08 Março 2018
Possuir carros autodirigidos. Viver em condomínios. Entrar com o automóvel no metrô. Tudo cheira a individualismo e desigualdade na visão “futurista” do empreendedor da moda.
A reportagem é de Paris Marx, publicada por Outras Palavras, 06-03-2018. A tradução é de Gabriel Filippo.
No Vale do Silício não faltam grandes ideias para o transporte. Em sua visão de futuro, nós usaremos carros autodirigidos autônomos para percorrer pequenas distâncias — talvez até sejamos tragados por uma rede de túneis subterrâneos que supostamente irão nos levar aos nossos destinos mais rapidamente. Para o transporte interurbano, entraremos em veículos que irão nos fazer voar por túneis de vácuo até o nosso destino a 1.220 km/h.
Mas estas fantasias dos ricos executivos de tecnologia são isso mesmo — apenas fantasias. Nenhuma destas tecnologias irá se concretizar da maneira prometida — isso se elas se tornarem realidade algum dia. A verdade é que as tecnologias que nós precisamos para transformar as nossas redes de transportes já existem, mas os americanos estão estagnados em um sistema ultrapassado, dependente do automóvel, há muito tempo, enquanto a tecnologia do presente—nem vamos falar de futuro—lhes tem sido negada por políticos comprados pelo lobby dos combustíveis fósseis e obcecados por uma ideologia danosa de “livre mercado”.
De todos eles, Elon Musk é o pior.
Para boa parte da imprensa especializada, o que Musk diz é sagrado. Junto com as comparações (positivas) com Steve Jobs, vem a ideia de que por ter tido sucesso com algumas empresas, ele é infalível; se alega saber a solução para a crise nos transportes que os EUA enfrentam, ele deve ter razão. Afinal, é um empreendedor rico e se tem algo que as duas últimas décadas do discurso político dos EUA nos ensinaram é que se deve sempre confiar no empreendedor.
Mas a realidade é que as ideias de Musk acerca de transportes são, no melhor caso, “incompletas” ou, no pior caso, feitas para atrasar a construção da infraestrutura de transportes que poderia trazer os EUA para o século 21.
Isso significa que tudo que Musk toca é problemático? Não necessariamente. Definitivamente, ele merece o crédito por ter popularizado os carros elétricos e ajudado a orientar o setor neste sentido. Mas em relação aos transportes, é só isso. Sua visão do futuro não é emancipatória e nem mesmo especialmente inovadora; na verdade, é bastante conservadora.
A imaginação de Musk tem dificuldades para se livrar da automobilidade; toda e qualquer solução sua é centrada em automóveis—Teslas. A publicidade da SolarCity [subsidiária da Tesla, especializada em serviços de energia solar] dá ênfase ao estilo de vida suburbano e dependente do carro; a Boring Company [companhia de infraestrutura e de construção de túneis fundada por Musk no fim de 2016] é uma tentativa ineficiente e impraticável de solucionar o trânsito sem reduzir o número de carros; e até mesmo a proposta da Hyperloop deixou a porta aberta para encher túneis de vácuo com carros.
Isto não deveria ser surpresa, dados seus recentes comentários sobre transporte público, nos quais Musk diz que este é “um saco”, onde “há um monte de estranhos e um deles pode ser um assassino”. Ele valoriza o transporte individual porque não quer estar perto de outras pessoas—parece até temê-las, pelos seus comentários—, mas enfiar todo mundo em seus próprios carros simplesmente não dá certo em um mundo cada vez mais denso e urbanizado.
A verdade é que em vez de celebrar Musk e seus colegas gênios tecnológicos, precisamos analisar criticamente suas propostas para ver quem realmente se beneficiaria de suas visões e se estas levam em conta considerações fundamentais que são essenciais para torná-las viáveis no mundo real. Não podemos nos deixar enganar por executivos de tecnologia que colocam os seus desejos de transporte e avidez por lucro acima das necessidades da maioria.
Veículos autônomos [pods] são o centro da visão de transporte do Vale do Silício e a mídia, em geral, aceitou as declarações das grandes empresas de que estavam muito perto, mesmo quando pessoas como o próprio Musk prometeram que faltavam apenas dois anos e, dois anos depois, mais dois anos novamente.
A verdade é que não faltavam apenas dois anos; ao menos não para os pods autônomos que não têm volante e podem rodar em qualquer terreno ou condição meteorológica. Muitas empresas automotivas e de tecnologia tinham cronogramas parecidos com o de Musk e quase todos foram postergados para 2021 ou depois. E embora houvesse muitos avanços durante algum tempo, quando os testes eram realizados em vias suburbanas, largas e vazias, com tempo firme e ensolarado, dados recentes da Waymo — uma das líderes do setor — mostram que tais avanços estagnaram.
Veremos mais serviços de táxi autônomo por aí em um ou dois anos, mas é importante reconhecer que estes veículos terão capacidades de nível 4, e não de nível 5. Isso significa que sua operação será limitada a determinadas áreas, tal qual o serviço da Waymo em um subúrbio de Phoenix, Arizona. Terão grandes dificuldades para operar em centros urbanos densos, com ruas lotadas e em áreas com muita chuva e neve, que poderiam obstruir seus sensores. Empresas que, de qualquer jeito, colocaram-nos em situações assim, como a Uber e a Tesla, podem ter problemas, já que os relatos de acidentes e violações das regras de trânsito continuam acontecendo.
Mas se colocarmos todos em seus próprios carros, aonde irão essas pessoas? Musk quer construir um “metrô para carros” para aqueles que desejam driblar o trânsito. Seu discurso sugere que seria aberto a todos, mas a realidade do espaço limitado e dos altos custos de construção limitaria o uso desses túneis aos ricos—ou, possivelmente, um grupo ainda menor, já que Musk planejou as primeiras viagens nos túneis convenientemente de seu trabalho para casa.
Musk não vai admitir que seus túneis serão exclusivos. Ele promove a Boring Company como um meio de redução maciça de custos de perfuração de túneis—o que pode até ser benéfico para o transporte público! —mas, novamente, sua declaração mostra sua ignorância. Musk diz que sua abordagem reduzirá finalmente os custos de perfuração, ainda que projetos de metrô em Madrid, Seul e Estocolmo já tenham atingido custos próximos ao que ele diz que é o único capaz de conseguir.
Uma investigação do New York Times sobre o alto custo dos projetos de metrô em Nova York descobriu que enquanto o túnel da Segunda Avenida custou US$ 1,5 bilhão por quilômetro uma expansão parecida no metrô de Paris está em vias de custar apenas US$ 260 milhões por quilômetro, ou seis vezes menos. Há muitos fatores que influenciam os altos custos dos projetos de transporte nos EUA que Musk não aborda, seja por ignorância ou por um engano proposital. Este pode muito bem ser o caso da Hyperloop.
Musk publicou a proposta da Hyperloop em 2013, após o projeto do trem de alta velocidade da Califórnia ter sido aprovado — porém antes de sua construção começar. Parecia o futuro: um tubo de vácuo que levaria as pessoas de San Francisco a Los Angeles em meia hora e custaria apenas $6 bi—muito menos que o trem de alta velocidade. O que há de errado com esse projeto? Muita coisa.
Não só a velocidade proposta, que é incrivelmente desconfortável para os passageiros, por conta da força exercida sobre eles, mas também a capacidade de transporte do Hyperloop, bem menor que a do trem de alta velocidade: 3.360 passageiros/direção/hora, em comparação com 12.000. Descobriu-se também que os custos de construção são completamente irreais, enquanto Musk mentiu completamente sobre o consumo de energia dos trens de alta velocidade. As empresas que estão realmente tentando construir o Hyperloop descobriram que o custo é muito maior do que a proposta original de Musk: uma linha de 172 km custaria o dobro do que Musk projetou para toda a linha (616 km) entre San Francisco e Los Angeles.
Assim como o caso dos túneis, o trem de alta velocidade da Califórnia é caro em comparação aos padrões internacionais. Na China, tais projetos custam entre US$ 17-21 milhões/km, em comparação com US$ 29-39 milhões/km na Europa; enquanto isso, este projeto custa próximo de US$56 milhões/km na Califórnia. O Hyperloop da Califórnia ficaria entre US$ 52-75 milhões/km. O alto custo do trem de alta velocidade não é um problema de tecnologia, é um problema de como os EUA abordam projetos de infraestrutura.
Promover ideias fantasiosas para atrasar o progresso não é nenhuma novidade no Vale do Silício, mesmo que não a mídia não veja as coisas assim. Lembre-se que muitas das “inovações” tecnológicas dependeram de fundos públicos de pesquisa, ao passo que as maiores empresas de tecnologia do mundo são líderes em evasão fiscal. Sempre que há a votação de uma iniciativa de transporte público, os serviços de carro particular e veículos autônomos são usados para se argumentar contra o aumento do financiamento para ônibus e metrôs, rotulando estas como tecnologias do passado — mesmo que nada possa estar mais longe da verdade.
Em nosso mundo cada vez mais urbanizado, o transporte público é essencial para locomover um grande número de pessoas de maneira rápida e eficiente. O transporte individualizado, preferência dos especialistas em tecnologia, não vai fornecer o mesmo nível de eficiência porque não há espaço para que todos tenham seu próprio carro ou pod, especialmente quando reduzimos o espaço de pistas para alargar as calçadas e incluir ciclofaixas.
Musk e seus colegas executivos promovem os veículos autônomos como “o futuro” porque é o futuro que eles desejam. Eles não querem estar em um metrô ou trem próximos às pessoas normais—como Musk disse, um deles pode ser um assassino! É perturbador o quanto desejam isolar-se das pessoas comuns, mas a realidade da mobilidade urbana é que apenas uma pequena parte da população pode contar com o transporte individual até que ele simplesmente pare de funcionar. Esta é parte da razão pela qual os engarrafamentos são tão pesados em nossas cidades; simplesmente não há espaço para todos os carros, e a solução não é deixar a inteligência artificial assumir o volante, mas locomover as pessoas de maneiras mais eficientes.
Acima de seus desejos pessoais, Musk tem um interesse financeiro em manter a prevalência do carro no século 21—ele tem uma empresa de carros! Transporte público e trens de alta velocidade opõem-se frontalmente a seus interesses, razão pela qual ele semeia ideias que nunca se concretizarão, mas que podem ser utilizadas por determinados grupos para fazer campanha contra o financiamento de transporte eficiente.
Enquanto a infraestrutura dos EUA agoniza e o foco é consertar o que já existe em vez de construir pensando no futuro, China e Europa construíram grandes redes de trens de alta velocidade e transporte público [veja quadro abaixo]. Seus cidadãos beneficiam-se de tecnologias que são projetadas para locomover grandes quantidades de pessoas de maneira eficiente, enquanto os norte-americanos continuam enfiados em seus carros com tempos de deslocamento cada vez maiores.
Fonte: The Transport Politic
Os norte-americanos deveriam parar de aceitar as soluções mágicas do Vale do Silício e começar a exigir melhores opções de transporte que os libertem da dependência em relação ao carro. A maré parece estar virando, pois cidades do país inteiro aprovaram iniciativas para expandir o transporte público e a Califórnia segue com sua linha de trem de alta velocidade frente a enormes pressões de conservadores de visão estreita.
Não é verdade que o investimento público não gera prosperidade, mas será necessário ter vontade política, maior escrutínio dos empreendedores de tecnologia e o fim da agenda de austeridade para fazer com que os governos voltem a investir no futuro novamente.
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Tesla, Elon Musk e a crença miserável na tecnologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU