18 Setembro 2017
Na sexta-feira, acossados talvez por tantas notícias de ataques sangrentos, lançamentos de mísseis intercontinentais e violências cruéis, tenhamos perdido uma informação muito importante que merecia bem mais atenção e destaque. Após dez anos de números em baixa, e pela primeira vez na era da tão famigerada globalização dos mercados, o número de pessoas em sofrimento por falta de alimento no nosso planeta Terra aumentou, atingindo a cifra de 815 milhões.
A reportagem é de Damiano Serpi, publicada por Il sismografo, 16-09-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo as conclusões do relatório “The State of Food Security and Nutrition in the World 2017” elaborado pelas agências das Nações Unidas, FAO, FIDA e PAM, durante o ano de 2016 um adicional de 38 milhões de pessoas encontraram sérias dificuldades na obtenção de alimento suficiente, em comparação com o ano anterior. Em termos percentuais, aproximadamente 11% da população mundial, ou seja, uma vez e meio toda a Europa e duas vezes toda a América do Norte, agora vive em condições de indigências, a ponto de não dispor nem mesmo de itens de primeira necessidade, tais como pão ou água.
As explicações para essa mudança de rumo nos números globais de quem está em condições de penúria, devem ser procuradas principalmente na proliferação dos conflitos armados em algumas áreas geográficas do mundo e nas súbitas mudanças de clima. Mudanças climáticas, em grande parte devidas ao aumento da temperatura média do planeta, que estão provocando choques contínuos, com chuvas torrenciais, secas improvisas e prolongadas, tempestades e inundações. Esses eventos climáticos que têm violento impacto nas economias locais estão causando fome, êxodos e migrações em massa.
Esses últimos dados, embora importantes por si só porque nos dão o quadro de uma alteração negativa da condição geral do homem no planeta, também nos contam algo a mais. A teoria, apregoada até o exagero ao longo das últimas três décadas, de que, apesar de eventuais desvios ou anomalias, o saldo da globalização da economia e dos mercados seria de qualquer forma positivo, porque o sistema sempre geraria uma diminuição constante do número de pessoas aflitas pela fome e carência de itens primários, não é mais tão indefectível como nos levaram a crer.
Até recentemente, na verdade, qualquer tentativa de explicar ao mundo econômico e político que a globalização não pode ser desvinculada de uma ideia de equidade e justiça em defesa do valor "homem" foi rechaçada pelos seus defensores mais intransigentes precisamente com justificativas baseadas em estatísticas numéricas mundiais, que evidenciavam uma constante diminuição das pessoas em condições de extrema pobreza.
No longínquo 2002, até mesmo São João Paulo II tentou sacudir as consciências do mundo falando de uma globalização por si só neutra e, portanto, possível de ser moldada de acordo com as necessidades reais do homem e dos seus valores inalienáveis. Mas ninguém, então, entendeu a abrangência de suas palavras, e nos limitamos a defender que justamente a globalização traria uma melhoria geral da vida dos homens em todo o planeta.
Até sexta-feira, dizia-se que a globalização desenfreada e sem qualquer tipo de correção teria sempre permitido a um maior número de pessoas sair do estado de indigência e, portanto, dispor das ferramentas necessárias para garantir para si, pelo menos, os itens básicos necessários para a vida. Por um longo tempo foi praticamente assim, pelo menos na lógica impessoal e fria dos números. Ninguém poderia opor-se a essa convicção, considerando que hoje a sociedade raciocina apenas com base nos percentuais e estes pareciam estar do lado dos defensores dessa ideia universal da globalização sem freios ou limites.
Para todos nós, mesmo em face das incongruências de um sistema que tornava ainda mais evidente a diferença entre aqueles que são muito ricos e quem é cada vez mais pobre, inclusive era propalada a ideia de que a globalização fosse, afinal, o único verdadeiro antídoto para o problema da fome no mundo. Ou seja, precisávamos nos contentar com um sistema claramente desequilibrado e que criava um monte de "desperdícios", mas que ainda assim tinha entre seus méritos o de ser capaz, de alguma forma, de reduzir constantemente o número dos chamados "muito pobres". Talvez aquele resultado fosse limitado e representasse apenas uma migalha, mas, alegava-se, era melhor pouco do que nada.
Agora o sonho de uma globalização benéfica, apesar de todo o desperdício que carregava consigo, parece desvanecer como neve ao sol. Os dados que nos foram fornecidos na sexta-feira indicam que está ocorrendo uma inversão de tendência e que as causas não podem ser negligenciadas ou silenciadas. De fato, ou a globalização, como a vivenciamos até agora, terminou o seu ciclo perfeito, ou estamos começando a pagar a conta por não querer colocar regras para um sistema que se baseou por mais de 20 anos apenas no lucro e na livre circulação dos capitais. Provavelmente a mais verdadeira das duas teorias seja a segunda.
Por tempo demais, permitimos qualquer coisa em nome de uma agressiva globalização que devia tornar a todos nós mais ricos e desenvolvidos. Em nome dessa desenfreada corrida para uma produção ao menor custo, ao máximo lucro, às compras na internet, á facilidade de movimentação dos capitais, bens e pessoas, culpada ou egoisticamente permitimos que, muitas vezes, se iniciassem ferozes conflitos armados regionais e, efeito menos evidente no curto prazo, mas exponencialmente mais perigoso no longo prazo, que houvesse uma extremo abuso da natureza e dos seus recursos como se fossem ilimitados. Ao fazer tudo isso não percebemos, ou melhor, não quisemos perceber, que parte daquele lucro obtido nada mais era que a antecipação conspícua de um crédito cujo reembolso estávamos transferindo por completo às gerações futuras ou a quem já vivia situações de semi-pobreza ou pobreza absoluta.
O medo, agora, não é tanto que a globalização não esteja mais na moda e deva ser substituída por uma nova ordem econômica mundial a ser inventada, mas sim que não seja mais possível garantir os extraordinários resultados prometidos, justamente porque chegou à hora de pagar o pesado tributo pelas nossas escolhas de sacrificar tudo, até mesmo a Criação, a uma teoria que nos prometia desenvolvimento e riqueza infinitos. A tudo isso, devemos ligar as palavras de simples bom senso que o Papa Francisco nos endereçou durante a conferência de imprensa no avião que o levava de volta a Roma depois da viagem apostólica à Colômbia.
Ao responder a uma pergunta sobre como os furacões Irma e Harvey pudessem estar ligados de alguma forma à mudança climática causada pelas atividades humanas e sobre essa nova corrida das nações às armas de destruição em massa, o Papa usou as palavras da Bíblia para lembrar a todos que "o homem é um tolo, um teimoso que não vê", antes de acrescentar que por trás de certas opções existe sempre e somente o "deus bolso". Muitos torceram seus narizes ao ouvir palavras tão diretas, outros as julgaram fortes, talvez até demais. Na verdade, são apenas palavras de bom senso que fotografam a situação atual que cada um de nós pode perceber diretamente na vida cotidiana e para as quais precisamos nos apressar a por remédio. O homem trocou cada valor importante, da dignidade humana ao respeito pela natureza, para obter rapidamente um alto lucro considerado, erroneamente, a baixo custo. O homem não soube olhar para além do seu nariz e seguiu apenas o cheiro da moeda, do dinheiro, dos capitais a receber e reinvestir. Nesse jogo perverso, muitos homens tornaram-se um instrumento nas mãos de poucos outros homens para gerar lucro, explorando ao mesmo tempo o que a criação oferece-nos de graça como o ar, a água, o calor, o vento e assim por diante.
As guerras e os conflitos se multiplicaram também porque as armas tornaram-se uma maneira fácil e segura de fazer negócios desenfreados aparentemente sem riscos para o produtor. Para muitos parecia um negócio polpudo e livre de contraindicações vender armas para aqueles que queriam usá-las em territórios distantes. O lema era "que façam todas as guerras que quiserem e até se matem, desde que façam isso entre si e longe da gente". No entanto, não foi bem assim e as guerras, embora de forma indireta e desigual, contribuíram para gerar o atual problema da imigração que vem atemorizando toda a Europa. O ambiente, a natureza e a Criação cada vez mais se tornaram uma rica prateleira de supermercado onde se podia pegar tudo que nos servisse sem ter que pagar nem mesmo o preço da compra. Preço que conscientemente repassamos para as costas dos povos que já sofriam um estado de subdesenvolvimento prolongado ou para a conta em aberto das gerações futuras, que mais do que nós terão que lidar com um planeta Terra devastado, depauperado e em péssimo estado de saúde.
Porém, nem tudo está perdido. O homem ainda pode mudar a sorte que parece estar marcada e limitar os danos que serão deixados para aqueles que virão depois de nós. Nenhum processo em funcionamento é tão irreversível a ponto de impedir que o homem se empenhe para salvar o próximo e a criação. Contudo, precisamos começar imediatamente e, em primeiro lugar, devemos deixar de ser tão tolos ou, melhor dizendo, falsamente ingênuos diante das decisões que devem ser tomadas. Não há muito tempo para recolocar o planeta no caminho certo, e são necessários homens de boa vontade e não mais encantadores de serpentes.
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Globalização, guerras, exploração da criação: pela primeira vez em 10 anos o número de indigentes do planeta mostra um preocupante aumento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU