08 Dezembro 2018
O madeireiro e político Silvério Fernandes, cotado por Bolsonaro para assumir o comando do Incra na região do Xingu (Pará), encampa campanha acusatória contra padre Amaro, sucessor da missionária norte-americana assassinada em 2005.
A reportagem é de Daniel Camargos, publicada por Repórter Brasil, 06-12-2018.
“Dorothy vive!”, exclama um estudante com o punho cerrado. Outras dez pessoas repetem o gesto: “Sempre!”. Os gritos encerram a oração realizada em volta do túmulo de Dorothy Stang, a missionária norte-americana assassinada em 2005 na luta por reforma agrária. A reza antecede a segunda audiência judicial do padre José Amaro Lopes de Souza, o padre Amaro, que busca na fé alento para mais um capítulo das acusações que enfrenta há nove meses.
Sucessor de Dorothy e membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – braço da igreja católica na articulação com trabalhadores rurais –, o padre é julgado por associação criminosa, ameaça, extorsão, invasão de propriedade e lavagem de dinheiro. Reunidas, as acusações atribuem a ele a liderança de uma organização criminosa destinada a ocupar terras em Anapu, no Pará.
A tentativa de criminalização do padre é comandada pelo presidente do Sindicato Rural de Anapu, Silvério Fernandes, um madeireiro que já foi vice-prefeito de Altamira, candidato a deputado estadual, derrotado na última eleição, e um dos principais cabos eleitorais do presidente eleito Jair Bolsonaro na região do Xingu. Em contrapartida, Bolsonaro gravou um vídeo em apoio à candidatura do madeireiro.
A fotografia de Silvério abraçado com Bolsonaro estampa outdoors na região com mensagem de agradecimento pelos votos recebidos. Além de ter sido investigado por participação no esquema que ficou conhecido como Máfia da Sudam, no final da década de 1990, Silvério e dois irmãos acumulam multas de R$ 28,2 milhões por crimes ambientais. “O Ibama é uma indústria de multa”, diz o ruralista, fazendo eco à retórica do presidente eleito.
As denúncias de Silvério e de outros madeireiros e fazendeiros da cidade levaram a uma investigação da Polícia Civil, com mobilização de seis viaturas e 15 policiais para prender o padre, em março deste ano. O nome da operação, “Eça de Queiroz”, faz referência ao escritor português cuja obra-prima é o livro “O crime do padre Amaro”, sobre a relação de um religioso com uma mulher. O inquérito da Polícia Civil também acusou o padre de assédio sexual e anexou um vídeo íntimo do religioso. A denúncia de assédio, contudo, foi descartada pelo Ministério Público.
“Ele é o grande articulador das invasões que aconteciam em Anapu. O padre Amaro foi o grande responsável por tudo. Ele era o braço direito da irmã Dorothy. E ela sempre fomentou as invasões de terra”, afirma Silvério.
“Ao invés de assassiná-lo, encontraram uma forma de desmoralizá-lo atacando sua imagem e criminalizando-o e, assim, conseguirem retirá-lo do município de Anapu”, afirma, em nota, a CPT, comparando a estratégia atual dos fazendeiros com o assassinato de Dorothy Stang.
Ainda é cedo, mas já faz muito calor, como é corriqueiro para o bioma amazônico. A poeira vermelha que sobe das ruas de terra esconde o azul do céu quando se funde à névoa branca resultante das queimadas na região. A fumaça provoca inevitável sensação de sufocamento nos forasteiros. Ao lado da sepultura de Dorothy – enfeitada com flores e foto da missionária –, uma cruz vermelha está cravada no chão. Nela, o nome de 16 trabalhadores rurais assassinados nos últimos três anos em Anapu, reflexo fúnebre da escalada da violência.
Dorothy foi assassinada com seis tiros na estrada de acesso ao maior de seus legados, o PDS Esperança, sigla para Projeto de Desenvolvimento Sustentável, modalidade de reforma agrária que consiste em assentar pequenos agricultores em lotes destinando apenas 20% da terra para a produção agrícola e o restante para a preservação da floresta. A modalidade contrariava – e segue contrariando – os interesses dos madeireiros, responsáveis pela queimadas.
Se há 13 anos os madeireiros miraram em Dorothy, o alvo agora é o seu sucessor. No Fórum de Anapu, o padre Amaro, 51 anos, lê um pequeno livro, a Liturgia das Horas, enquanto o promotor de acusação questiona as testemunhas de defesa. Amaro veste uma camisa com uma foto de Dorothy. No pulso, uma pulseira indígena alusiva ao Flamengo e nos pés uma sandália que contraria clichês: é mais ortopédica que franciscana.
Durante a audiência, o padre não precisou falar, pois será interrogado em 14 de dezembro. Ele aparenta tranquilidade, mas confessa que ali passou o filme da própria vida na cabeça. Quando decidiu que se dedicaria aos trabalhadores rurais, ele tinha 19 anos e acabara de escutar na rádio a notícia do assassinato do padre Josimo Tavares, coordenador da CPT no Maranhão. Resolveu que iria para o seminário, seria padre e trabalharia na mesma entidade que Tavares. “Eu nem sabia o que era CPT”.
Três anos depois, foi estudar no seminário em Belém e conheceu Dorothy, que o convidou a estagiar em Anapu. Depois de ordenado padre, em 1998, seguiu para a paróquia da cidade e atuou ao lado da religiosa na CPT até o assassinato da missionária.
Quando quer destacar o que fala, o padre faz uma pausa e levanta as sobrancelhas, dando ênfase aos olhos miúdos, que compõem a fisionomia expressiva. Desde que saiu da prisão, no final de junho, Amaro deixou Anapu e vive na sede da Igreja, em Altamira, cercado por seguranças. Se sentindo ameaçado, ele reclama de não poder caminhar sozinho e demonstra angústia com a indefinição sobre seu futuro.
Em entrevista à Repórter Brasil, a primeira concedida desde que foi preso, ele responsabiliza Silvério pelo que enfrenta nos últimos meses e diz que após o término do processo entrará com um pedido de danos morais pelas acusações. “Você viu como é o povo comigo em Anapu?”, pergunta, fazendo referência aos abraços que recebeu da população da cidade quando saiu do fórum. A previsão é que a sentença seja dada somente no ano que vem, já que Amaro ainda será interrogado, assim como demais testemunhas.
Até conseguir o habeas corpus, em junho, Amaro ficou 92 dias na prisão, onde também estava um dos condenados pelo assassinato de Dorothy, Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão. “Desconfio que armaram para me matar dentro da cadeia”, afirma o padre.
O assassinato da religiosa foi, como tantos outros, motivado por disputas de terra. Taradão comprou um terreno da família Fernandes que estava dentro do projeto de reforma agrária defendida por Dorothy e o vendeu para o madeireiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida. Depois, Bida e Taradão se uniram para articularem, com matadores, o assassinato da missionária.
Após o crime, Taradão se escondeu na fazenda de Délio Fernandes, irmão de Silvério. Apesar de ter sido investigado também como mandante do crime, Délio não foi julgado por participação na morte da missionária. Assim como o irmão, Silvério passou incólume, mesmo tendo ameaçado Dorothy em 2002. Ele ofereceu uma carona para ela e disse para ninguém invadir suas terras ou “teria sangue até a canela”.
(As ameaças parecem ser uma constante na vida do ex-vice-prefeito de Altamira. Silvério conversa em um tom acima do que pede a educação. Durante a entrevista por telefone, que durou mais de meia hora, ele elevou a voz diversas vezes. Disse, em tom ameaçador, que queria “olhar no olho”. Quando foi perguntado se estava fazendo uma ameaça, ele disse: “Que ameaça o que que? Vai te foder, rapaz.” A truculência verbal de Silvério atingiu também o padre, que foi chamado de “pederasta, veado e vagabundo”.)
O padre Amaro afirma que a família Fernandes faz parte do consórcio que matou Dorothy e é responsável pelas acusações que enfrenta. “Eles [os Fernandes] se dizem donos dessas terras. Qual a raiva que eles têm? É que o PDS foi criado dentro da área que o Délio tinha vendido para o Taradão”.
Apesar de ter apenas 27 mil habitantes, a extensão territorial da Anapu é maior que a de países como Jamaica e Catar. Equivale a 36 vezes o tamanho de Belo Horizonte e a quase 10 vezes a capital fluminense. Nos últimos oito anos a população cresceu 32%. O principal motivo do boom demográfico é a proximidade – 80 quilômetros – com a Usina de Belo Monte. Com o final das obras do megaempreendimento, centenas de famílias sem trabalho, terra e perspectivas foram para Anapu. “Muitas famílias chegam e são pressionadas por madeireiros a invadirem assentamentos”, explica o ouvidor agrário nacional, Jorge Jatobá Correia.
A estratégia ajuda a inflamar a já tensa disputa por terras entre os assentados da reforma agrária e os madeireiros ilegais. A origem do problema está na década de 1970, quando o governo militar iniciou a colonização das terras às margens da Transamazônica, oferecendo títulos provisórios de posse que, para efetivação, dependiam que as propriedades se tornassem produtivas.
Isso, porém, não aconteceu, assim como o cancelamento dos títulos provisórios. Os forasteiros começaram, então, a vender essas terras. Os principais compradores – incluindo o patriarca dos Fernandes e seus filhos – começaram a derrubar a floresta para extrair madeira.
É nesse contexto que Dorothy Stang chega a Anapu, em 1983, e começa a lutar para que aquelas terras sejam destinadas à reforma agrária. Sob o governo do então presidente Lula, são oficializados os primeiros assentamentos na região, em 2003. Dorothy foi assassinada dois anos depois.
Depois da morte da missionária, uma maior presença dos órgãos governamentais na cidade – devido à pressão internacional – proporcionou certa trégua nos conflitos. Porém, após o fim das obras da hidrelétrica de Belo Monte, em 2015, e o consequente aumento populacional, a violência voltou a explodir. O acirramento dos confrontos, que culminou na prisão do padre Amaro, em março, tem o epicentro no lote 44, também conhecido como Fazenda Santa Maria, com área equivalente a 3 mil campos de futebol, cuja posse é disputada judicialmente pela família Fernandes.
Apesar de se dizerem proprietários do lote, Incra e o Ministério Público Federal pediram a destinação da área para a reforma agrária, o que foi acatado pela justiça federal de Altamira. Os Fernandes recorrem da decisão.
Desde então, o lote é palco de conflitos. Em outubro de 2016, as barracas dos trabalhadores rurais que estavam acampados na propriedade foram queimadas. Silvério e Luciano Fernandes são denunciados pelo Ministério Público pelo episódio. Perguntado, Silvério diz que “desmanchou” as casas. “O lote 44 é nosso. É nosso!”, frisa o presidente do Sindicato Rural de Anapu.
O principal denunciante dos irmãos Fernandes nesse episódio, Márcio Rodrigues dos Reis, foi preso em março de 2017, quando tentava reconstruir o acampamento no lote 44. Márcio foi acusado de invasão de propriedade e porte ilegal de arma. No dia da prisão, Silvério acompanhava a operação policial.
Outro denunciante, Valdemir Resplandes dos Santos, foi assassinado em janeiro deste ano. Dois de seus parentes também já foram mortos, assim como uma testemunha do crime. Dos 16 assassinatos de trabalhadores rurais desde 2015, somente em um a investigação policial levou a prisão de suspeitos. Outros 15 seguem sem elucidação.
Para a CPT, a polícia civil é inoperante para identificar, indiciar e pedir a prisão dos responsáveis pelos crimes. “A polícia, assim, age de forma parcial, sem esconder sua proximidade com os fazendeiros e grileiros que ocupam ilegalmente as terras públicas. A impunidade desses crimes é uma das causas da continuidade da violência”, afirma a entidade. A Repórter Brasil pediu um posicionamento à assessoria de imprensa da Polícia Civil, que não se manifestou.
A constante tensão entre trabalhadores rurais sem terra e madeireiros ilegais também se acirrou com o assassinato, em 19 de maio, do irmão de Silvério, Luciano Fernandes, em Anapu. Após a morte do irmão, o ex-vice-prefeito de Altamira gravou um vídeo pedindo ajuda do então candidato à presidente, Bolsonaro. A camisa dele estampava uma imagem do capitão reformado e estava suja com o sangue de Luciano. “Nós temos que combater esses invasores de terra, esses criminosos, esses bandidos. Anapu virou lugar de bandido. A nossa esperança é você”, diz no vídeo, que viralizou nas redes entre bolsonaristas. Silvério acusa movimentos sociais, que estariam agindo liderados pelo padre Amaro.
Essa tese, no entanto, não encontra eco na investigação policial. O motivo do assassinato de Luciano, segundo o delegado Walison Damasceno, titular da Superintendência de Polícia Civil do Xingu, seria uma disputa entre madeireiros. Responsável pela investigação, que está quase concluída, Damasceno afirma que não há nenhuma ligação dos suspeitos com movimentos sociais.
Quase um mês após o assassinato, a polícia prendeu o mandante da morte de Luciano. Depois, também prendeu Josiel Ferreira de Almeida, conhecido pelo apelido de Gato de Botas, acusado de ser o intermediário do crime. Em outubro, os dois filhos de Gato de Botas foram assassinados dentro de um bar, em Anapu.
Silvério, ao ser perguntado pela Repórter Brasil se teve algum envolvimento na morte dos filhos do Gato de Botas, negou: “A gente não compactua com esse terrorismo de tirar a vida de ninguém. Nós somos pessoas de bem. Estávamos defendendo o nosso patrimônio. Meu irmão foi assassinado e agora eu passo a ser suspeito?”, questiona.
Ao invés de imagens sacras e uma cruz, a igreja de Anapu tem no altar a pintura de um trabalhador rural crucificado sobre uma árvore cortada. Ao seu lado, estão a irmã Dorothy e o padre Josimo Tavares, ambos da CPT. O altar divide a cidade, mesmo dentro da igreja, já que há fiéis que querem a substituição da pintura por um altar convencional.
As disputas em Anapu têm os mesmos contornos ideológicos que polarizaram o país nos últimos anos. Silvério é cotado para o comando do Incra na região a partir de janeiro, quando Bolsonaro assume a presidência. Perguntado, ele diz desconhecer a indicação, mas revela que tem intenções caso escolhido: “Quero resolver o problema fundiário da região. Nós viemos para cá para garantir a soberania da Amazônia”. Para ele, os contratos da década de 1970 devem ser respeitados, dando aos forasteiros o título da terra em detrimento dos sem-terra.
O sonho da reforma agrária em Anapu, segundo a irmã Jane Dwyer, de 78 anos, ficará mais distante caso Silvério seja escolhido para o Incra. Nascida nos Estados Unidos, ela, que decidiu virar missionária quando participou, em 1963, da histórica marcha liderada por Martin Luther King, em Washington, continua na luta pela democratização das terras, a despeito das perseguições sofridas pelo padre, da escalada de violência na cidade e das ameaças de Bolsonaro aos ativistas do campo.
Enquanto participa de um batizado na Mata Preta, uma ocupação que espera virar assentamento da reforma agrária, a religiosa da mesma congregação de Dorothy mostra resistência. “Não podemos entrar em pânico. Temos que ter paciência, cabeça fria e, pelo menos, manter o que já foi conquistado”. Jane não vê remédio, entretanto, caso pintem o altar da igreja: “Se fizerem isso, nunca mais piso lá”.
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Bolsonaristas promovem cruzada contra sucessor de Dorothy Stang - Instituto Humanitas Unisinos - IHU