27 Outubro 2018
Revivendo a relação profana da América Latina entre economia de mercado e autoritarismo político.
O artigo é publicado por The Economist, 27-10-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Em julho, numa convenção de seu pequeno e mal nomeado Partido Social Liberal, Jair Bolsonaro revelou quem seria seu principal ministro. Paulo Guedes, um economista que prega o livre mercado, formado pela Universidade de Chicago, fez por onde para convencer os empresários brasileiros de que Bolsonaro pode ser confiável para o futuro do país, apesar de seus insultos a mulheres, negros e gays, seu carinho retórico pela ditadura militar e sua forte tendência à economia liberal. Na convenção, Guedes elogiou Bolsonaro por representar a ordem e a preservação da vida e da propriedade. Sua própria entrada na campanha significa "a união da ordem e do progresso", acrescentou.
Com base nessas expectativas, o que tudo indica é a eleição de Bolsonaro, um ex-capitão do Exército, para ser o novo presidente do Brasil no segundo turno das eleições que irá ocorrer no dia 28 de outubro, próximo domingo. Uma pesquisa do Ibope dá a ele cerca de 52% dos votos e 37% para Fernando Haddad, seu oponente do Partido dos Trabalhadores (PT). 9% dos entrevistados disseram que iriam se abster. Bolsonaro se beneficiou de um clima de desespero público em relação à crescente criminalidade, corrupção e uma crise econômica causada pelos erros do PT.
No slideshow apresentado na ocasião, Bolsonaro promete "um governo liberal democrático". Certamente, Guedes defende algumas medidas econômicas com esse viés. Ele propõe reduzir a inflação através de privatizações e cortes de gastos públicos, desfazer assim a burocracia do país.
No entanto, as palavras de Bolsonaro não costumam ser nem liberais nem democráticas. Ele se posiciona pela "ordem", mas não pela lei. Ele incita a polícia a matar criminosos, ou aqueles considerados suspeitos. Não tem uma abordagem liberal em relação ao bem público nos seus planos de favorecer os agricultores sobre o meio ambiente e retirar o Brasil do Acordo de Paris sobre a mudança climática.
Enquanto Guedes propõe uma desregulamentação econômica, Bolsonaro quer a re-regulamentação moral. Ele promete “defender a família”; “defender a inocência das crianças na escola” contra uma por ele alegada propaganda homossexual, além de se opor ao aborto e à legalização das drogas. Como congressista, propôs o controle da natalidade para os pobres. Além disso, considera os generais que tomaram o poder como ditadores no Brasil em 1964 e que governaram por duas décadas como “heróis”. Em julho, um de seus filhos, Eduardo Bolsonaro, que é deputado federal, disse que “um soldado e um cabo seriam suficientes para fechar a suprema corte”. O candidato se distanciou desses comentários "emocionais", dizendo que "o tribunal é o guardião da constituição".
A combinação de autoritarismo político e economia de livre mercado não é nova no Brasil ou na América Latina. Na verdade, a frase de Paulo Guedes na convenção, relembra a história do pensamento latino-americano quando as noções de liberdade econômica e política romperam. "Ordem e progresso" é o slogan estampado na bandeira do Brasil. Não há menção de “liberdade” ou “igualdade”. O slogan foi idealizado quando o Brasil se tornou uma república em 1889 sob a influência do positivismo, um conjunto de ideias associadas a Auguste Comte, filósofo francês. Os positivistas acreditavam que o governo, por uma elite “científica” de alto nível, poderia trazer sociedades industriais modernas sem violência ou luta de classes.
O positivismo era pouco mais que uma nota de rodapé na Europa. Por outro lado, foi extremamente influente na América Latina, especialmente no Brasil e no México. Combinou uma preferência por um governo central forte, aliado a uma concepção da sociedade como um coletivo hierárquico, em vez de uma aglomeração de indivíduos livres. O positivismo sabotou o liberalismo e sua crença de que o progresso viria da liberdade política e econômica para os indivíduos, justamente quando isso parecia ter se tornado a filosofia política triunfante na região a partir da segunda metade do século XIX.
Segundo Charles Hale, historiador, o positivismo transformou o liberalismo num “mito de fundação” das repúblicas latino-americanas. Deveria ser de inspiração para as constituições, mas ignorado na prática política. Em um sentimento ao qual Bolsonaro poderia seguir, Francisco G. Cosmes, um positivista mexicano, afirmou em 1878 que, em vez de “direitos”, a sociedade preferia “pão, segurança, ordem e paz”.
Essa separação entre as ideias de liberdade política e econômica na América Latina foi em parte uma consequência da dificuldade da região em criar economias de mercado prósperas e democracias estáveis baseadas na igualdade de oportunidades. Também tem sido uma das causas do atual fracasso.
O liberalismo estava voltado para mudar sociedades marcadas por grandes desigualdades raciais e sociais, herdadas do colonialismo ibérico, especialmente na zona rural da América Latina. Os liberais aboliram a escravidão e a servidão formal a que os índios foram submetidos nos Andes e no México. Mas o campo permaneceu polarizado entre proprietários de latifúndios e trabalhadores contratados. André Rebouças, líder do movimento para abolir a escravidão no Brasil (que aconteceu apenas em 1888), previa uma “democracia rural” resultante da “emancipação do escravo e sua regeneração através da propriedade de terra”. Algo que nunca aconteceu.
Os positivistas rejeitaram a crença liberal para todos os cidadãos e absorveram o "racismo científico" e o darwinismo social que era tendência na Europa do final do século XIX. Eles viram uma solução para o atraso latino-americano na imigração de trabalhadores brancos vindos da Europa, o que inicialmente impediu um aumento nos salários rurais para ex-escravos.
Os positivistas dirigiam a república brasileira foram humilhados por uma rebelião na década de 1890 por um pregador monarquista em Canudos, no interior da Bahia, no nordeste. Foram necessárias quatro expedições, a última envolvendo 10 mil soldados e artilharia pesada para derrubar a resistência em Canudos. Ao final, foram 20 mil mortos (alguns dos defensores tiveram suas gargantas cortadas após a rendição).
Euclides da Cunha, um positivista oficial do Exército que se tornou jornalista para cobrir esses eventos, escreveu em “Os Sertões” - que se tornou um dos livros mais conhecidos do Brasil -, que “a campanha militar seria “um crime” se não fosse seguida por uma “constante, persistente e teimosa luta pela educação” para atrair esses “rudes e atrasados compatriotas .... a nossa causa nacional”.
Essa foi uma resposta liberal de um escritor positivista. Algo que novamente não aconteceu. Veteranos da campanha de Canudos montaram as primeiras favelas do Rio de Janeiro, que logo foram preenchidas com migrantes do nordeste. Seus descendentes podem acabar sendo vítimas do incentivo de Bolsonaro à violência policial.
O liberalismo nunca teve fim na América Latina, mas no século XX, muitas vezes foi vencido. Com a industrialização e a influência do fascismo europeu, o positivismo se transformou em corporativismo, no qual a liberdade econômica rendeu à organização da economia do Estado, bem como à sociedade, em unidades funcionais não concorrentes (sindicatos e organizações patronais, por exemplo). O corporativismo, com o poder concedido a funcionários de todos os tipos, atraiu muitos militares da região.
Isso ficou claro quando muitos países sofreram ditaduras nas décadas de 1960 e 1970. O regime militar brasileiro adotaria intermitentemente o liberalismo econômico, especialmente sob o amparo de Mário Henrique Simonsen, um brilhante economista (e um dos tutores de Guedes). Ele tentou, por duas vezes, impor reduções fiscais e monetárias para conter a inflação. Seu adversário foi Antônio Delfim Netto, que favoreceu a expansão por meio de dívidas e inflação, o que custaria ao Brasil uma "década perdida" nos anos 1980.
A ditadura que Bolsonaro tanto admira ignorou o pedido de Euclides da Cunha. Assim, deixou aos líderes civis um país em que um quarto das crianças entre os sete e os 14 anos não frequentava a escola. Somente no atual período democrático, sob a constituição de 1988, o Brasil alcançou a educação primária universal e a educação secundária em massa.
A exceção ao corporativismo militar foi a ditadura pessoal do General Augusto Pinochet no Chile, de 1973 a 1990. Pinochet sentiu, com razão, que o corporativismo exigiria que ele compartilhasse o poder com seus colegas militares. Em vez disso, ele convocou um grupo de economistas civis, apelidados de “Chicago Boys”, já que vários estudaram na Universidade de Chicago, onde a economia liberal de Friedrich Hayek e Milton Friedman dominava.
Os Chicago Boys aplicaram esses princípios no Chile, cuja economia havia sido destruída pela irresponsabilidade de Salvador Allende, um socialista democrata derrubado por Pinochet. Seu programa acabaria por estabelecer as bases para o Chile se tornar a economia mais dinâmica da América Latina na virada do século. Contudo, era semelhante a uma importante operação por tentativa e erro e sem anestesia. Eles reduziram as tarifas de importação e o déficit fiscal, que caiu de 25% do PIB em 1973 para 1% em 1975. Outra medida foi a privatização de centenas de empresas, sem levar em consideração a concorrência ou a regulamentação. Preocupados com a demora da queda da inflação, estabeleceram uma taxa de câmbio fixa e supervalorizada. O resultado de tudo isso foi que a economia passou a ser dominada por alguns conglomerados, fortemente endividados em dólares e centrados nos bancos privados.
Em 1982, após um aumento nas taxas de juros nos Estados Unidos, o Chile não pagou suas dívidas e a economia despencou. A pobreza alcançou 45% da população e a taxa de desemprego aumentou para 30%. Pinochet finalmente abandonou os Chicago Boys e se voltou para economistas mais pragmáticos, cujas políticas contribuíram para a prosperidade do Chile pós-ditadura.
Algo semelhante aconteceu no Peru sob a presidência de Alberto Fujimori, que governou de 1990 a 2000. Ele enviou tanques para fechar o Congresso e promover um programa econômico radical de livre mercado. Mais uma vez, isso lançou as bases para uma economia dinâmica, operação que teve altos custos. O regime de Fujimori engajado na corrupção sistemática e sua destruição do sistema partidário, e da independência judicial tiveram consequências que ainda estão sendo sentidas. Na Guatemala e em Honduras, o libertarianismo contra o estado de Hayek levou a distopias das quais os cidadãos migram em massa para escapar de governos fracos, incapazes de fornecer segurança pública ou de encorajar oportunidades econômicas.
Bolsonaro é fã de Pinochet, e afirma que o ex-presidente do Chile "fez o que tinha de ser feito" - isso incluiu a morte de cerca de 3 mil opositores políticos e a tortura de dezenas de milhares. Paulo Guedes lecionou na Universidade do Chile na década de 1980, quando o reitor de sua faculdade de economia era o diretor de orçamento de Pinochet. O economista visa um imposto de renda simples, uma medida libertária, mas não liberal. (Adam Smith, o pai da economia liberal, favoreceu um imposto progressivo).
Então o Brasil está tomando uma dose de pinochetismo? Bolsonaro não é o comandante do exército. Na verdade, foi retirado do exército por indisciplina em 1988. Ele não é liberal convincente. No fundo, é um corporativista. Como deputado há 27 anos, repetidamente votou contra a privatização e a reforma previdenciária, e a favor aumento dos salários dos funcionários públicos.
Muitas das propostas de Guedes são vagas, embora sensatas, tais como a redução do déficit e da dívida pública e a reformulação dos gastos públicos. Muitas de suas propostas de privatizações são necessárias. Como ele disse à revista Piauí, “o Brasil é o paraíso para quem busca aluguel e o inferno para empreendedores”. Ele luta justamente pelo oposto. Mas em muitas dessas propostas, Bolsonaro pode ser seu oponente. Dessa forma, Guedes pode não durar muito tempo no ministério da economia.
Sob uma presidência de Bolsonaro, o Brasil poderia esperar por uma reforma econômica e de crescimento mais acelerado, além de um presidente que mantivesse seus impulsos autoritários. Mas há muitos riscos. Talvez o maior seja a democracia iliberal na qual as eleições continuam, mas sem prática do governo democrático com suas restrições e regras de justiça.
Isso poderia acontecer se uma presidência de Bolsonaro descambasse num conflito permanente, tanto dentro do próprio governo, quanto com uma oposição inflamada pelas agressões verbais de Bolsonaro. Frustrado, ele poderia atacar a legislatura e os tribunais. Separar a liberdade econômica da política como uma solução ao desenvolvimento, algo que raramente acontece na América Latina, onde a demanda por um governo forte sempre competiu com um persistente desejo de liberdade.
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Jair Bolsonaro e a perversão do liberalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU