21 Julho 2017
O filósofo Ruy Fausto, professor emérito do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), é um dos mais renomados estudiosos do pensamento de Karl Marx no Brasil e autor de clássicos como Marx: lógica e política. Em seu último livro, Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução (Companhia das Letras, 216 páginas, R$ 39,90), o filósofo apresenta um projeto teórico e político para ajudar a esquerda brasileira a sair do buraco onde se enfiou. Esse projeto exige o exorcismo do autoritarismo e do populismo, que ainda tentam a esquerda brasileira, e compromissos reais com a democracia, o meio ambiente e as demandas das classes médias. Fausto conversou sobre a condenação do ex-presidente Lula, os dilemas da esquerda, o petismo como patologia e o lugar do velho Marx nessa história toda.
A entrevista é de Ruan de Sousa Gabriel, publicada pela revista Época, 19-07-2017.
Como vê a condenação de Lula?
Espero que Lula seja absolvido em segunda instância. O PT fez muitas coisas más. Quanto à responsabilidade de Lula, é preciso ver. As razões da condenação neste primeiro processo são duvidosas. Certamente houve promiscuidade ilegítima entre o poder e as empresas. De qualquer modo, há bastante assimetria em todos esses processos da Lava Jato. No início, só o PT era culpado. Não sou defensor do PT, mas é evidente para qualquer observador bem-intencionado que a corrupção era geral. A diferença é que, se todos os partidos enveredaram pela corrupção, o PT distribuiu renda como os outros não fizeram.
Isso inocenta o PT? Não. Isso nos leva a apostar no PT? Também não. A condenação de Lula tem uma forte coloração política. A atitude da direção do PT é muito criticável. Em seu congresso, o partido se eximiu de toda autocrítica no que se refere a suas “práticas administrativas”. Ainda por cima, se arrependeu do apoio dado ao Ministério Público e à Polícia Federal nos governos Lula e Dilma Rousseff. Defendeu o pior, condenou o melhor.
Se a direção do PT tivesse feito o contrário, hoje o partido teria todas as condições para fazer uma grande campanha em defesa de Lula. Entende-se que se lute pela absolvição de Lula, mas quem acreditará num partido que diz não ter culpa no capítulo das jogadas ilícitas e que, ao mesmo tempo, condena sua política de respeito à autonomia do MP e da PF? O congresso do PT defendeu a causa dos burocratas do partido, não a causa da esquerda ou do país. Por isso, não devemos apostar no PT, embora o PT não esteja morto.
Se Lula não concorrer à Presidência em 2018, isso facilitará a renovação da esquerda?
Insisto que não quero que Lula seja condenado em segunda instância. Já disse e repito que quero que ele possa ser candidato. Mas não creio que a candidatura de Lula seja a melhor solução. Acho que deveríamos partir para outra.
Quem melhor representaria a esquerda?
Dois nomes me parecem razoáveis: Fernando Haddad, do PT, e Marcelo Freixo, do PSOL. Sou favorável a escolher um desses candidatos jovens para compor uma chapa com um nome da chamada “sociedade civil”. Talvez uma mulher. Não sei. Estou apenas especulando. Não é certo que essa chapa ganhe, mas, se for possível fazer uma boa campanha, falar umas verdades, já seria ótimo. Será preciso fazer uma campanha inteligente contra o liberalismo que corre solto por aí, contra a ideia de que o mercado é solução para tudo. Há dois grandes perigos: a extrema-direita, representada por Jair Bolsonaro, e o discurso hiperliberal, encarnado por João Doria. É preciso enfrentá-los.
Em Caminhos da esquerda, o senhor expõe o projeto de uma nova esquerda antitotalitária, anticapitalista, antipopulista e ecológica. Faz isso mais pela negação, ao diferenciá-la do socialismo soviético e dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula, do que pela afirmação. Como seria, afinal, essa nova esquerda?
Nosso projeto não é mais aquele antigo programa marxista de fim do Estado ou da propriedade privada. Vivemos numa sociedade de mercado, com capital hegemônico. Precisamos estudar como setores não capitalistas, como as cooperativas, podem se tornar hegemônicas no interior de uma sociedade de mercado. Um projeto desses não é nenhum absurdo do ponto de vista antropológico. Do ponto de vista econômico, é praticável. A curto prazo, o projeto é desenvolver já as formas cooperativas e defender as conquistas do Estado de Bem-Estar Social, que está ameaçado por todo lado. Há também um trabalho a ser feito quanto à democracia. Não se trata de lutar contra a democracia representativa, mas de desenvolver também outras formas de democracia e impedir que a política vire um métier.
O senhor critica o “adesismo” dos partidos de esquerda que, uma vez no poder, convergem para o centro e promovem um programa liberal. No entanto, o que o senhor chama de adesismo é, em geral, resultado de alianças com o centro e com a direita, em nome da governabilidade. Como deve ser a política de alianças dessa “nova esquerda”?
Isso é complicado. Um partido tem de ter flexibilidade para fazer alianças. Mas há alianças e alianças. Há coisas que um partido de esquerda não deveria fazer de jeito nenhum. Não deveria participar da corrupção, como o PT participou. O PT pagou um preço alto pelas alianças que escolheu fazer. Aliança se faz com o centro, não com a direita ou com corruptos. Na política atual, se faz aliança com qualquer um. No início, o PT tinha uma política de alianças muito exigente, inflexível e intransigente. Era até duro demais. É preciso ter algum jogo de cintura na política.
O governo do PT é acusado de facilitar o patrimonialismo com a política de “campeões nacionais”, que potencializou a troca de favores entre grandes empresários e o governo. Como evitar que isso volte a acontecer no futuro, em qualquer governo?
Em primeiro lugar, é importante denunciar o que aconteceu de errado, sem poupar o PT. Houve muita corrupção. A política econômica de Dilma Rousseff foi um desastre. O mais grave não foi o “intervencionismo”, mas a forma errada que ele tomou, com congelamento arbitrário de preços, grandes facilidades concedidas a certas empresas. Tratava-se de medidas econômicas erradas e que abriam as portas para todo tipo de corrupção. Precisamos substituir esse tipo de política não por uma outra neoliberal, mas por um neokeynesianismo inteligente.
Em segundo lugar, é importante apoiar bons candidatos em 2018: gente com uma postura de crítica ao sistema, com uma exigência claramente democrática e com uma atitude antipopulista, que implique recusa absoluta das práticas de corrupção. Em terceiro lugar, é importante uma reforma política que limite o poder econômico abusivo nas eleições. Se tudo isso for feito, os costumes políticos vão mudar e o círculo vicioso da concessão de subsídios em troca do financiamento de campanhas será superado.
Recentemente, a França, país que o senhor conhece bem, elegeu à Presidência Emmanuel Macron. Um político que, ao afirmar não ser nem de direita nem de esquerda, venceu o populismo de extrema-direita de Marine Le Pen. Como o senhor interpreta o fenômeno Macron?
Macron é um fenômeno interessante e curioso. Ele representa uma tecnocracia jovem que conseguiu se impor com um programa liberal moderado, se comparado ao de brasileiros como Doria e companhia. Com Macron, a direita ganhou uma nova cara. A cara da direita era a de um velho corrupto e incompetente. Hoje é a de um jovem “de centro”, honesto e competente – ao modo deles, é claro. Muita gente do governo Macron veio do Partido Socialista e era próxima ao Dominique Strauss-Kahn [ex-direitor do Fundo Monetário Internacional]. É uma esquerda que aderiu ao sistema.
O senhor é um grande leitor de Marx. Que papel Marx desempenha na formação dessa “nova esquerda”?
Marx era um grande teórico, que leu toda a literatura econômica de sua época. Ele era muito forte na teoria, o que não quer dizer que acertasse sempre na política – até na teoria, ele às vezes errava. O esquema político de Marx, com ideias de revolução violenta e ditadura do proletariado, envelheceu. O núcleo da obra dele precisa ser revisto. Há problemas sérios ali, que afetam os fundamentos, mas há também muitas coisas boas. Precisamos fazer uma nova crítica da economia política, que passa por uma leitura crítica. Como filósofo, eu fiz um trabalho adjetivo com a obra de Marx. Hoje, o que se impõe é um trabalho substantivo, uma crítica interna da obra. Eu ainda tenho o sonho de me associar a um economista para fazer essa crítica.
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“O PT não defende a causa da esquerda. Nem a do país”. Entrevista com Ruy Fausto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU