22 Setembro 2017
Começou nessa quinta-feira, 21, até o dia 25 de setembro, em Turim a 13ª edição do evento Torino Spiritualità, intitulada “Pequeno eu”.
Sobre o tema do evento, o jornal La Repubblica, 21-09-2017, publicou a reflexão do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Platão, em “Timeu”, relata um sacerdote egípcio muito idoso que se dirige a Solon dizendo: “Vocês, gregos, são sempre crianças. Não existe um grego que seja velho!”, pretendendo enfatizar a juventude espiritual daqueles que nós (ironia do destino) chamamos de “antigos gregos”.
Mas não há apenas a possibilidade de ser espiritualmente jovem. Há também aquela, não menos envolvente, de ser espiritualmente criança. À infância espiritual, está dedicado um dos mais belos textos da Bíblia hebraica, o Salmo 131:
Senhor, meu coração não é ambicioso, nem meus olhos altaneiros.
Não ando atrás de grandezas, nem de maravilhas que me ultrapassam.
Não! Eu fiz calar e repousar meus desejos, como criança desmamada no colo de sua mãe. [trad. Bíblia Pastoral]
O que dizemos sobre uma pessoa que se define como quieta e serena, e que se compara a uma criança nos braços de sua mãe? Dizemos que é feliz e contente, adjetivos que provêm, ambos, do latim. O primeiro significado de felix é “fértil, frutífero”, com referência a fetus e a fecundus, de modo que o adjetivo “feliz” originalmente tem a ver com o nascimento e a fecundidade: alguém é feliz quando é fértil e é capaz de gerar e nutrir.
Contentus, por sua vez, é o particípio passado de “conter, segurar”, de modo que contente é quem permanece dentro de certos limites e não quer mais: contém-se, está contido e, portanto, é contente.
O bebê nos braços da sua mãe é feliz porque tem a ver com a fertilidade da mãe e está contente porque isso lhe basta. Basta-lhe viver para viver. Basta-se ser para ser; não pode desejar mais nada, está contido, e isso o torna contente.
Nós sabemos que essa descrição da criança não é totalmente verdadeira, porque, como escreve o neurocientista Franco Fabbro, “na espécie humana, o período de maior agressividade física corresponde à idade de 2-4 anos, tanto nos meninos, quanto nas meninas”. Aqui, porém, o que está em questão não é a infância real, mas a infância espiritual, aquela condição sonhada e, às vezes, vislumbrada que expressa uma característica particular da felicidade: a felicidade como quietude e como paz, o estado de quem está contente porque está contido e se contenta, não vai em busca de coisas superiores às suas forças, mas está satisfeito com aquilo que tem e com aquilo que é.
Talvez, foi justamente pensando nessas coisas que, um dia, Jesus disse: “Em verdade, eu digo a vocês: quem não acolher como uma criança o Reino de Deus, nunca entrará nele” (Lucas 18, 17). Mas, concretamente, o que isso significa? Que é preciso se comportar e pensar como crianças?
São Paulo não pensava assim: “Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto, eliminei o que era próprio de criança” (1Coríntios 13, 11). E, ainda: “Irmãos, não sejam como crianças no modo de julgar... quanto ao modo de julgar sejam adultos” (1Coríntios 14, 20). A maturidade e a razão são um instrumento precioso que deve ser salvaguardado contra toda tendência que favoreça a imaturidade e a irracionalidade. Mas, então, em que consiste, propriamente, a infância espiritual?
Em relação à tradução católica oficial do Salmo 131, a Bíblia judaica apresenta uma versão diferente, em cujo centro se lê: “Considerei a minha pessoa e a tornei igual à de uma criança que acaba de ser amamentada pela sua mãe”. Aqui, fala-se de uma ação nada infantil, descreve-se a maturidade de quem chega a sopesar a própria pessoa e a escolher, em plena responsabilidade, que sabor lhe dar. Independentemente de estabelecer se a mais correta é a tradução dos bispos ou a dos rabinos, a questão existencial retorna: o que significa decidir ser espiritualmente uma criança?
A meu ver, a infância espiritual consiste em duas atitudes de fundo: admiração e confiança. Admiração de que a vida exista e que eu a possa viver, e confiança nela apesar de tudo. A esse respeito, acho que cada um deveria se perguntar se tem confiança na vida. Podemos comparar a realidade que chamamos de vida (entendida como natureza mais história) a uma mãe que nos nutre e que nos carrega: pois bem, você, como se sente nos seus braços? Está tranquilo e sereno, ou, ao contrário, está inquieto e se sente mal, e gostaria de estar em outro lugar?
Naturalmente, não somos nós os primeiros a nos fazer essa pergunta. Desde sempre, os seres humanos a fizeram, e as suas respostas estão depositadas naquele conjunto de saberes e de práticas que, com uma única palavra, chamamos de “espiritualidade” e que inclui arte, música, literatura, poesia, dança, religião, filosofia...
Há modos de sentir e de estar no mundo que estão determinados na direção do descontentamento e da rebelião: são as espiritualidades sob o sinal do “não”, na convicção de que as contas não fecham e que, portanto, não é possível estar contente ou, melhor, é preciso gritar, protestar, lutar.
Há também modos de sentir e de estar no mundo que expressam tranquilidade, alegria, serenidade, e quem adere a elas é como se dissesse a si mesmo que a vida é uma mãe em quem se pode confiar e estar contente.
Relato, a esse respeito, um trecho de Pierre Teilhard de Chardin, jesuíta francês, cientista, teólogo, a quem a Igreja do seu tempo removeu o ensino e vetou todas as publicações, em uma carta de 20 de fevereiro de 1947: “Apesar do caos aparente do mundo, eu continuo otimista, porque, no conjunto, parece-me que os eventos vão na direção que era legítimo esperar: a de uma unificação planetária da humanidade, um processo extremamente perigoso, mas biologicamente inevitável, ao qual seremos (e já somos) forçados a dedicar todas as nossas melhores energias espirituais”.
Nietzsche, como prova de como essa disposição não supõe a fé cristã, apresenta uma visão semelhante. No início do Zaratustra, ele fala de “três metamorfoses”, no fim das quais o leão deve se tornar uma criança, e acrescenta: “Inocência é a criança, e o esquecimento, um novo início, um jogo, uma roda que gira sozinha, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim. Sim, para o jogo da criação, irmãos, é preciso um sagrado dizer sim”.
Acho que Jesus pretendia remeter a essa confiança e admiração primordiais quando dizia que, para entrar no reino de Deus, é preciso se tornar como as crianças.
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Da Bíblia a Nietzsche, a verdadeira felicidade está na infância. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU