19 Setembro 2018
Acolher uma criança, assemelhar-se e identificar-se com ela não é impor o ponto de vista aos outros. Trate-se, antes de tudo, de aceitar um desafio radical, renunciar a si mesmo para tornarem-se discípulos de Cristo. É assumir a nossa condição humana até o fim.
A reflexão é de Raymond Gravel (1952-2014), padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 25° Domingo do Tempo Comum - ciclo B. A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Sab 2,12.17-20
2ª leitura: Tiago 3,16-4,3
Evangelho: Mc 9,30-37
Hoje começamos uma série de seis domingos do evangelho de Marcos que têm como tema “Seguir a Cristo é empreender o caminho do pequeno, do pobre, do servidor”. Neste domingo, para ilustrar o que Cristo quer nos dizer, o evangelista Marcos utiliza a imagem de uma criança que, naquela época, não tinha nenhum direito. A criança era o último na ordem social. Mas que Palavra de Deus pode nascer hoje? Que mensagens do evangelho que nos é proposto podemos guardar?
1. Um caminho de cruz. Pela segunda vez, no evangelho de Marcos, Cristo nos lembra que o caminho da cruz faz parte do nosso itinerário. Por quê? Simplesmente porque ser cristãos, discípulos do Ressuscitado, é tomar um caminho que incomoda os grandes, os sábios, isto é, aqueles que creem possuir a verdade sobre Deus e sobre o mundo, e que têm a certeza de estar na verdade... Mas quem são essas pessoas? Nós as encontramos por todos os lados na Igreja e na sociedade.
1.1 Na Igreja. Geralmente trata-se dos dirigentes, dos especialistas da religião, que sabem o que Deus quer e o que ele não quer. Eles são frequentemente dogmáticos e impõem regras a todo o mundo. Eles se outorgam poder sob as outras pessoas, em nome de Deus. São Marcos, no evangelho de hoje, faz referência: “Quando chegaram à cidade de Cafarnaum e estavam em casa, Jesus perguntou aos discípulos: Sobre o que vocês estavam discutindo no caminho?” (Mc 9,33). Marcos, em poucas palavras, descreve muito bem a realidade do seu tempo e a nossa. Perante a pergunta de Cristo, os discípulos ficam em silêncio: um silêncio cúmplice, pesado, culpado, um silêncio que fala muito sobre a incompreensão da missão cristã: “Os discípulos ficaram calados, pois no caminho tinham discutido sobre qual deles era o maior” (Mc 9,34). Ainda hoje, na nossa Igreja, alguns discípulos se acham superiores aos outros, esquecendo o sentido da sua missão. Para essas pessoas, a pergunta do Cristo do evangelho é muito pertinente: Sobre o que discutiam no caminho? Sobre poder, autoridade? Sobre dogmas? Discutiam sobre regras? Ou sobre serviço? Misericórdia? Perdão? A resposta está em nós...
Eu penso que seria interessante ler as propostas do Cardeal Carlo Maria Martini, o antigo arcebispo de Milão, que faleceu no dia 31 de agosto passado. Na primeira entrevista que ele fazia com um jornalista italiano, no início do mês de agosto, ele dizia: “A Igreja está cansada. A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes e estão vazias e a burocracia da Igreja cresce cada vez mais. Os nossos ritos e hábitos são pomposos. Encontramo-nos na situação do jovem rico do evangelho que se distancia, cheio de tristeza, quando Jesus o chama para ser seu discípulo... A Igreja tem um atraso de 200 anos. Teremos medo? Medo em lugar de coragem? E ainda, a fé, a confiança e a coragem são os fundamentos da Igreja...”
1.2. Na sociedade. Na sociedade há também alguns incrédulos que agem da mesma maneira que os primeiros. Eles também se acham detentores da verdade. Frequentemente, eles fundamentam as suas incredulidades e eles definem seu ateísmo a partir das frustrações da religião da infância. Eles gritam alto e forte a sua convicção de que a fé só pertence aos ingênuos e aos que têm medo do inferno ou da morte. No livro “Felizes sem Deus”, publicado pela editora VLB, sob a direção de Daniel Baril e de Normand Baillargeon, encontramos quatorze depoimentos de pessoas que cospem literalmente em tudo que é religioso e que o fazem com desprezo, condescendência e arrogância.
Um padre da minha diocese que leu esses testemunhos escreveu: “Esses textos nos lembram uma quantidade de ambiguidades não assumidas: as bugigangas religiosas, a grandeza e as misérias dos sistemas religiosos, as frustrações não assumidas do catolicismo do Quebec, de ontem e de hoje. O que me desarma lendo esses testemunhos é a extrema vulnerabilidade do ateu que se fez ateu de uma religião abandonada como a roupa de criança que fica demasiado apertada. Quando vamos ter um ateísmo verdadeiramente amadurecido pela reflexão científica e por um criticismo lúcido?” Uma coisa é certa: o crente que tem a certeza de Deus é tão perigoso quanto o ateu que está convencido da não existência. A certeza cria o integrismo e o integrismo privilegia o fanatismo.
Eu perguntava a um professor universitário, um exegeta de quem gosto muito, André Myre, a respeito de como podemos falar de Deus hoje. Ele me respondeu: “Nunca deveríamos falar de Deus porque nós falamos com a ajuda de palavras e conceitos, e não existe nenhum para falar não de um ser, mas do fundamento de que existam seres... Do nosso lado, como seres humanos que somos, o que nos une primeiramente é a inteligência e o amor, que nos falam do sentido das coisas. Depois, o que nos une é que, tentando pensar em Deus, não há diferenças entre o ateu e o crente, ninguém sabe do que fala. Dizer que ele existe ou que não existe não faz sentido, pois como dizer que existe ou não existe uma realidade que deveria explicar a existência das coisas? De fato, falando em ateu e crente, nós não falamos de Deus mas fazemos um julgamento de valor sobre a religião, o que é uma questão diferente. Há, então, insensatos nos dois extremos: tanto os que estão seguros de que Deus existe como os que estão seguros de que ele não existe. Entre os dois, estão os que não têm certeza de nada, e é a maioria dos seres humanos”.
2. Uma criança. No mundo antigo, a criança era considerada uma bênção para a família, sendo que seria o adulto do amanhã. Mas atenção! A infância não era valorizada por ela mesma. Ao contrário, as crianças não têm nenhum direito; elas estão à mercê dos adultos. A atitude do Cristo do evangelho de Marcos aparece, então, como radicalmente nova. Ela se expressa em duas cenas paralelas que se reforçam entre si: “Depois Jesus pegou uma criança e colocou-a no meio deles. Abraçou a criança e disse: Quem receber em meu nome uma destas crianças, estará recebendo a mim. E quem me receber, não estará recebendo a mim, mas àquele que me enviou” (Mc 9,36-37). E, um pouco mais longe no mesmo evangelho, Marcos nos diz: “Alguns levaram crianças para que Jesus tocasse nelas. Mas os discípulos os repreendiam. Vendo isso, Jesus ficou zangado e disse: «Deixem as crianças vir a mim. Não lhes proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. Eu garanto a vocês: quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele. Então Jesus abraçou as crianças e abençoou-as, pondo a mão sobre elas” (Mc 10,13-15).
O que quer dizer que o Cristo do evangelho vê, na criança, o fraco por excelência, aquela que está indefesa, que não tem poder, nem autoridade alguma e, ao mesmo tempo, aquela que está disponível e aberta ao futuro. Então, acolher uma criança, assemelhar-se e identificar-se com ela não é impor o ponto de vista aos outros. Trate-se, antes de tudo, de aceitar um desafio radical, renunciar a si mesmo para tornarem-se discípulos de Cristo. É assumir a nossa condição humana até o fim. É empreender o mesmo caminho que ele empreendeu, o caminho do amor incondicional, do perdão, do dom de si, do serviço aos outros. Evidentemente, nesse caminho nós encontramos necessariamente a cruz, pois encontramos também aqueles que têm a certeza que o caminho lhes pertence. Por outro lado, a cruz não tem a última palavra: ela desemboca na Ressurreição. E se a cruz é um fracasso, como fala o teólogo francês Michel Hubaut, não devemos sacralizá-la; é preciso lhe dar um sentido.
Terminando, gostaria simplesmente de partilhar com vocês esta bela reflexão do exegeta francês Jean Debruynne, sobre o evangelho de hoje: “No evangelho, os discípulos estão todos lá para discutir e descobrir quem seria o maior, o mais forte, e Jesus lhes dá como lição uma criancinha. Deus não se acha nos que querem ser os maiores; é nessa criancinha que ele se reconhece. E, ao mesmo tempo, que maravilhosa janela aberta na ressurreição! Ele fala da sua morte e nos mostra uma criança. É que a morte de Jesus será um nascimento. E se essa criancinha fosse cada um de nós?
No fundo, a criança é o maior!
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A grandeza de uma criança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU