo se voltou ao nacionalismo, que o Reino Unido abandonou a defesa do livre mercado. Isso está fortemente ligado à crise internacional e à recessão. Depois disso, os EUA assumiram a hegemonia da defesa do livre mercado internacional desde a Segunda Guerra.
O que é interessante é que, no primeiro caso, o Reino Unido foi o último país a aceitar o protecionismo. Enquanto isso, agora são EUA e Reino Unido, os dois líderes e fundadores dessa ordem econômica internacional, os primeiros a se voltar contra esta ordem e abandonar o livre mercado. Isso é impressionante e sem precedentes.
Por isso não podemos saber com certeza o que pode acontecer. E é difícil achar que vai ser algo bom para o mundo.
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Protecionismo atual tem semelhanças com disputas que levaram a guerra mundial, diz historiador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU