Por: Ricardo Machado | Edição: Patricia Fachin | Tradução: Vanise Dresch | 08 Novembro 2017
O crescimento da extrema-direita na Europa tem sua origem na crise financeira que atingiu a região desde 2008. Esse é o diagnóstico do sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato, que vive em Paris, onde realiza pesquisas sobre as mudanças no mundo do trabalho, capitalismo e movimentos pós-socialistas.
Segundo ele, foi a situação de instabilidade gerada pela crise financeira europeia que “aumentou as divisões sociais”, tornando os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. “Ao mesmo tempo, para recuperar o dinheiro que os bancos perderam com a crise do subprime, quis-se reduzir os salários, o bem-estar social. Nessas condições, há um crescimento dos protestos de extrema-direita, a qual pensa que o problema se deve aos fluxos migratórios. Então, na verdade, isso está ligado ao aumento das divisões que resultaram daquilo que aconteceu em 2008”, explica na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, participando do IX Colóquio Internacional IHU – A Biopolítica como teorema da bioética.
Lazzarato também comenta as tensões e divisões entre os países europeus que apostam na retomada do protagonismo nacionalista e aqueles que desejam a permanência da globalização. “Na realidade, o capitalismo funciona, por um lado, com a desterritorialização, a globalização, mas, por outro, com uma verdadeira reterritorialização no Estado-Nação. Então, as duas coisas andam juntas: globalização e nacionalismo andam de mãos dadas. E essa relação é ainda mais estreita porque o capital está em crise”, adverte.
Na avaliação dele, uma das principais consequências negativas da crise financeira que atingiu a Europa em 2008 é que ela “provocou uma queda da credibilidade no sistema político. A credibilidade desapareceu praticamente por toda parte. Os partidos políticos clássicos que garantiam a governabilidade – direita e esquerda juntas – entraram numa crise muito profunda justamente por não terem respostas para a crise neoliberal. Ou melhor, não é que não tinham respostas, pois foram eles que a gerenciaram. Então, os partidos políticos tradicionais entraram em colapso por toda parte, notadamente na França”. Embora a Europa tenha proposto muitas teorias e projetos políticos até a Revolução Russa, lamenta, “não há nenhuma certeza de que a solução venha da Europa. Em todo caso, não vejo a multidão agir. É mais uma defesa reacionária que cresce”.
Lazzarato durante conferência no IHU
Foto: Ricardo Machado | IHU
Maurizio Lazzarato é sociólogo independente e filósofo italiano que vive em Paris, onde realiza pesquisas sobre trabalho imaterial, ontologia do trabalho, capitalismo cognitivo e movimentos pós-socialistas. É cofundador da revista Multitudes, com o filósofo Antonio Negri. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem.
Lazzarato participa de ações e reflexões sobre os “intermitentes do espetáculo” no âmbito da CIP-IdF (Coordination dês Intermittents et Précaires d’Île-de-France), onde coordena uma importante “pesquisa-ação” sobre o estatuto dos trabalhadores e profissionais do espetáculo e do mundo das artes, além de outros trabalhadores precários.
Maurizio Lazzarato é autor de diversos livros, dos quais destacamos Experimental Politics: Work, Welfare, and Creativity in the Neoliberal Age (Massachusetts: MIT Press, 2017), Signos, Máquinas, Subjetividades (São Paulo: n-1 edições/Edições Sesc São Paulo, 2014) e La fábrica del hombre endeudado: Ensayo sobre la condición neoliberal (Buenos Aires-Madrid: Amorrortu Editores/2013).
Além do livro já citado em português, Lazzarato lançou no Brasil Trabalho Imaterial - Formas de Vida e Produção de Subjetividade (Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2004 - Escrito com Antonio Negri), Governo das Desigualdades: Crítica da Insegurança Neoliberal (São Carlos: Editora Edufscar, 2012) e As Revoluções do Capitalismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como compreender o crescimento da onda conservadora na Europa?
Maurizio Lazzarato - Como eu disse na conferência desta manhã [17-10-2017], isso está ligado à conjuntura do capitalismo. Podemos dizer que os últimos acontecimentos que levaram a esse crescimento da extrema-direita reacionária foram a crise financeira. Esta aumentou as divisões sociais: os ricos se tornaram mais ricos e os pobres, mais pobres. Isso continua. Ao mesmo tempo, para recuperar o dinheiro que os bancos perderam com a crise do subprime, quis-se reduzir os salários, o bem-estar social. Nessas condições, há um crescimento dos protestos de extrema-direita, a qual pensa que o problema se deve aos fluxos migratórios. Então, na verdade, isso está ligado ao aumento das divisões que resultaram daquilo que aconteceu em 2008.
O crescimento da [extrema] direita que percebemos por toda parte – com o Brexit, Trump, o que tem acontecido na Europa – e todas as divisões que continuam levam a uma situação em que predominam as discriminações. Uma das mais importantes são as discriminações raciais, sexuais, mais do que as divisões econômicas. As discriminações raciais estão cada vez maiores, na medida em que se identificou um inimigo, o refugiado político. Forjou-se então um inimigo que é o Islã; pelo menos na Europa, esse sentimento é muito forte. Essa construção política de um inimigo já tem muito tempo; esse inimigo interno não é mais o comunismo, mas o Islã e a imigração. Essa invenção é um dispositivo do qual o capitalismo precisa, sobretudo, nesta fase em que a crise econômica leva à redução dos salários, do bem-estar social, etc. Ele precisa de uma democracia muito mais autoritária, até mesmo de uma ausência de democracia.
IHU On-Line - A União Europeia pode se enfraquecer na atual conjuntura, onde há um crescimento do nacionalismo em vários pontos da Europa, levando em conta, por exemplo, o Brexit e a atual questão da Catalunha?
Maurizio Lazzarato - Durante séculos, a Europa foi o centro do mundo, da economia-mundo. Foi a Europa que colonizou o mundo inteiro. Esse processo de exploração do mundo praticamente terminou. A Europa perdeu o seu papel central com as duas Guerras Mundiais, deixando então de ser a potência econômica de antes, baseada na colonização. Hoje vemos outro tipo de racismo na Europa. Antes era um racismo conquistador, agora é um racismo defensivo que cresce por toda parte. Existe um medo do que vai acontecer, ao passo que antes o racismo não se baseava no medo, ao contrário, a Europa provocava medo. Então, ela está se fechando, mas esse crescimento dos nacionalismos não é novo, já aconteceu depois da crise de 1929, depois da Primeira Guerra Mundial. O que é o nacionalismo? Na realidade, o capitalismo funciona, por um lado, com a desterritorialização, a globalização, mas, por outro, com uma verdadeira reterritorialização no Estado-Nação. Então, as duas coisas andam juntas: globalização e nacionalismo andam de mãos dadas. E essa relação é ainda mais estreita porque o capital está em crise.
IHU On-Line - Neste cenário, como fica a questão dos imigrantes na Europa?
Maurizio Lazzarato - O imigrante é o inimigo interno e externo. Na verdade, existem três inimigos: o imigrante, o refugiado e o Islã. É em torno desse medo que se constroem as identidades políticas. Não é uma identidade política nova, é uma identidade “em negativo” em relação aos imigrantes. Então, é um refúgio, um retraimento da subjetividade que não nos faz prever nada de bom. Essa história vai acabar mal, penso eu. O imigrante é o objeto da guerra civil. Hoje, há uma guerra civil contra o imigrante, a imigração.
IHU On-Line - O que houve com os levantes da Multidão na Europa? Onde estão os progressistas?
Maurizio Lazzarato - Não sei se algo novo pode surgir na Europa, isso não está visível. Talvez. A Europa propôs muitas teorias e projetos políticos até a Revolução Russa e logo depois, mas agora, não sei se ela ainda está no centro. Isso é ainda recente; a Europa perdeu a centralidade política que tinha nos séculos passados e, talvez, também a possibilidade de fornecer a “chave” de iniciativas políticas. Não há nenhuma certeza de que a solução venha da Europa. Em todo caso, não vejo a multidão agir. É mais uma defesa reacionária que cresce. São as novas formas de fascismo, de racismo, de sexismo que crescem na Europa. Não há nenhum progressismo por enquanto.
IHU On-Line –E o nuit debout [1], o movimento social francês que começou em 31 de março de 2016?
Maurizio Lazzarato - Foi muito fraco. Surgiram em paralelo com os movimentos contrários a “Loi Travail”, mas nunca conseguiram enfrentar dois problemas fundamentais: a relação com as populações imigrantes ou com os imigrantes já tendo nacionalidade francesa, de um lado, e, de outro, a relação da precariedade do trabalho com o trabalho assalariado clássico. Então, a meu ver, não tiveram futuro político por causa dessa incapacidade de enfrentar a questão.
IHU On-Line - O que levou Macron à presidência da França e como o senhor avalia seus primeiros meses de governo?
Maurizio Lazzarato - A crise financeira provocou uma queda da credibilidade no sistema político. A credibilidade desapareceu praticamente por toda parte. Os partidos políticos clássicos que garantiam a governabilidade – direita e esquerda juntas – entraram numa crise muito profunda justamente por não terem respostas para a crise neoliberal. Ou melhor, não é que não tinham respostas, pois foram eles que a gerenciaram. Então, os partidos políticos tradicionais entraram em colapso por toda parte, notadamente na França. Diante dessa derrocada, os dois que chegaram ao segundo turno nas eleições foram Macron, candidato do mundo financeiro, e os fascistas [Marine Le Pen]. Foi assim que Macron conseguiu impor-se: foi eleito por 15% da população, não mais do que isso, porque a metade não votou. Na verdade, ele foi eleito por uma minoria da população. Mas a democracia funciona assim: uma pequena minoria consegue eleger um presidente da República. Ele está fazendo exatamente tudo o que os outros governos fizeram, dando continuidade às políticas neoliberais de reforma, do mercado do trabalho, da situação do bem-estar social...
Isso demonstra que se, por um lado, o capital é globalizado, por outro, ele precisa do Estado-Nação para controlar o mercado de trabalho, o bem-estar social, a população. Há uma relação muito estreita entre o estado e a globalização. Nesse caso, dado que o sistema político no poder não estava mais sendo capaz de administrar essa relação entre o Estado-Nação e a globalização, Macron vai fazê-lo com o apoio direto das Finanças.
IHU On-Line - Por que o senhor abandonou o conceito do “trabalho imaterial”?
Maurizio Lazzarato - É um conceito muito ambíguo. Ele não leva em consideração todas as formas de trabalho existentes na sociedade. Considera apenas uma parte do trabalho. Na realidade, existem diferentes tipos de trabalho: das mulheres, dos escravos... Mas ele se concentra em uma pequena parcela da população, considerando uma espécie de vanguarda. Mas isso não é verdade. Creio que o conceito é politicamente frágil nesse sentido, não conseguindo levar em conta todas as formas de trabalho existentes na sociedade. Pode, então, gerar ambiguidades. Portanto, eu o abandonei por acreditar que ele não é capaz de dar conta do que acontece. Principalmente, porque na teoria do trabalho imaterial existe uma espécie de ontologia positiva do trabalho, o trabalho como criação... Mas não é somente isso.
Nesse conceito não são levadas em conta as novas modalidades de dominação e de exploração. Do meu ponto de vista, ele permanece concentrado apenas em uma camada do trabalho. Mas o que passou a me interessar foi o conjunto das modalidades. Além disso, estabelece-se uma relação direta entre o lugar ocupado numa organização do trabalho e a política, mas isso não é verdadeiro. Não é por alguém ter uma função dentro de um sistema mais desenvolvido de relações sociais que terá uma força política maior. Não é porque o seu trabalho é mais abstrato que sua força política será maior. A colonização, a luta das mulheres, mostram isso. Não é assim. É então um conceito problemático a ser abandonado. Assim como o trabalho cognitivo, pois não se trata de um capitalismo cognitivo, e sim de um capitalismo financeiro.
IHU On-Line - Como avalia as mudanças no mundo do trabalho a partir da revolução 4.0?
Maurizio Lazzarato - Não acredito que a revolução da informática possa mudar a organização do trabalho. As linhas diretrizes da organização do trabalho foram estabelecidas antes do surgimento dessa tecnologia. É claro que entramos nisso, mas é uma questão política, de como é retomado o comando dentro da situação de trabalho. Aliás, o termo “revolução informática” não me parece apropriado, nem “revolução digital” parece ser um bom termo. Uma revolução se dá nas relações sociais. O digital e a revolução da informática não modificam as funções dentro da sociedade, apenas as confirmam, portanto, não é uma revolução. É preciso encontrar outra palavra. Uma revolução significa modificar os papéis sociais, inverter as relações de poder. A revolução é de outra ordem.
IHU On-Line - Na Europa, as pessoas se empolgam com o debate sobre a revolução 4.0?
Maurizio Lazzarato - Sim, muito, mas, na minha opinião, isso não serve para nada. Fala-se muito das mudanças, mas a distinção fundamental é entre máquina técnica e máquina social ou máquina de guerra. Uma coisa é a máquina técnica, como a tecnologia digital, por exemplo, outra é a máquina social, a máquina de guerra que utiliza essa tecnologia. Se há revolução, ela se dá na dimensão da máquina social, não na máquina técnica. Concentrar-se nesta, dizendo que se trata de uma revolução é deixar de levar em consideração a máquina social. Esta é o capitalismo cerebral e também uma máquina de guerra. Precisamos, então, inverter os pontos de vista; em vez de partir da tecnologia, é preciso partir da máquina social.
IHU On-Line - Qual a importância do trabalho para a máquina de guerra?
Maurizio Lazzarato - O trabalho faz parte, é um dispositivo da máquina de guerra e da máquina social. Por exemplo, a tecnologia, a invenção tecnológica e a ciência são produzidas dentro de um contexto definido pela máquina social, que o extrapola. Portanto, se queremos tratar da questão da revolução, é preciso partir da máquina social, e não da máquina técnica, que é atrelada às relações de poder do capital, não vai além disso.
Assista à conferência A Era do Homem Endividado proferida por Maurizio Lazzarato, na íntegra:
Nota:
[1] Nuit debout (em português: noite de pé) é um movimento social francês que começou em 31 de março de 2016, decorrente de protestos contra as reformas trabalhistas propostas conhecidas como a lei El Khomri ou Loi travail. O movimento foi organizado em torno de um objetivo geral de "derrubar o projeto de lei El Khomri e o mundo que ele representa". Ele tem sido comparado ao movimento Occupy Wall Street nos Estados Unidos e ao movimento anti-austeridade espanhol 15-M ou Indignados. O movimento concentrou-se na Place de la République, localizada em Paris, onde manifestantes realizaram assembleias noturnas na sequência do protesto de 31 de março. O movimento se espalhou para dezenas de outras cidades na França, bem como para os países vizinhos na Europa. (Nota da tradutora)
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Revolução 4.0? Uma coisa é a máquina técnica, outra é a máquina social, a máquina de guerra que utiliza essa tecnologia. Entrevista especial com Maurizio Lazzarato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU