Por: Rafael Francisco Hiller | 02 Novembro 2018
Frustrações em nossa vida diária, angústias e excentricidades estão constantemente sendo categorizadas como doenças que merecem, além de uma grande atenção por parte da medicina, também uma rápida e certeira intervenção medicamentosa. Segundo Castiel, “a medicalização pode ser entendida como o processo pelo qual problemas que não são considerados de ordem médica passam a ser vistos como doenças ou problemas médicos. Isto pode ocorrer tanto em relação a condições naturais de vida, quanto em relação a desvios de comportamento, tais como tristeza, falta de atenção, alcoolismo, distúrbios alimentares e dificuldades na aprendizagem, dentre outros”.
O termo “medicamentalização” é um conceito criado para se referir ao controle médico da mente dos indivíduos operacionalizados por inúmeros recursos farmacológicos. “De forma bastante esquemática e alegórica, será cabível imaginar que seremos cada vez mais dirigidos pela produção de subjetividades constituídas por um peculiar grupo de protótipos em função da hiperprevenção terapeuticalizadora e de suas variantes, todos chefiados, claro, pelo homo oeconomicus do utilitarismo que estabelece as receitas corretas de busca autônoma da felicidade. Então teremos vários componentes de um esquadrão imaginário hiperpreventivo”.
Somos “reféns” de uma sociedade altamente entregue ao fenômeno da “medicamentalização do comportamento”. Problemas que antes eram tratados em sua complexidade e singularidade, hoje são apresentados como doenças, déficits ou transtornos. Uma vez classificado como “doente”, o indivíduo torna-se consumidor dos mais variados medicamentos, que visam “consertar” o suposto desvio. “Queremos crer que o termo medicamentalidade, subsumindo, implicitamente, a dimensão diagnóstica dentro de uma perspectiva de gestão securitária das populações baseada na racionalidade dos riscos poderia explicar melhor o panorama dominante em geral das práticas preemptivas medicamente definidas. Algo como a mentalidade médica que se torna abusiva ao propor tratamentos medicamentosos ampliados para além dos medicamentos usuais ao incluir, por exemplo, alimentação e atividade física como remédios. E, ainda, haveria o plusvalor da vantagem de abordar outras práticas extramédicas de saúde que mimetizam a perspectiva preventiva, diagnóstica, terapêutica, reabilitadora e prognóstica do saber biomédico”.
A partir das questões elencadas acima podemos sugerir um quadro interessante de questionamentos: Até que ponto a promessa de soluções rápidas para problemas como tristeza, medo e falta de atenção, por exemplo, pode ser realizada através da administração de medicamentos? Problemas como hiperatividade, síndrome do pânico, depressão e déficit de atenção são doenças causadas por questões biológicas ou desencadeadas por fatores sociais, como a violência nas grandes cidades e o estresse do dia a dia? A avaliação de cada caso deve ser sempre substituída pelo tratamento medicamentoso? A elaboração de tratamentos alternativos para tais problemas conseguiria fazer frente aos inúmeros medicamentos hoje oferecidos? Existe essa possibilidade? Eis um quadro de questões reflexivas que podem nos guiar na leitura do presente Caderno.
Luis David Castiel, no Cadernos IHU Ideias número 279, analisa a enorme influência da indústria farmacêutica sobre o modos de ser/estar dos sujeitos no mundo contemporâneo, pois segundo Castiel apesar de inegáveis benefícios farmacológicos dos medicamentos, é difícil sustentar uma postura de atenuar e relativizar a atuação poderosa e notadamente abusiva da indústria farmacêutica.
1. Introdução: o polvo e a dimensão tentacular da medicalização
2. Foucault e a busca da saudabilidade do rebanho
3. A medicamentalidade e a hiperprevenção securitária dos riscos
4. Arremate: O esquadrão hiperpreventivo
Luis David Castiel. Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil (1975), mestrado em Community Medicine pela University of London (1981), doutorado em Saúde Pública pelo Fundação Oswaldo Cruz (1993) e pós-doutorado pelo Depto. de Enfermeria Comunitaria, Salud Publica y Historia de la Ciencia da Universidade de Alicante, Espanha (2005). Atualmente é pesquisador titular do Depto. de Epidemiología e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.
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O mal-estar na cultura medicamentalizada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU