14 Abril 2013
“A saúde é uma condição desejada, mas que também se apresenta como um estado prescrito, uma posição ideológica e a instituição de preceitos morais”, diz o médico.
Confira a entrevista.
Apesar de os avanços tecnológicos serem visíveis nas práticas biomédicas, é importante “referir que há uma sedução específica das tecnologias de aprimoramento como instrumentos para supostamente produzir um projeto humano melhor para a humanidade”, adverte Luis David Castiel em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Segundo ele, na tentativa de controlar a vida, estamos vivendo “sob o regime da ética utilitarista onde todo o indivíduo tem direito a seus próprios prazeres e benefícios, arcando com seus custos. Há indícios que mostram a coexistência da responsabilidade pessoal com o consumo das tecnologias de aprimoramento em um contexto de riscos e incertezas. Assim, isso demanda que cada um deva ser planejador e gerente de sua vida (e, claro, de sua saúde) de maneira que, pelo menos em parte, devemos idealmente ser todos responsáveis pelo sucesso ou fracasso na vida”.
O uso das tecnologias na área da saúde, assinala, tem aspectos negativos e positivos, pois “não necessariamente se sujeitam ao que queremos que façam, até porque interferem com nossa subjetividade”. E acrescenta: “Mesmo correndo o risco de exagerar e cair numa caricatura, em muitos casos, parece que, para deixar seu mau estilo de vida, as pessoas podem ter de passar por um processo de conversão de um estado pecaminoso para um virtuoso, em busca de se redimir de suas falhas e fraquezas morais e se tornar outra pessoa – melhor”.
Luis David Castiel é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre Medicina Comunitária pela University of London, doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, e pós-doutor pelo Departamento de Enfermeria Comunitaria, Saúde Pública y Historia de la Ciencia da Universidade de Alicante, da Espanha. É pesquisador titular do Departamento de Epidemiología e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública e do Programa de Pós-graduação de Epidemiologia em Saúde Pública.
Castiel (foto abaixo) estará hoje, 15-04-2013, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, às 17h, ministrando a palestra “Como restringir seu apetite naturalmente – Os riscos e a promoção do autocontrole na saúde alimentar." O evento integra o I Seminário em preparação ao XIV Simpósio Internacional IHU a ser realizado em outubro de 2014.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Desde quando e por que a saúde passou a ser vista como um “produto de compra e venda”?
Luis David Castiel - Antes de tudo, cabe caracterizar que o termo “saúde” está repleto de complexidades que envolvem juízos de valor, hierarquias e pressupostos não explicitados. Na situação em foco, em termos esquemáticos, trata-se de encarar a saúde como mercadoria/serviço que se produz e se consome historicamente de diversas formas através de diferentes agentes, práticas e instituições públicas e privadas no âmbito da evolução mais recente do capitalismo. Nesse caso, importa especificar que o contexto atual do campo da saúde está marcado, seguindo a pesquisadora holandesa Annemarie Mol, pelas questões geradas pela tensão entre a lógica da escolha do consumidor e a lógica do cuidado de quem adoece, em tempos de neoliberalismo, ciência empiricista, práticas de gestão racional e eficácia instrumental. Para ela, tal tensão entre a lógica do cuidado e a lógica da escolha do paciente como consumidor se situa dentro do cânone neoliberal do direito supostamente autônomo de decidir e a liberdade de escolha no mercado quanto ao que consumir em nome da saúde.
IHU On-Line - O senhor afirmou recentemente que a saúde está se tornando o local de uma nova moralidade. Pode nos explicar essa ideia?
Luis David Castiel - A saúde é uma condição desejada, mas que também se apresenta como um estado prescrito, uma posição ideológica e a instituição de preceitos morais. Como exemplifica Jonathan Metzl, estes aspectos são passíveis de se apresentar, por exemplo, quando vemos alguém fumando um cigarro e assumimos o julgamento consagrado médica e epidemiologicamente de que "fumar faz mal à saúde". Isto se pode vir também acompanhado de outro juízo: "quem fuma pode não ser uma boa pessoa". Isso porque, mesmo sabendo que faz mal, não consegue escolher o correto para ela - que é parar de fumar. A partir daí, pode-se atribuir esta recalcitrância a alguma fraqueza de caráter, falta de força de vontade. Ou mesmo uma vez que se estabelece que o fumante sofre de um transtorno de adicção, deve ser tratado medicamente com antidepressivos específicos.
Sem considerar situações importantes de falta de opções à atenção de saúde ou formas restringidas por planos de saúde, as decisões que as pessoas que podem atuar como agentes consumidores tomam em relação às formas de levarem suas vidas em termos de saúde, hoje, em dia devem levar em conta sua liberdade de escolha e seu direito de decidir livremente no mercado – mas satisfazendo as premissas de a) poder atuar como agentes de consumo supostamente autônomos; e b) tomar decisões bem informadas pelos conhecimentos científicos disponíveis no sentido de manter a saúde e, mais adiante, a longevidade com vitalidade.
Seguindo o raciocínio anterior de Annemarie Mol, importa enfatizar que a lógica do consumidor simplifica a relação entre fins e meios. Se você escolher para onde ir e tiver condição de compra, as tecnologias são capazes de levá-lo a um lugar tecnologicamente definido. Para o bem e para o mal. Isso porque as tecnologias podem ser estranhas, pois não necessariamente se sujeitam ao que queremos que façam, até porque interferem com nossa subjetividade. Mesmo correndo o risco de exagerar e cair numa caricatura, em muitos casos, parece que para deixar seu mau estilo de vida, a pessoas pode ter de passar por um processo de conversão de um estado pecaminoso para um virtuoso, em busca de se redimir de suas falhas e fraquezas morais e se tornar outra pessoa - melhor...
Na lógica do consumidor, a boa decisão depende do balanço adequado de custos e benefícios dos cursos de ação – dentro de um modelo contábil, racional, calculável de prós e contras, ganhos e perdas. Na lógica do cuidado, o balanço é importante, mas não como custos e benefícios a partir de variáveis fixadas, controláveis, pois, em certa medida, neste caso, as variáveis são variáveis, não exatamente controláveis para cada caso. Algo acontece para além da planilha das contabilidades da saúde. Pergunta do lado da lógica do cuidado: como incluir tratamentos escolhidos criteriosamente para sua vida cotidiana particular sem afetar (muito) outras coisas que são particularmente singulares e importantes para cada pessoa? Ou será que o que realmente importa para cada um sofre inapelavelmente a influência poderosa dos valores da cultura contabilista racional dominante? É difícil responder a estas indagações. Mas elas se colocam se considerarmos que na lógica do consumidor, escolher implica que há responsáveis pela escolha, ou seja, existe a possibilidade de culpabilização pela falha - há uma esfera moral conjugada a ela. Já a lógica do cuidado não impõe culpa, convoca à dedicação insistente; a ação não provém de uma decisão moral. E importante: a lógica do cuidado não possui esfera moral separada.
IHU On-Line - Hoje se fala muito em propostas de prevenção à saúde, como alimentação saudável, prática de exercícios etc. Trata-se de uma boa maneira de evitar problemas de saúde futuros ou tais propostas apenas alimentam uma lógica mercantilista de saúde?
Luis David Castiel - Diante da pergunta formulada, creio que uma forma de conduzir a resposta para um rumo consequente é enfocar a questão crucial para a ideia de saúde que é posta pela nossa finitude. Segundo Zygmunt Bauman, as preocupações com longevidade e imortalidade são sintomas do medo primordial da morte como manifestações do espírito da época e que servem à mercadorização deste medo. Simplificadamente, as estratégias conhecidas para que se lide com o conhecimento da finitude seriam: a) construir pontes entre vida e morte através da promessa de vida eterna da alma; b) encenação cotidiana de mortes de pessoas desconhecidas (banalização), perdas dolorosas de pessoas próximas (com variação de vínculos afetivos) e, também há a morte metafórica pela separação amorosa; e c) mudança do o foco da atenção para vigilância e controle das causas de morte (riscos) e consumo de práticas que acenam para a longevidade que aparentemente parecem garantir mais tempo de vida terrena, que vamos nos deter.
Para além das fórmulas consideradas não racionais de vida celestial (pela virtude, através da alma imortal), de permanecer para a ‘posteridade’ (fama individual) – por atos heroicos ou reconhecimento público de outra ordem, agora existem narrativas morais que indicam que a razão tecnocientífica e o mercado poderão adiar o sofrimento e a morte ou, mesmo, nos salvar. A morte é desconstruída, sintonizada com o espírito da modernidade através da fatorização e vigilância constante em busca da prevenção integral dos riscos. Missão que tende a falhar diante dos seus inevitáveis limites - não é possível a prevenção efetiva de todos os riscos que possam vir a nos afetar. Possivelmente, nem mesmo de grande parte deles. Talvez, quem sabe, segundo alguns visionários, em um futuro não tão distante, seja possível que a tecnologia permita que nos fusionemos com artefatos e tecnologias de inteligência artificial e assim alcancemos uma peculiar forma de imortalidade... Claro, desde que possamos arcar com os custos deste empreendimento.
IHU On-Line - Quais os desafios postos à área da saúde diante da revolução tecnológica? Diante da revolução tecnológica, quais os ganhos e perdas para a área da saúde? Quais são as potencialidades e riscos da tecnociência contemporânea?
Luis David Castiel - No campo da saúde, são obviamente inegáveis as vantagens dos avanços tecnológicos nas práticas biomédicas. Em termos sintéticos, os recursos diagnósticos, clínicos, cirúrgicos e terapêuticos disponíveis são impressionantes e garantem efeitos benéficos para aqueles que têm acesso a eles.
Mas considero importante dizer que há uma sedução específica das tecnologias de aprimoramento (por exemplo, através da engenharia genômica, da farmacologia, das cirurgias plásticas, das neurociências) como instrumentos para supostamente produzir um projeto humano melhor para a humanidade. Mas qual seria este projeto? Os que tentam ocupar o lugar de consumidores têm a tendência de se ver situados como gestores de projetos de vida que são configurados, organizados, escolhidos, comparados com outros projetos e, enfim, devem ser vividos em sua imaginada plenitude em termos de autossatisfação. Isso talvez até seja uma possibilidade de interpretação realista quanto ao real significado subjacente à expressão popular “correr atrás do seu sonho”...
Estamos sob o regime da ética utilitarista, onde todo o indivíduo tem direito a seus próprios prazeres e benefícios, arcando com seus custos. Há indícios que mostram a coexistência da responsabilidade pessoal com o consumo das tecnologias de aprimoramento em um contexto de riscos e incertezas. Assim, isto demanda que supostamente cada um que possa deva ser planejador e gerente de sua vida (e, claro, de sua saúde) de maneira que, pelo menos em parte, devemos idealmente todos ser responsáveis pelo sucesso ou fracasso na vida (e na extensão de nossas vidas). Algo que pode trazer um grande peso cotidiano sobre as costas de cada um de todos nós e, eventualmente, consideráveis doses de mal estar para serem geridas ao longo da vida.
IHU On-Line - Em entrevista recente, o senhor disse que o papel mais importante da saúde pública é enfrentar e criticar o poder econômico altamente concentrado sob a forma de corporações que produzem medicamentos, equipamentos e alimentos. Como mudar essa lógica?
Luis David Castiel - Essa é uma pergunta que não cessa de se apresentar, muitas vezes trazendo implicitamente as enormes dificuldades de escapar desta lógica hegemônica. Em termos populares, representada pela expressão: “é assim e não tem jeito”. Para poder encaminhar a resposta diante das dificuldades de pensar em alternativas, vamos partir de um comentário do psicanalista e filósofo S. Zizek quando diz que, a rigor, dentro desta lógica temos pouquíssimas escolhas e que nossas sociedades nunca foram mais fechadas nelas mesmas do que hoje. Somos assediados com escolhas a (nos) consumir o tempo todo. Mas, na verdade, temos pouquíssimas opções reais. O cardápio está definido e não há alternativas fora dele. É pegar ou largar. Diante de nós, vale repetir, o grande modelo é o do sujeito liberal que se interessa por sua autossatisfação, que deve ser acompanhada por uma conduta de pura sobrevivência, sem qualquer senso de compromisso histórico. Neste momento, se coloca a necessidade de confrontar as obscenidades e cinismos naturalizados deste capitalismo global que se transformou na realidade que nos rodeia e define nossas categorias de análise, além de influenciar nossa subjetividade. Então, aqui, importa pensar numa transformação da imaginação ético-política. Um empenho neste sentido é o de politizar a ética de modo a problematizar e procurar reduzir o vigor naturalizante da padronização normativa dual hegemônica que gera uma tensão paradoxal entre poderosas demandas e pressões no sentido dos imperativos das exigências de autossatisfação pré-moldada. E, ao mesmo tempo, tendo que lidar com a insistência das múltiplas narrativas de autocontrole, moderação, restrição - que sustentam o “sonho-meta” da ampliação ao máximo que as tecnologias podem proporcionar atualmente em busca da longevidade com vitalidade. Infelizmente, esta expectativa aumenta consideravelmente os teores cotidianos de ansiedade a este respeito. Paradoxo revelado com senso de humor por Woody Allen: “você pode viver para chegar aos cem anos se você desistir de todas as coisas que fizeram você querer viver até os cem anos.”
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Saúde e tecnologia. A busca da imortalidade. Entrevista especial com Luis David Castiel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU