Por: Vitor Necchi | 01 Novembro 2018
O psicanalista Gabriel Tupinambá, ao refletir sobre a atual conjuntura, afirma que a crise na capacidade de mapear as forças sociais e políticas, tanto no Brasil quanto no mundo, é tão ou mais séria que a desconfiança nos dispositivos políticos “tradicionais”. “É contra o pano de fundo dessa desorientação que eu leio tanto a descrença que muitos – eu incluso – manifestamos em relação à ‘velha política’, quanto a confiança meio desesperada que alguns – nesse caso, eu não me incluo – demonstram na nossa capacidade de explicar por que chegamos nessa situação, quem são os culpados e por onde devemos ir agora.”
Ao ser questionado acerca dos motivos de haver tanta desconfiança com os modelos tradicionais de política, afirma que a pergunta precisaria ser reformulada: “Então que processo é esse que levou o nosso mapeamento cognitivo do espaço político a se tornar, de repente, incapaz de figurar as forças, os atores e os regimes de causa e efeito cuja visualização é condição para pensar e agir politicamente?”
Ao aprofundar o entendimento sobre a crise política e da democracia representativa, evoca um episódio que chamou a sua atenção: a votação do impeachment de Dilma Rousseff no Congresso. “Se teve uma coisa que serviu de sinal de alarme para muita gente foi a maneira como muitos dos deputados que votaram a favor da cassação justificaram sua decisão no microfone, mandando beijos para a família, agradecendo a Deus etc.”, recorda. “Muita gente tomou isso como sinal de uma crise da representação na democracia: lá estava a nossa classe política falando de suas famílias, agradecendo a Deus e fazendo pouco de sua função de representantes do povo. Mas o que é que faziam aqueles que não estavam nos representando?” , questiona em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Tupinambá entende que a crise da representação “não precisa ser lida na chave do déficit – até porque não foi preciso esperar 500 anos de história do Brasil para concluirmos que há um grau altíssimo de arbitrariedade entre representantes e representados na política institucional”. Para ele, pode-se entender “a novidade dessa crise na chave oposta, pois também pode haver uma crise numa plataforma política quando ela representa mais gente do que devia, quando uma ‘ralé’ que deveria ser absorvida e mastigada pela máquina da história, ‘imantada’ pelo sentido do progresso, passa a ocupar um espaço que não foi feito para ela”.
Uma das palavras mais em voga nos últimos tempos é fascismo. Tupinambá admite que tem “certo ranço” com o uso dessa categoria “para descrever de maneira geral essa nova extrema direita”. Isso não quer dizer que não considere a situação preocupante e perigosa, mas ele entende que “existem muitos tipos de perigo, todos eles igualmente obscenos e terríveis, e inclusive existem perigos maiores que o fascismo”. A grande preocupação dele “tem a ver com a capacidade de dar dimensão, contorno, aos atores e forças sociais e políticas em jogo hoje – e o termo ‘fascismo’ tem sido usado muitas vezes como o único nome possível para o que é ‘outro’ da democracia”.
Gabriel Tupinambá | Foto: Arquivo pessoal
Gabriel Tupinambá é graduado em Belas Artes pela Central Saint Martins, na Inglaterra, mestre e doutor em Filosofia pela European Graduate School, na Suíça. Atualmente faz estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura na PUC-Rio. É psicanalista e coordenador do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia."
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que há tanta desconfiança com os modelos tradicionais de política e qual a consequência disso?
Gabriel Tupinambá – Acho bastante fortuita a escolha do termo "modelo" para a gente abordar essa questão, em vez de falarmos de uma descrença nos políticos ou nos instrumentos de representação política especificamente. Um modelo é mais do que isso: ele inclui não apenas uma certa forma de agir, mas também a nossa concepção do espaço no qual essa ação se dá. É mais ou menos o que o filósofo marxista americano Fredric Jameson chama de "mapeamento cognitivo", expressão que ele tomou emprestado de um urbanista que estudava como a gente mapeia na nossa cabeça as cidades que conhecemos – um mapa mental que não só ajuda a gente a se orientar no espaço urbano, mas também a organizar nossas fantasias sobre a cidade e definir que trajetos e que possibilidades esse espaço oferece.
Então: uma coisa é a gente ter clareza sobre o terreno, sobre aonde queremos chegar, e concluirmos que não é mais possível confiar que certos caminhos nos levem até lá – é uma desconfiança produtiva, digamos, pois nos ajuda a afunilar a escolha de quais táticas são mais apropriadas –, outra coisa é a gente esbarrar em algum obstáculo que não estava antecipado no nosso mapa, e aí a gente tem que colocar em questão a precisão da nossa cartografia do território como um todo. O que fica comprometido nesse segundo caso é muito mais do que nossa confiança em um instrumento político – nossa crença nos partidos, nas campanhas eleitorais, o que seja –, mas a consistência de um modo de visualizar o espaço político, suas causas e efeitos, suas determinações. Além de comprometer nossa capacidade de decidir onde devemos investir nossas energias e de avaliar se nossas intervenções tiveram sucesso, essa crise do mapeamento cognitivo também tem efeitos subjetivos muito duros: pegando carona no trabalho do psicanalista Christian Dunker, vemos que a crise no mapeamento cognitivo político também afeta nossa capacidade de nos localizarmos nesse espaço e, por conseguinte, nos impede de elaborarmos o sofrimento que a vida política nos causa, dado que não conseguimos capturar sua lógica em uma narrativa que torne comensuráveis as causas do sofrimento – muitas vezes abstratas e complexas – e seus efeitos pessoais e corporais.
Tão séria, ou mais, que a desconfiança nos dispositivos políticos “tradicionais”, é a crise que vivemos em nossa capacidade de mapear as forças sociais e políticas tanto no Brasil quanto no mundo. É contra o pano de fundo dessa desorientação que eu leio tanto a descrença que muitos – eu incluso – manifestamos em relação à “velha política”, quanto a confiança meio desesperada que alguns – nesse caso, eu não me incluo – demonstram na nossa capacidade de explicar por que chegamos nessa situação, quem são os culpados e por onde devemos ir agora. Mas, dessa perspectiva, a pergunta inicial precisaria ser reformulada: então que processo é esse que levou o nosso mapeamento cognitivo do espaço político a se tornar, de repente, incapaz de figurar as forças, os atores e os regimes de causa e efeito cuja visualização é condição para pensar e agir politicamente?
Uma forma de abordar esse problema é seguindo a linha de investigação do filósofo Paulo Arantes, que há muito tempo estuda as condições materiais para que haja uma experiência política da história. Uma ideia que ele vem elaborando é a tese de que vivemos o fim de um ciclo desenvolvimentista cujo fio condutor amarrava tanto o projeto político da ditadura civil-militar quanto aqueles que disputaram o poder posteriormente. Ou seja, o que vivemos não é apenas a saturação de uma orientação particular no espaço político – mais à direita ou mais à esquerda –, mas de uma premissa subjacente, até agora lastreada na realidade socioeconômica mundial, que justificava a associação entre desenvolvimento econômico e as demais esferas da vida social.
Na contramão de muitos autores, principalmente americanos e europeus, que interpretam o fechamento de nossa imaginação política – a chamada “era das expectativas decrescentes” – como um sinal da hegemonia discursiva neoliberal, a ser combatida nos mesmos termos, ou como uma resposta psicopatológica individual, a ser tomada como sinal de um predicamento ideológico, o nosso filósofo reconhece aí uma transformação subjacente na própria estrutura do sistema-mundo capitalista. Em poucas palavras: a associação fundamental entre trabalho e progresso, que subjaz tanto o processo de consolidação quanto de expansão da sociedade do trabalho, e que caracteriza tanto a “fase imperialista” do capitalismo quanto os projetos alternativos que se consolidaram durante o século 20, começa a dar xabu: ao invés de absorver cada vez mais gente sob um certo paradigma de trabalho formal, assistimos a um divórcio cada vez maior entre o progresso técnico e empregabilidade – uma coisa simplesmente não leva mais a outra.
Ao invés do processo de expansão tendencial do centro para as periferias – onde o “choque de modernidade” teria produzido, provisoriamente, sociedades em que se misturam regimes normativos incompatíveis, informalidade e emprego formal, refuncionalizando o “atraso” das instituições em nome das mais avançadas formas de exploração etc. – ou mesmo de um parasitismo mais ou menos estável da periferia pelo centro, são esses regimes híbridos e periféricos que agora avançam sobre o centro, carregando mundo a dentro essa forma de viver na arquibancada do progresso. É uma versão terrível daquelas péssimas piadas do tipo “eu tenho uma boa e uma má notícia”: a boa notícia é que o Brasil é mesmo o país do futuro – a má notícia é que são os outros lugares que tendem a se parecer com a gente cada vez mais.
Acontece que, como descreve Fredric Jameson, se tanto o capitalismo de mercado que inaugurou a modernidade europeia, quanto o capitalismo monopolista da maior parte do século 20, eram estruturas sociais homogeneizantes, que carregavam um certo padrão de organização social por onde chegavam, e que eram portanto passíveis de uma modelagem por teorias e narrativas mais ou menos consistentes, esse capitalismo de crise, de retração do centro e avanço da fratura periférica, não oferece mais condições para uma modelagem unificada do espaço social. Para Jameson, não existe apenas uma distância entre a vida imediata e as estruturas sociais, cisão característica da experiência crítica moderna, mas também uma cisão interna a essas estruturas, que organizam um espaço cindido, heterogêneo e constantemente inscrito em formas de vida conflitantes.
Gostei muito da expressão que dá título ao livro novo do Bruno Cava e do Giuseppe Cocco – “enigma do disforme” – para descrever essa coisa difícil de conceber: ao invés da dialética entre a forma e o informe, que daria sentido a um processo de “formação nacional”, nos confrontamos com a emergência de um monstrengo, uma forma trincada, como se fosse o choque entre dois mundos incomensuráveis que, precisamente, não são dois mundos totalmente distinguíveis ou consistentes. Acontece que essa inversão no vetor histórico, do desenvolvimento à periferização, não pode ser interpretada como se o progresso cedesse lugar ao retrocesso – como meus queridos amigos Joelton Nascimento e Silvia Bezerra não cansam de lembrar, essa catástrofe social é um processo que depende daquilo que há de mais moderno, tecnológico e avançado no capitalismo. E, consequentemente, o conflito que essa inversão traz à tona não é aquele entre forças reacionárias e progressistas – ainda que possa tomar essa forma em alguns lugares –, mas antes um conflito entre aqueles cujas vidas se jogam dentro do movimento progressista e aqueles cujas vidas são o “caput mortuum” desse processo, ou seja, o conflito subjacente se torna entre os que têm e os que não têm mais história – “a maior das posses burguesas”, como diz Pasolini em As cinzas de Gramsci.
IHU On-Line – Fala-se muito em crise da democracia. Que crise é essa e no que ela se sustenta?
Gabriel Tupinambá – Posso ligar a pergunta anterior a essa através de um episódio que me chamou a atenção. Todo mundo se lembra da votação do impeachment da Dilma no Congresso: se teve uma coisa que serviu de sinal de alarme para muita gente foi a maneira como muitos dos deputados que votaram a favor da cassação justificaram sua decisão no microfone, mandando beijos para a família, agradecendo a Deus etc. Muita gente tomou isso como sinal de uma crise da representação na democracia: lá estava a nossa classe política falando de suas famílias, agradecendo a Deus e fazendo pouco de sua função de representantes do povo. Mas o que é que faziam aqueles que não estavam nos representando?
A minha impressão é que, para entender o que aconteceu ali, a gente precisaria considerar que a "crise da representação" não precisa ser lida na chave do déficit – até porque não foi preciso esperar 500 anos de história do Brasil para concluirmos que há um grau altíssimo de arbitrariedade entre representantes e representados na política institucional. Podemos, ao invés, entender a novidade dessa crise na chave oposta, pois também pode haver uma crise numa plataforma política quando ela representa mais gente do que devia, quando uma "ralé" que deveria ser absorvida e mastigada pela máquina da história, "imantada" pelo sentido do progresso, passa a ocupar um espaço que não foi feito para ela.
Ou seja, não é necessário entender essa crise como o sinal de um fracasso de representação. Podemos, ao invés, perfeitamente conceber nosso escândalo com o comportamento dessa parcela da classe política como um efeito do processo que descrevi anteriormente: a lenta marcha dos "sem-história" história a dentro, um efeito da generalização da disformia periférica. Na verdade, qualquer um que já viu um programa da Xuxa conhece bem isso de ficar mandando beijo para a família e agradecendo aos céus também – ou seja, a coisa pode tanto ser entendida como um sinal de poder do político perante o Congresso quanto como um sinal de impotência perante as câmeras de TV.
De fato, esses "penetras" trazem para a cena aquela vulgaridade que não reconhece os ritos democráticos como um espaço sagrado, pleno de sentido histórico – mas também trazem à tona as condições efetivas de qualquer projeto político contemporâneo, dado que esse predicamento socialmente trincado é o que espera todos nós de uma forma ou outra. Na verdade, para mim está aí a raiz da explicação de por que quanto mais os defensores da "verdadeira" democracia denunciam e se escandalizam com esses novos atores políticos, mais eficácia esses representantes têm para representar a disformia social. Tanto no Brasil quanto em muitos outros lugares do mundo, essa dinâmica parece se repetir: quanto mais a gente acusa o Crivella, o Bolsonaro, o Trump e o Doria de não respeitar a democracia, mais aderência social eles têm; quanto mais a gente desqualifica-os por sua vulgaridade, mais qualificados eles se tornam para encarnar essa nova face do conflito social.
Enquanto a gente não der conta da relação de fundo entre a crise democrática e a exaustão do pacto progressista, isto é, enquanto não reconhecermos que, num certo sentido, o laço entre a ralé pobre e a ralé rica é menos arbitrário – mas também menos evidente – que o laço entre a esquerda e seus representantes, somos nós que vamos ficar de fora da cena política efetiva. Isso não quer dizer que devemos agir igual aos nossos adversários políticos, claro, mas a gente tem que ser capaz de reconhecer o quanto nós devemos ainda hoje à fantasia de que a democracia representativa iria silenciar essa ralé – fantasia dedutível do nosso desgosto de vê-los agora incluídos no debate.
IHU On-Line – Se a democracia representativa está em crise, o que resta como alternativa?
Gabriel Tupinambá – Então, tudo depende de como a gente lê essa crise. Para mim, as tarefas do dia são mais complicadas do que simplesmente dizer que a democracia real está bloqueada pelo aparelhamento das instituições e então precisamos de outras rotas. Porque aposto na tese de que vivemos efeitos colaterais de um processo real de democratização do espaço político, preciso admitir que eu não sabia o que queria quando pedia "mais democracia". Para mim isso se traduz numa tarefa de repensar o arcabouço teórico e prático da esquerda de modo a comportar o fato – na verdade bem óbvio – de que a democratização, a socialização e a "comunização" não são operadores de apaziguamento ou esvaziamento de tensões: são maneiras de produzir novos problemas, novas angústias, pelas quais devemos aprender a nos responsabilizar. A gente tem que aprender a pensar desde o esfacelamento do projeto desenvolvimentista, e não apenas tomar todos os sinais de sua exaustão como indícios da força de nossos oponentes.
Bem, em segundo lugar, porque aposto na tese de que nosso mapeamento do espaço social e político brasileiro está defasado, preciso também admitir que não tenho ferramentas para conceber com clareza as estruturas sociais que organizam o nosso predicamento. Nem sei como representar o que quero e nem como avaliar quais os meios mais adequados para ir nesse caminho. Mas para mim isso também não implica nenhum tipo de paralisia ou derrotismo, muito pelo contrário: além de demandar uma certa humildade perante as coisas que me surpreendem ou escandalizam, essa constatação nos convida a substituir o foco na democracia como uma finalidade ou emblema político por um novo cuidado com a democratização de qualquer atividade política.
Vou explicar: é claro que existem muitas frentes de luta interessantíssimas hoje habitando esse terreno disforme e fraturado que é o nosso – o que é preocupante é que não existem quase plataformas de trânsito entre os resultados desses diferentes experimentos políticos. É como se a gente ainda confiasse que toda resistência, só por ser resistência, vai ser comensurável com todas as demais lutas sociais – uma coisa vai reverberar na outra, porque todas estão submersas num mesmo substrato homogêneo. Ora, se a hipótese dessa "condição periférica" está correta, então o fato é que vamos cada vez menos poder contar com esse pano de fundo comum, essa homogeneidade que garantiria de alguma forma a coexistência e coimplicação entre diferentes fragmentos sociais, o que nos confronta com a possibilidade paradoxal de vivermos um período de intensa resistência, com uma multiplicação das frentes de luta, sem que isso acarrete num acúmulo de força social efetivo.
Ou seja, não é mais suficiente apenas se engajar numa dada frente de luta – é preciso ainda se preocupar em conformar as vitórias e derrotas de cada experimento político a um espaço artificial, que precisamos construir, em que essas experiências possam se inscrever, se acumular e nos poupar de repetir os mesmos erros de novo. Diria que antes mesmo de nos preocupar em "vencer" no jogo democrático, mas também para que isso seja possível, seria preciso aprendermos a fracassar melhor – isto é, a democratizar as lições dos fracassos. É pensar a democracia como epistemologia, e menos como bandeira ideológica. Por exemplo, eu não estou interessado em autocrítica do PT porque acho moral e correto – estou interessado porque quero aprender o que nós podemos herdar da história e das técnicas organizacionais desse partido. Sem isso nenhum luto é possível, inclusive.
IHU On-Line – Nos últimos anos, em diversas regiões do planeta verifica-se o fortalecimento de ideias populistas e xenófobas, além de atos de ódio e de preconceito. Como se chegou a esse quadro? Há como não ser pessimista com isso?
Gabriel Tupinambá – É claro que, com o cenário internacional do jeito que está, não faz nenhum sentido ter grandes expectativas quanto ao que vem pela frente. Mas, ao mesmo tempo, acho notável como essa luta de caráter mais reativo mistura a resistência contra uma ameaça real com uma resistência de outra ordem, mais fantasmática, dado que não é apenas o extremismo de direita que avança no mundo hoje, mas também essa tal disformia social de que falamos. O perigo da luta que equaciona essas duas coisas é que ela acaba jogando fora o bebê com a água suja: o combate ao extremismo reacionário só vai ser possível através da assunção efetiva da condição periférica do próprio projeto de uma nova esquerda – então, se a gente permite que nosso medo da direita e o nosso medo dessa nova condição social coincidam, também abrimos mão de conhecer e nos localizar no terreno em que a luta política contemporânea se dá, e ainda pintamos a direita como uma força mais potente do que ela é, pois esse processo social de fundo é uma tendência que ela não tem força para controlar.
Por exemplo, por mais que existam ótimas razões para isso, pessoalmente eu tenho um certo ranço com o uso da categoria "fascismo" para descrever de maneira geral essa nova extrema direita. E não porque eu não considere a situação preocupante e perigosa, mas porque existem muitos tipos de perigo, todos eles igualmente obscenos e terríveis, e inclusive existem perigos maiores que o fascismo. Minha grande preocupação, voltando aos temas que já discutimos, tem a ver com a capacidade de dar dimensão, contorno, aos atores e forças sociais e políticas em jogo hoje – e o termo "fascismo" tem sido usado muitas vezes como o único nome possível para o que é "outro" da democracia. Os efeitos dessa expansão terminológica podem ser nefastos, porque, como mencionei, essa forma de analisar a situação não é capaz de distinguir um traço da topografia social contemporânea – a condição periférica e sua relação enviesada com as instituições do progresso – de um projeto político que pode se utilizar dessa condição, mas que definitivamente não se confunde com ela.
Vou tentar esboçar uma rápida análise, coerente com o que venho expondo até aqui, de como é importante sermos capazes de dar mais detalhamento aos fenômenos extremistas, até para poder disputar suas bases sociais e solapar sua força. Gostaria de distinguir duas formas de rechaço do estranho, de "xenofobia". Existe a xenofobia dirigida contra o diferente – é a formulação clássica que sempre aparece nas nossas análises do fascismo: uma crise econômica cria um cenário de instabilidade social, e um movimento reacionário acopla um programa de estabilização aliado ao liberalismo com a eleição de um certo grupo social como bode expiatório a ser culpado pela crise, no lugar do próprio liberalismo econômico. A eleição desse grupo se daria pelo que ele tem de distinto da comunidade ameaçada pela crise social: o judeu, o negro, o homossexual, a mulher, o louco são alvos na medida em que emergem como estrangeiros no mundo do homem branco heterossexual etc. Não há dúvida que essa forma de segregação do diferente é a principal marca política do século 20 no Ocidente e é ela que a gente tende a identificar como marca do fascismo.
Mas existe ainda uma outra lógica de segregação do estranho, na qual o ódio é dirigido não àquele que se distingue socialmente de mim, mas àquele que é indistinto de mim em excesso, que me obriga a me reconhecer num lugar social ao qual já pertenço, mas contra o qual eu luto para sair fora. Muitas vezes usamos como exemplo das formações de ódio que estão nos assolando a reação da classe média brasileira com a entrada do pobre na universidade ou nas filas de embarque em aeroportos. Se só existisse uma lógica de segregação, aquela que visa a expulsar o diferente, teríamos que interpretar essa situação como um incômodo com um outro que não pertence àquele espaço e que deve, portanto, ser retirado dali. Mas eu acho extremamente importante considerar a hipótese inversa, de que a presença do pobre é incômoda não porque obriga a classe média a lidar com o diferente, mas porque revela que não há quase nenhuma diferença entre o acesso precário, revogável, àquele serviço por parte desse novo usuário e o acesso supostamente garantido dos demais – trata-se de uma situação que torna claro que a classe média como um todo, e não só ela, tem no fundo um acesso igualmente precário a uma forma de vida que está em vias de desmantelamento. O ódio apareceria aqui, de acordo com essa hipótese, como uma estratégia defensiva de distinção social – o repúdio e a agressividade não visam a estabelecer nenhum vínculo nostálgico e comunitário, nenhuma identidade nacional, entre os odiosos, nem mesmo construir uma figura específica do outro a ser segregado. Trata-se de uma resposta à emergência angustiante do fato de que estamos todos sendo tragados pela periferização da vida, e o nosso horizonte de sentido, em que democracia e consumo se retroalimentam, não é nada garantido.
Você poderia me perguntar agora: mas por que essa estratégia de ódio é sempre tingida de ideais conservadores, de direita? Bem, aí que está: eu não acho que isso aparece só na direita – a diferença, se posso ser tão dramático, é que do lado da direita essa estratégia aparece como um ódio ao que, no outro, é igual a mim, enquanto na esquerda ela aparece como um ódio ao que, em mim, é igual ao outro. Vemos isso na relação verdadeiramente odiosa que a esquerda tem com as condições reais de existência de seus próprios militantes, que são cobrados como se não estivessem se virando nos trinta para conciliar estudo, trabalho e militância, por exemplo. Tudo o que contamina a militância com as contradições da vida disfórmica, com regimes normativos cruzados e incompatíveis, é interpretado como desvio e falta de tenacidade política. Poucas são as organizações – em geral, são as mulheres que estão na vanguarda aqui, como costuma ser – que tematizam com seriedade a necessidade de adequar suas formas de organização para responder e cuidar das condições efetivas da vida de suas militantes, suas contradições etc. Para não falar da relação propriamente fóbica que mantemos com as questões de remuneração do trabalho político, a incapacidade de nos apropriarmos de tecnologias administrativas e de tratamento de dados, que foram desenvolvidas em "outros" contextos políticos. Mas aí podemos perguntar: se a esquerda demonstra tanto desgosto com essas contradições dentro de suas próprias organizações, porque seria menos defensiva no que tange ao resto das pessoas? Enfim, a minha interpretação das tais "guerras culturais" no Brasil iria um pouco por aí – menos como uma politização da cultura e mais como uma culturalização da política: uma expectativa de que os índices políticos venham a servir como índices de distinção social ali onde outras marcações estão falhando.
Isso me leva a um último ponto nessa questão. Eu sugeri dois modelos aqui de xenofobia – não estou propondo dois paradigmas que se sucedem, nem nada assim: para mim, nem a contradição entre campo e cidade em 1848 na França e nem em 1918 na Rússia poderiam ser entendidas sem considerar essa outra lógica. Ambas as formas funcionam hoje, mas sem distingui-las, sem analisar como se misturam, como se beneficiam de diferentes situações, em diferentes países, a gente não vai entender nada do que está acontecendo. Isso vale tanto para a importação descuidada de modelos de ação política – pela questão que já discutimos anteriormente, da crise de mapeamento cognitivo e sua relação com a articulação centro-periferia –, como também para a análise das forças reacionárias, como se o que acontece na Europa, no centro que se contrai, fosse igual ao que acontece por aqui, onde a periferia se expande.
Não se trata de passar a mão na cabeça da extrema direita e dizer "não é fascismo, não é tão ruim assim", mas antes de apontar que existem infinitas formas de irmos para o buraco, cada uma delas com seu inferno particular. Um regime que se alimenta, ao mesmo tempo, da expansão da experiência social fraturada e do ódio contra a emergência dessa disformia não joga "diferente contra diferente" – o que tensionaria conflitos sociais mais ou menos bem demarcados por grupos sociais distintos –, joga, acima de tudo, “igual contra igual”, o que significa um processo de espiral autofágica, com limites bem menos definidos. E com uma consequência alternativa muito assustadora: enquanto, pelo menos no papel, o ódio ao diferente poderia ser barrado com mais diálogo e democracia, no segundo caso, quanto mais próximos todos somos colocados, pior fica! Ainda estamos por nomear adequadamente esse tipo de horror. Talvez ao invés de chamar isso de nazismo, podíamos dizer que os caras têm "complexo do Alemão".
IHU On-Line – O candidato à presidência que conquistou mais votos se notabilizou por um discurso de ódio, preconceito e declarações violentas contra pessoas LGBTs, mulheres, negros e índios. Ele também enaltece a ditadura e a tortura. O que explica o seu sucesso eleitoral?
Gabriel Tupinambá – Considerando tudo o que já conversamos sobre crise da democracia e a emergência da ralé como efeito da disformia social própria da condição periférica, eu tenho umas hipóteses que talvez ajudem a entender um pouco melhor como funciona esse sucesso eleitoral do Bolsonaro – para além dos aspectos já bastante discutidos, como o antipetismo, uso das redes sociais etc.
O primeiro ponto diz respeito, como já falei, ao modo como a desqualificação de alguns representantes políticos funcionam, numa situação como a nossa, paradoxalmente como reforços de sua eficácia. A minha hipótese é que a força desse tipo de figura não vem tanto da capacidade do seu discurso de produzir um "equivalente geral" das demandas sociais, como diz a teoria do populismo, mas justamente do cara pagar o preço corporal de deixar claro que a lógica da representação está capengando. Eu lembro de um dos primeiros debates na TV do Donald Trump, quando ele ainda disputava a posição dentro do Partido Republicano, e ele admitiu em rede nacional que havia doado dinheiro para a campanha de todos os outros candidatos presentes ali. Por um lado, é um baita deboche do rito democrático, mas por outro é uma forma de sustentar que o poder está em outro lugar.
Do ponto de vista de quem acredita que a democracia representativa é, essencialmente, todo o espaço político, estar "fora" do espaço democrático significa se colocar na posição de soberano, acima ou fora da lei. Mas, para a maioria das pessoas, esse "outro lugar" costuma ser um espaço muito bem definido: no caso do Trump, é o mercado e o mundo empresarial e do entretenimento. Se a gente não considera isso, que há uma diferença entre estar com um pé fora do jogo democrático porque nos colocamos fora de toda lei ou porque estamos com o outro pé num outro regime normativo, vamos colocar todos esses líderes "populistas" no mesmo saco e não vamos notar que há uma diferença entre aqueles – normalmente de esquerda – que estão com um pé na lei e outro na História com "H" maiúsculo, e aqueles que extraem sua eficácia como representantes justamente da posição bífida que ocupam como pessoas privadas: Crivella, um pé no palanque, outro no púlpito; Doria, um pé lá e outro na fortuna privada; Bolsonaro, um pé na candidatura e um dedinho do pé no Exército etc. Estar em duas leis é diferente de estar fora da lei – não estou dizendo que é melhor, mas é uma situação diferente, uma situação que é inclusive o arroz com feijão da vida nos regimes sociais híbridos da periferia e pode ajudar a explicar por que muita gente não vê essas figuras como tiranos "capazes de tudo", como nós muitas vezes interpretamos. É estranho ver o trabalho do Gabriel Feltran, sobre os múltiplos regimes normativos nas comunidades periféricas, servir de chave de leitura para o espaço político, mas acho que é coerente com a minha abordagem.
O segundo ponto diz respeito à relação da maioria das pessoas com o discurso de ódio e preconceito. Não me refiro aqui àqueles que tomam a emergência do Bolsonaro como uma autorização para praticar atos de violência, mas à maioria do seu eleitorado, que vota nele e ao mesmo tempo se escandaliza quando fica sabendo da notícia de agressões ou de assassinatos de motivação política – tanta gente vota nele porque quer mais segurança, é claro que essas pessoas não veem com bons olhos o aumento da violência. Mas como explicar essa conivência com um discurso que, por outro lado, deixa a gente de cabelo em pé?
O psicanalista Christophe Dejours, num livro chamado A banalização da injustiça social (Rio de Janeiro: FGV), discute um negócio chamado de "mecanismos coletivos de defesa", e eu acho que essa é uma ideia que pode ajudar muito a gente aqui. Vou contar um breve caso. Um homem trabalha como pedreiro num canteiro de obras, ele passa o dia carregando sacos de tijolos na laje de um prédio em construção, sem nenhum sistema de segurança, exposto a um risco terrível. Uma das formas que ele tem de mitigar esse risco, além do zelo com sua tarefa, é transformar a humilhação de seu desamparo em um ritual com os demais pedreiros – quem se arrisca mais não é quem está em piores condições humanas, mas quem é mais "macho". Essa é uma das maneiras de criar um mecanismo de defesa que, por um lado, torna o trabalho possível e, por outro, banaliza a injustiça ali no canteiro de obras – mais que isso, obriga o pedreiro a assumir uma posição no discurso que é sobredeterminada não por sua posição pessoal, seu inconsciente e tal, mas por sua posição como trabalhador. Isso é perceptível quando, após o dia de trabalho em que o cara ficou lá, flertando agressivamente com as mulheres que passavam na rua, ele vai para casa e se encontra com a esposa e a filha, que não participam de sua economia libidinal da forma como as mulheres aparecem nesse mecanismo virilizado de defesa. Ou seja, o cara é obrigado a fazer uma acrobacia psíquica – e muitos adoecem disso – porque precisa habitar regimes normativos incompatíveis.
Quem trabalha com certas áreas – principalmente com cultura, conhecimento e ação social – pode não conhecer esse tipo de estratégia de defesa, ou não percebe sua existência, porque são ambientes em que em geral a pressão do trabalho já se articula em termos dos valores culturais que a pessoa defende – o que leva a outros tipos de adoecimento, inclusive –, mas a maior parte dos ambientes de trabalho são acompanhados de mecanismos parecidos, sem os quais as pessoas não aguentam o tranco da labuta. Acontece que esses mecanismos são a prova diária de que nem tudo o que dizemos a gente faz ou acredita. Ou seja, é um outro aspecto da condição de disformia esse pé atrás com a eficácia dos discursos – sejam discursos empresariais, que a gente deixa entrar por um ouvido e sair pelo outro, ou discursos agressivos e machistas. Mas pelo amor de deus: não estou dizendo aqui que a crítica do machismo ou do racismo não é importante, ou que os flertes no canteiro de obra não são violentos – estou só tentando abrir um pouco a caixa-preta de como os discursos circulam nos ambientes de trabalho, pois entender essa disjunção entre discurso e a organização psíquica me parece essencial na hora de entender por que muita gente não leva a sério o discurso de ódio do Bolsonaro. E isso não substitui a compreensão da situação daqueles que se autorizam a partir desse discurso para partir para a agressão, claro.
Um comentário adicional ainda sobre esse ponto. Eu não gosto nem um pouco do termo "pautas identitárias" para descrever as lutas que se organizam em torno de setores específicos da população – política não se avalia pelos emblemas que evocamos, mas pelos efeitos que produzimos, e se tem alguma coisa que não produz "efeitos identitários" hoje na política são as lutas dos movimentos negro, feminista e LGBT. Mas um dos efeitos colaterais dessas frentes de luta é a promoção de uma certa concepção de discurso – normalmente assumida por quem não está diretamente envolvido nessas militâncias. Na medida em que ficar atento ao que se pode e não se pode dizer, a quem tem voz e visibilidade, se tornou uma importante medida do sucesso de certas ações políticas, surgiu, de dentro do processo político que defende que "fazer é também fazer falar", a ideologia de que "falar já é fazer" – a ideia de que o discurso, por si só, sem consideração das condições materiais de sua circulação, de como é recebido, das suas condições de emissão etc. já é uma força causal política.
A minha impressão é que a nossa incapacidade de avaliar de onde vem a eficácia do discurso bolsonarista – dado que boa parte da população não compra quase nada do que ele diz – vem de nosso investimento nesta premissa subjacente: se ele fala, então ele não só vai fazer, como já está fazendo. Novamente, isso não significa diminuir o perigo de um governo dirigido por esse crápula, mas assumirmos posições que nos permitam dimensionar melhor a lógica do que está acontecendo – que é o verdadeiro lastro do que esse governo seria capaz de fazer –, e não me parece um dado insignificante que essa tese sobre o discurso só seja efetivamente sustentável se a gente se mantém não apenas numa "bolha cultural", mas numa bolha no próprio mundo do trabalho.
Vou dizer mais uma vez: sei que propor esse tipo de análise parece um capricho – e tem sido bem difícil pensar o bolsonarismo sem que essa mínima distância pareça por si só uma afronta à seriedade da situação. Mas a outra opção me parece ainda pior. Num livro bastante famoso, Marcuse falou sobre a ideia de uma "contrarrevolução sem revolução" – e é uma ideia que, se a gente lê com cuidado, meio que já aparece até nas primeiras linhas do Manifesto Comunista: de um lado a gente tinha o "espectro" do comunismo – espectro esse que Marx, poucos meses depois, reconheceria ter sido apenas isso mesmo, um fantasma –, mas do outro a gente tinha "todas as potências da velha Europa" que se uniam para "conjurar" essa ameaça. E essas potências não eram nada fantasmagóricas, eram bem reais. Pois bem, meu medo é que a esquerda entre ela mesma de cabeça nessa lógica contrarrevolucionária e que não façamos mais questão de distinguir os fantasmas das potências efetivas: por um lado satisfeitos de termos nossa pouca expressividade concreta confundida pelos outros com uma grande ameaça, e, por outro, satisfeitos com não mensurar as forças da direita, pois esse espectro ameaçador que a acompanha vai se tornando a única alavanca que temos para mobilizar uma aliança entre "todas as potências" da esquerda. Nada de bom vai sair daí.
IHU On-Line – A esquerda passa por um momento de profundos questionamentos, críticas e reformulação no Brasil e no mundo. O que se passa com esse campo?
Gabriel Tupinambá – Gostaria de focar num outro aspecto desse diagnóstico que venho martelando na entrevista toda, mobilizando de novo essa diferença entre a forma social do Estado-Nação – como uma amarração positiva entre as lógicas do contrato social, do laço comunitário e do valor, que constitui um espaço público, uma ideia de "povo", com passado e futuro etc. – e a disformia periférica, em que essas três lógicas se articulam de maneira inconsistente, sem formar um mundo comum, vulgarizando a relação com o espaço social, fraturando a consistência das instituições de representação, e por aí vai. Eu mencionei algumas vezes que acho que um dos efeitos dessa disformia é o esvaziamento de um substrato comum que garantiria um tecido social mais ou menos homogêneo, costurado pela promessa de que o progresso técnico e o trabalho iriam levar à superação dos conflitos sociais.
Então: acontece que, historicamente, a esquerda sempre pôde contar com esse substrato comum, que até um certo momento do século 20 era concretamente lastreado pela maneira como a economia capitalista reorganizava os espaços por onde passava, e que garantia, pelo menos parcialmente, as condições materiais para a politização emancipatória – num sentido bem concreto mesmo: a quantidade e qualidade de tempo que a luta política, separada da organização e reprodução da vida cotidiana, necessita. Fazia parte da própria organização do trabalho e da extração de valor desnaturalizar as formas de vida, imprimir um regime impessoal indiferente aos limites culturais, organizar as bases logísticas para o trânsito de pessoas e mercadorias, expor as pessoas ao estranho e socializar o sofrimento – essa homogeneização era um aspecto do próprio desenvolvimento capitalista. E aí a gente chegava, com os sindicatos, os partidos, as palavras-de-ordem, e politizava esse excesso de despersonalização em nome de outra coisa. Mas e agora, que o capitalismo de crise consegue muito bem organizar os circuitos do valor sem organizar o mundo do trabalho? Estou simplificando loucamente a situação, mas o meu ponto é bem simples: pela primeira vez na história da modernidade – desde os anos 70 do século passado, com o estabelecimento de um novo modo de acumulação de capital – caiu no colo da própria esquerda a tarefa de pensar e produzir as condições econômicas e subjetivas da militância política.
Questões "menores" como os custos econômicos – de tempo, dinheiro, mas também de angústia – de se organizar politicamente não podem mais ser invisibilizadas ou tratadas como problemas acidentais, pois se transformam, num cenário como o nosso, em um dos melhores termômetros de se uma dada organização realmente está à altura dos nossos desafios políticos e sociais. Ao mesmo tempo, nenhuma consideração tática pode ser considerada séria se ela não levar em conta que um dos efeitos dessa nova imbricação entre tempo de repouso e tempo de trabalho, tão discutida hoje, é justamente reconfigurar os constrangimentos sociais que determinam a relação entre trabalho e militância. Simplesmente falta perna e tempo para fazermos certas coisas – a não ser que continuemos nos fingindo de cegos, e não tenhamos problemas em cobrar um sacrifício tremendo das pessoas, colocando-as às vezes em grande risco físico e psíquico. Mas aí não podemos reclamar quando não acreditam muito no que dizemos defender, né?
Estou repetindo isso bastante, mas não posso enfatizar o suficiente o quão profunda é a mudança que o fim desse pacto entre capitalismo e homogeneização social implica para o pensamento político de esquerda. Para mim, essa é a principal razão pela qual uma das tarefas teóricas mais importantes hoje é realmente traçar uma diagonal ligando o pensamento marxista – com sua preocupação com as grandes escalas de transformação social – com o feminismo autonomista – que se constituiu como o mais sofisticado pensamento das querelas da reprodução social – e o movimento negro – que, pelo menos desde os Panteras Negras, para não falar da Revolução do Haiti, guarda uma penca de lições sobre o que é a política sob condições periféricas. A ideia da interseccionalidade entre classe, gênero e raça é certamente um passo na direção certa, só não sei se não vai demandar de nós ainda um salto maior para que se transforme num modelo que faz mais do que dar visibilidade à complexidade da experiência periférica e se consolide como um dispositivo capaz de produzir experimentos políticos transmissíveis para além das fraturas sociais. Mas é onde eu coloco minhas fichas.
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Não foi preciso esperar 500 anos para concluir que há um grau altíssimo de arbitrariedade entre representantes e representados. Entrevista especial com Gabriel Tupinambá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU