Por: João Vitor Santos e Ricardo Machado | 10 Novembro 2018
Durante aproximadamente oito horas a sala Inacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, foi palco de intensos debates em torno das possibilidades acerca da atual conjuntura política. Variando entre os espectros das institucionalidades políticas, com o Prof. Dr. Roberto Dutra, as especificidades das políticas dos povos tradicionais com Prof. Dr. Orlando Fernandes Calheiros Costa, passando pelas questões da juventude com o Ms. Henrique Costa e fechando com o debate ambiental com Prof. Esp. Fernando Walcacer, o 4ª Ciclo de Estudos. A reinvenção da política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas reuniu dezenas de pessoas ao longo da quinta-feira, 8-11-2018.
A reportagem a seguir faz um apanhado das discussões em perspectiva com aspectos conjunturais e apresenta, ao final, os vídeos com as conferências de cada um dos participantes.
Eis o texto.
Roberto Dutra | Foto: João Vitor Santos - IHU
Quando o empresário e economista Paulo Guedes começou a surgir como um dos nomes fortes do governo de Jair Bolsonaro, o argumento foi: a economia precisa de eficiência, de um técnico e não de um político. Agora, recentemente, o juiz Sérgio Moro entra para o time com argumento similar, pois é alguém “fora da política” e que vem para moralizar o campo com toda sua “expertise” de combate à corrupção. Enquanto isso, muitos se prendem à discussão sobre o medo de instauração de um regime totalitário via militares ressuscitados por Bolsonaro. Mas é importante não se perder nessa bruma e estar atento a movimentos que não mobilizam generais, mas juízes e economistas. “Não precisamos pensar no autoritarismo nacional, mas podemos observar o autoritarismo que se dá em níveis, em alguns lugares, do próprio sistema democrático. Não precisamos de uma ditadura como a de Pinochet, basta que ela seja avalizada pela população”, provoca o doutor em Sociologia e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF, Roberto Dutra Torres Junior.
Dutra, que proferiu a palestra O cenário pós-eleitoral no Brasil. Possibilidades e Limites, dentro do 4º Ciclo de Estudos, observa que a experiência brasileira de 2018 fornece muitos elementos para refletir sobre a democracia de nosso tempo. Pois, para ele, “há sistemas que podem colocar enclaves autoritários nos sistemas democráticos”. “Afinal, a própria democracia é um sistema paradoxal porque pode incluir sujeitos que podem até mesmo a destruir”, acrescenta. Um desses enclaves se apresenta pelas vias da economia. “A lógica do Banco Central não pode ser considerada como um sistema democrático, mas compõe um sistema democrático de governo”, observa. Além disso, aponta que a inclusão de figuras como Paulo Guedes na gestão da economia nacional potencializa o autoritarismo tecnocrático. “O que ocorre é uma despolitização da economia. Paulo Guedes esteve entre os Chicago Boys e vem com essa visão de eficiência econômica”, observa.
O professor quer destacar que não há como conceber a economia alheia à política, afinal, um governo tem de conceber uma política econômica, algo que vai além de números e plano de metas. “As decisões que são tomadas influenciam o tempo todo a vida das pessoas. São, sim, decisões políticas que são tomadas”, reitera. Além disso, Dutra chama a atenção de que na mesma proporção em que há a retratação da política sob a economia, há um avanço da politização pelas vias da religião. Com isso, o debate deixa a perspectiva de luta de classes e assume um viés de guerra cultural. “Esse deslocamento da política na economia para a religião favoreceu a ultradireita. Nessa guerra cultural, não se aceita o outro, o diferente passa a ser combatido”, acrescenta.
Dutra: "Não precisamos pensar no autoritarismo nacional, mas podemos observar o autoritarismo que se dá em níveis, do próprio sistema democrático
(Foto: João Vitor Santos/IHU)
Moralização
Nessa assunção da política pela religião emergem valores moralizantes que passam a ser balizadores das ações políticas. É assim que se manifesta o segundo enclave totalitário que Dutra aborda: o da moralização. Sérgio Moro surfa nessa onda e sua atuação na Operação Lava Jato é fundamental para o ungir como aquele que é capaz de “arrumar” a política, moralizando e também criminalizando. “Só que a política é algo complexo, envolve a barganha. Claro que isso não é bom quando ocorre no nível individual, mas ela também se dá por interesses coletivos. Não há política sem articulação de interesses”, aponta o professor.
Assim, quando Moro emprega seu discurso, desidrata lógicas fundamentais do conceito da política. “Essas lógicas são jogadas para debaixo do tapete, para as sombras. Mas é evidente que isso continuará acontecendo. Resta saber o que teremos de verdade. Será uma realidade no discurso e outra na prática?”, reflete. Por isso, o professor chama atenção para o que pode significar o juiz enquanto chefe de um superministério com poderes plenos. “Acho que não devemos nos preocupar com Bolsonaro e a imposição de um regime autoritário nacional, mas sim com os enclaves autoritários que vão se articular a partir das lógicas da Lava Jato”.
Para Dutra, outra questão é que essa lógica moralizante também ignora as esferas sociais e suas particularidades de transformações. Isso porque leva a crer que a sociedade teria uma escala muito clara de valores morais. Entretanto, a sociedade é múltipla em seus valores. “É um absolutismo de valores, é pensar que vai resolver o problema da educação com autoritarismo, da segurança com mais força e daí por diante”, completa.
A direita, a esquerda e os descontentes
Para o professor Dutra, direita e esquerda se aproximam quando reduzem a complexidade da sociedade. À direita, a simplificação se dá com a promessa de transformação pela moralização. Enquanto isso, a esquerda ainda crê que o Estado é o único capaz de promover a organização social, ignorando que a sociedade tem esquemas próprios de auto-organização. E assim esquecem de observar o que Dutra chama de “os descontentes”. “Esses são aqueles que não estão mais satisfeitos com esse sistema que os levou a isso [a crise, perda de poder de compra, de ascensão social] e buscam outra coisa”, explica.
Em meio aos descontentamentos, ações autoritárias que negam o espaço político podem surgir como uma alternativa. “O autoritarismo, o autocrático, acaba tendo adesão popular porque é um modelo imperativo da inclusão do público”, pontua. Ou seja, é só sendo mais eficiência e preso a valores morais, numa negação da política, que será possível contentar os descontentes. “A retirada da democracia se dá pela adesão de valores alheios a valores políticos. E, nesse caso, a economia é o melhor exemplo”. Como saídas, Dutra sugere pensar política e democracia de forma sistêmica, com todas suas complexidades. “Não temos 50 milhões de fascistas. Pensar assim reduz a complexidade e pessoaliza a questão”, acrescenta.
Orlando encara a conjuntura pelo perspectivismo
indígena
(Foto: João Vitor Santos/IHU)
Quando o presidente eleito Jair Bolsonaro diz que vai governar para a maioria, levando em conta desejos e necessidades dessa maioria, um clima de apreensão e medo se estabelece. E não à toa, pois grupos identitários, as chamadas minorias, veem a ameaça de não só perder tudo que têm conquistado nos últimos tempos como ainda a possibilidade de serem ainda mais invisibilizados. Foi um sentimento parecido que tomou o antropólogo Orlando Fernandes Calheiros Costa, que tem seu trabalho – e lutas pessoais – junto às comunidades indígenas. “Quando vi que Bolsonaro tomou aquela facada, fiquei em desespero. Ali vi que ele estava eleito”, recorda. Na época, estava na comunidade Aikewara, no norte do Brasil. Mas, a experiência junto a esses índios e a forma como encaram a política e sua própria cosmologia o fez perceber que não necessariamente estamos vivendo o fim dos tempos. “É como como diz Ailton Krenak: somos índios e resistimos há 500 anos”, destaca.
Orlando trouxe o perspectivismo ameríndio como chave de leitura para tentar entender a ascensão da extrema direita no Brasil. Quando os Aikewara viam o desalento do antropólogo com o processo eleitoral, tentavam mostrar que não era preciso desespero, que nada mudaria. Esse grupo é um dos que tem sofrido com as ações dos brancos, que avançam sobre suas terras, esgotam recursos naturais e sufocam as forças da natureza que se conectam com os índios. No passado, os Aikewara viram seu território virar palco de batalha na Guerra do Araguaia. Hoje, sofrem as consequências do projeto estatal de desenvolvimento, materializado em empreendimentos como a Usina de Belo Monte, no Pará. “Fui compreendendo por que eles diziam que nada vai mudar, pois sempre estiveram fora. Para essas regiões em que a democracia nunca existiu, realmente pouca coisa muda”, reflete.
O antropólogo chama atenção que a própria existência de indígenas no Brasil já se conforma como uma resistência. A convivência com os Aikewara o fez perceber as especificidades dos corpos que, pela corporeidade cultural, vai distinguir os índios dos brancos. “Para eles, o mundo é habitado por diversos sujeitos. Eles pensam em representatividades múltiplas”, explica. Assim, é como se nosso corpo fosse apenas a casa que vai ser ocupada por esses sujeitos, como um espírito estritamente conectado a todos esses sujeitos. “E os índios pensam que somos a consequência do que e como desejamos. Os brancos, nessa cultura de sempre querer mais objetos, acabam sendo vistos como espectros incompletos”. Segundo ele, essa forma dos brancos de desejar é incapaz de incorporar a diferença, agindo sempre na reprodução do mesmo. O diferente é o estranho, o que pode ser eliminado. Estaria aí a gênese que faz o branco eliminar esse corpo indígena que não se coaduna com sua lógica.
Primeiro o outro, depois o sócio
Orlando explica que os Aikewara compreendem a conjuntura do Brasil de hoje como algo que sempre foi feito na relação entre brancos e índios. “Só que o que os brancos sempre fizeram para fora agora fazem com o sócio. O que era uma reação para o outro, agora é algo intestino”, reflete. Ou seja, se antes se buscava a eliminação das insurgências de corpos diferentes, agora se quer dizimar as insurgências entre os iguais. “O Brasil é isso, uma grande máquina de destruição de insurgentes”, pontua.
É por essas lógicas que movimentos identitários passam a ser vistos como ameaça, e por isso elimináveis. “Mas isso não é só algo feito pela direita”, destaca, ao recordar dos discursos e ações dos governos petistas acerca do desenvolvimentismo e da necessidade de impor a construção de Belo Monte.
Orlando: "O que os brancos sempre fizeram para fora agora fazem com o sócio. O que era uma reação para o outro, agora é algo intestino”
(Foto: João Vitor Santos/IHU)
Viciados na política
Nas primeiras vezes que esteve entre os Aikewara, Orlando observa que não existia luz elétrica. O boom desenvolvimentista trouxe luz, até alguns programas sociais, mas a construção de hidroelétricas e a ação de mineradoras na região esfacelaram as comunidades. Fome, prostituição, estupros, assassinatos e outras tantas formas de violência viram rotina nas aldeias. “Hoje, observo que eles são viciados em política. Acompanham tudo e comentam muito entre eles, mas veem tudo como um filme. É como se não apostassem, não acreditassem mesmo nesse sistema”, revela.
O curioso é que, segundo o antropólogo, esse “não acreditar” é dissociado de apatia. “Eles querem se lançar como força política para avançar sobre o Estado. Sabem que precisam eleger seus representantes para defender seus interesses, mas também sabem que isso é emergencial. É como apagar um foco de incêndio na floresta. Resolve pontualmente, mas no todo não faz muita diferença”, explica. Agora em 2018, fizeram campanha para Sônia Guajajara, vice de Guilherme Boulos, pelo Psol. E não porque acreditavam na eleição deles, mas porque viam que se um indígena tivesse uma votação expressiva poderia abrir novos espaços.
Agora, diante do resultado das urnas, Orlando diz que os índios reconhecem os desafios que terão, mas não acreditam que sejam maiores do que os que já viveram. “Eles não fazem muita diferenciação entre PT e PSL. Afinal, foram massacrados durante todo tempo que o PT esteve no governo”. E, assim, seguem na resistência, agarrando-se no que é possível para se manterem vivos. Um exemplo é como encaram os programas sociais estatais, fundamentais para terem o que comer. Na língua Aikewara, não existe a palavra ‘pagamento’. A expressão traduzida é mais para ‘vingança’. “Para os índios, o Estado ter de pagar para eles é uma espécie de vingança por todo o mal e opressão imposta. E isso é interminável, porque o branco nunca para essa opressão e nunca se vai receber o suficiente pelos danos que se vem sofrendo”, observa.
A fala de Orlando não visa uma ideia de conformação, mas propõe pensar noutro tipo de resistência. Para ele, observar a conjuntura de hoje pela perspectiva ameríndia, que mesmo depois de tantos ataques consegue seguir existindo, pode dar chaves interessantes para encarar os desafios de nosso tempo. Recuperando a frase completa de Ailton Krenak, um indígena que já sentiu muito o que algumas pessoas começam a experimentar, Orlando pontua: “somos índios e resistimos a 500 anos. Quero ver se o branco vai resistir”.
Quem são os Aikewara?
Grupo indígena que habita a região sudeste do estado brasileiro do Pará, mais precisamente na Terra Indígena Sororó, situada às margens da BR-153, nos municípios de Marabá, São Domingos, Brejo Grande e São Geraldo do Araguaia. Falam uma língua pertencente ao tronco tupi, da família linguística tupi-guarani. Os primeiros contatos ocorreram a partir de 1960 pelo então Serviço de Proteção ao Índio - SPI. Habitam a Terra Indígena Sororó, demarcada e homologada. Embora com as terras reduzidas, sobrevivem da caça, com uma pequena criação de peixes e frangos, com apoio de programas sociais estatais.
Tiuré, dos Aikewara, em 1981 (Foto: Instituto Socioambiental)
Na década de 1970, aliciados pelo Exército, quatro guerreiros Aikewara serviram de guias e batedores no combate aos guerrilheiros do Araguaia, com a promessa de ampliação de seu território. Promessa essa que nunca foi cumprida.
Henrique Costa
(Foto: Ricardo Machado/IHU)
O colapso da modernização brasileira encontrou no enfraquecimento da sociedade salarial uma barreira quase intransponível na integração das classes populares à classe média. Em um contexto onde o país não apresenta crescimento real da produtividade industrial desde a década de 1970, quando o PT chega ao poder, em 2003, passa a construir políticas públicas de acesso ao ensino superior como forma de tentar fazer essa integração. “O Prouni e o Fies se inserem nesse processo, quando, em 2005, o Haddad [ministro da Educação à época] entende que é possível a inclusão das populações marginalizadas à classe média por meio de isenção de impostos a universidades. É assim que o PT descobre o mapa da mina”, relata Henrique Costa, durante sua conferência Juventudes e periferias no cenário pré e pós-eleitoral brasileiro.
Durante suas pesquisas etnográficas, Costa percebeu distinções importantes e em certo sentido antagônicas entre dois perfis de entrevistados. Aqueles vinculados às áreas de sistemas de informação não consideravam a universidade algo tão importante para mudar de vida. “Esses estudantes recebiam em média um salário mínimo e meio e não tinham perspectiva de longo prazo. Costumavam ficar pouco tempo em cada emprego”, pontua. O outro grupo era com alunas da pedagogia, em que tinham mais idade e o desejo de ficar mais tempo no mesmo emprego. “Essas pessoas se mostravam mais politizadas e tinham uma visão de médio prazo, acreditavam que a graduação transformaria a vida delas”, explica.
Na avaliação de Henrique Costa, seguindo Richard Sennett, a fragmentação política que percebemos na atualidade reverbera uma dificuldade de se pensar a médio e longo prazo. “Foi a própria fragmentação política que enfraqueceu o petismo e, por sua vez, fortaleceu o lulismo. Foi o lulismo que corroeu o PT por dentro”, frisa. Nesta mesma esteira entra a substituição do programa Fome Zero, que estava vinculado a outros 30 programas complementares, incluindo um programa nacional de segurança alimentar, pelo Bolsa Família que foi, pouco a pouco, desidratando-o. “O projeto do Fome Zero era bastante abrangente e ele é deixado de lado para criar o Bolsa Família, que é uma política focalizada e localizada. Havia um embate ideológico com grupos que defendiam um programa mais abrangente e havia economistas liberais dentro do Ministério da Fazenda que disputavam a hegemonia das políticas públicas. Estes últimos privilegiaram as políticas focalizadas, especialmente o Palocci”, conta.
Henrique Costa, durante conferência no IHU
(Foto: Ricardo Machado/IHU)
Ligar os pontos dispersos nos faz entender um certo espírito do tempo de nosso momento político. “A política depende de longo prazo, de planos, de esperança. Depende de entender o amanhã como algo melhor. O projeto do trabalhador vai sendo desidratado pelo neoliberalismo e pela base. O neoliberalismo compreendido em termos foucaultianos, como algo que penetra na mentalidade das pessoas, faz com que as pessoas passem a competir com os próprios colegas”, descreve Costa. “Quando as pessoas estavam na fábrica era possível solidariedade de classe. Com a fragmentação as pessoas passam a agir de maneira de diferente. O neoliberalismo é uma tecnologia de gestão e isso nos faz operar a partir dessa lógica a partir de práticas absolutamente banais, como preencher o Currículo Lattes”, complementa.
Diante de todo esse cenário, o neoliberalismo aparece com saída, ou “fuga para frente” como descreve Costa, para a crise instaurada no Brasil. “O empreendedorismo de si aparece como a saída para crise instaurada no país. Nisso entra o discurso do protagonismo juvenil”, aponta o conferencista. Outro efeito prático é a uberização das relações de trabalho, que não se restringe, é claro, aos aplicativos de transporte. “A uberização só é possível porque a tecnologia do Vale do Silício cria essa realidade distópica, onde o trabalho é algo em que você fica de 12 a 16 horas trabalhando e não presta contas para ninguém, exceto aos próprios clientes”, critica.
No fundo, o que todas essas decisões políticas mostram é que o processo de neoliberalização de todas as dimensões da vida vem sendo gestado há muitos anos e cuja única expectativa que surge é o agora. “O que Bolsonaro propõe é uma coisa para agora. O que será do futuro? Nada podemos saber”, conclui.
Fernando Walcacer
(Foto: Ricardo Machado/IHU)
O resultado das eleições presidenciais no Brasil trouxe muitas dúvidas no tocante à questão ambiental. De acordo com professor Fernando Cavalcanti Walcacer, o Brasil é campeão mundial em biodiversidade e reservas de água doce e que, além disso, desde 1981 tivemos boas legislações ambientais, mas péssima aplicação jurídica. “Na década de 1970 Norberto Bobbio formulou a ideia de que o meio ambiente era sujeito de direitos. Nos anos 1970, Portugal e Espanha colocaram em suas constituições artigos de defesa à natureza, e o Brasil só entra nesse grupo a partir de 1981”, reconstitui Walcacer.
Some-se a isso o sucateamento dos órgãos de fiscalização ambiental. “A maioria dos funcionários dos órgãos ambientais é contratada temporariamente, o que tira deles a autonomia para enfrentar os grandes poluidores. As licenças ambientais levavam em média de dois a três anos para serem concluídas porque é difícil tecnicamente dimensionar as consequências dos empreendimentos que afetam o meio ambiente. O que se tenta atualmente é destruir todo o processo de licenciamento”, denuncia o conferencista.
Professor Walcacer debate a questão ambiental em perspectiva com o cenário político atual
(Foto: Ricardo Machado/IHU)
Segundo o professor, a legislação ambiental brasileira possui dispositivos importantes de proteção à biodiversidade, como, por exemplo, a Lei da Ação Civil Pública (Lei Nº 7.347). “No Brasil entidades da sociedade civil têm legitimidade para questionar decisões judiciais relativas ao meio ambiente. Essas entidades não precisam pagar as custas judiciais. A legislação brasileira estimula a sociedade civil a defender judicialmente o meio ambiente”, acentua. “Além disso, o Superior Tribunal de Justiça - STJ entendeu recentemente que qualquer ONG que entre no judiciário contra as grandes empresas não precisa provar o dano ambiental. O ônus da prova se inverte, cabe à empresa denunciada provar que não causou o dano, porque se reconhece a disparidade entre os personagens em litígio”, explica.
No que tange à agenda ambiental relativa ao novo governo, as projeções são muito instáveis, porque não há quase nada sobre o tema em seu plano de governo e muitas bravatas no discurso do presidente eleito. “Uma das propostas, e ele recuou, seria a inacreditável fusão do Ministério da Agricultura e do Meio Ambiente, como se a pauta ambiental fosse redutível à agricultura”, avalia. “O Acordo de Paris é a última esperança que temos em termos de proteção ambiental. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas - IPCC (na sigla em inglês), que foi publicado em outubro, é mais sombrio que todos os outros anteriores”, lembra Walcacer.
Na contramão das estimativas científicas, Bolsonaro fala em flexibilizar processos de licenciamento ambiental e acabar com “indústria das multas ambientais”. “Ocorre que no Brasil não existe isso. O que é pago no país é somente 1% das penalidades aplicadas. Isso porque o judiciário acaba acatando uma série de recursos judiciais”, aponta. Por fim, ao encerrar sua fala, o professor ressaltou que “a pauta ambiental é extremamente importante no contexto brasileiro e as perspectivas políticas são preocupantes”. “Devemos estar atentos para as perspectivas não se confirmarem”, finaliza.
Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - Ipea.
Orlando Fernandes Calheiros Costa é doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Museu Nacional, onde coordenou o Grupo de Estudos da Ciência e Tecnologia e permanece como pesquisador do Núcleo de Antropologia Simétrica - NAnSi. Trabalhou como Pesquisador Sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, coordenando o Grupo de Trabalho Araguaia na Comissão Nacional da Verdade. Atuou ainda como pesquisador colaborador do Programa de Pesquisa em Biodiversidade - PPBio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Realizou pós-doutorado no Departamento de Filosofia da PUC-Rio, onde também atuou como professor visitante.
Henrique Costa é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP.
Fernando Cavalcanti Walcacer é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio e pós-graduado na mesma área pelo Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito - Ceped da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Leciona no Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, é coordenador de Direito Ambiental do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente - Nima da PUC-Rio, coordenador do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Ambiental da PUC-Rio. Também é professor da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ e diretor da Associação de Professores de Direito Ambiental do Brasil - Aprodab.
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Olhares sobre a necessidade de uma reinvenção política no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU