20 Outubro 2018
O ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1980, Adolfo Pérez Esquivel, referência dos direitos dos povos latino-americanos, pediu que a Igreja católica brasileira tenha um papel mais ativo para evitar uma vitória do direitista Jair Bolsonaro que provocaria “um obscurantismo” na região.
A entrevista é de Hernán Reyes Alcaide, publicada por Religión Digital, 18-10-2018. A tradução é de André Langer.
Além disso, em uma entrevista exclusiva concedida ao Religión Digital durante a sua visita a Roma para participar da canonização de dom Romero, ele denunciou o avanço das Igrejas evangélicas “que apoiam a violência” no gigante sul-americano e ressaltou a figura do Papa Francisco: “É a única voz que se levanta diante do avanço do deus dinheiro”.
O que significa a canonização de dom Romero para a América Latina?
Reivindicar dom Romero é um fato de Justiça. Não apenas como um cristão que deu a vida para dar vida, como um mártir da Igreja latino-americana, mas também perante a sociedade. É reivindicar um salvadorenho que lutou pela dignidade de seu povo, porque muitas vezes o reivindicamos como cristãos, mas isso é frente a uma sociedade na qual foi mal interpretado e castigado, acusado de muitas coisas. A canonização de Romero é também uma reparação histórica, de um povo que sofreu uma ditadura, a perseguição e a morte.
A perda de Romero foi um grande impacto, porque foi uma voz profética para o povo latino-americano em um momento tão tremendo e particular. Falei com ele dois dias antes de o matarem: telefonei para ele de Barcelona porque pensava em encontrá-lo e lhe disse que tinha de adiar a visita. E no dia 24 de março soube que o mataram. Falei sobre este tema com Francisco no primeiro encontro que tivemos depois que foi eleito papa: era muito necessário retirá-lo das gavetas, porque foi muito mal compreendido também dentro do Vaticano.
Além disso, se deu no mesmo dia em que Paulo VI foi elevado aos altares.
A canonização conjunta de Paulo VI e Romero mostra quão importante foi o Concílio Vaticano II, com essa proposta de retornar às fontes da Igreja. Na América Latina, isso tomou forma em Medellín, que foi como uma sacudida para a Igreja latino-americana. Os teólogos começam a ver que o Evangelho é libertador... das pessoas, mas também das estruturas da Justiça. Começou uma visão totalmente nova dentro da Igreja: caminhar com e junto com o povo. Os príncipes da Igreja descem e se transformam em pastores a partir daí.
E teve que vir um papa latino-americano para fazer isso.
Há uma continuidade dos três como pessoas-chave do Concílio Vaticano II: Paulo VI, Romero e Francisco. Devemos recordar que o “Pacto das Catacumbas”, essa convocatória de Hélder Câmara, que reúne muitos irmãos que se congregavam ali. Aí está viva essa força de caminhar e viver o Evangelho no coração de nossos povos.
É uma mensagem que parece mais do que necessária na América Latina de hoje.
Atualmente, já não temos mais as ditaduras militares que sofremos e sobrevivemos a elas. Hoje, temos a ditadura do mercado. Os poderes econômico e político estão relegando a pessoa humana, os povos, a segundo plano. Os direitos dos povos devem estar contemplados como um passo além do que foi concebido na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
E o que Francisco simboliza nesse contexto?
Francisco consolida-se como a única voz que fala a essa realidade, na qual parece que para muitos existe um deus verde, o dólar, e todo o resto desaparece da consciência.
A prisão do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva enquadra-se nessa definição de “ditadura do mercado”?
Lula está preso por ter tirado mais de 36 milhões de pessoas da extrema pobreza, e o acusam de um crime que não cometeu. Até o juiz Moro disse que não tem elementos jurídicos para prendê-lo, além de sua suposição. E esse tipo de comportamento é acompanhado por outros juízes, uma desvalorização da Justiça que coloca os valores do mercado na frente dos valores da pessoa humana e dos direitos dos povos.
Aqui há uma responsabilidade dos Estados Unidos, que antes implantaram as ditaduras militares, e agora o que fazem, que começou com o ensaio piloto da derrubada de Manuel Zelaya em Honduras, é continuar a dominação continental, que nos leva a uma re-colonização pela política de ajustes e privatizações.
No Brasil, a poucos dias do segundo turno das eleições, há uma forte presença de grupos evangélicos muito alinhados com o candidato da direita, Jair Bolsonaro.
Há Igrejas evangélicas que estão apoiando a violência bolsonarista no Brasil. E há outras que têm um forte senso do ecumenismo. Com elas devemos desenvolver uma campanha de valores, de conscientização. Dói, como cristão, ver o que está acontecendo no Brasil. Temos que fazer a memória, não para ficar no passado, mas para iluminar o presente. E eu me lembro que durante o governo de Ronald Reagan, que criou um instituto de Igreja e Democracia para a penetração dessas Igrejas evangélicas na América Latina. A religião alienante. Como essas Igrejas penetram e fazem uma evangelização individualista, muito ligada à prosperidade econômica. E entraram na América Latina com muito dinheiro, com promessas de coisas materiais a quem entrava. Essas igrejas prejudicam as identidades, o sentido do ecumenismo.
O que uma vitória do Bolsonaro pode significar?
A vitória do Bolsonaro pode representar um perigo muito grande não apenas para o povo brasileiro, mas para o continente. Hoje temos, se fizermos uma leitura continental, Manuel López Obrador no México, mas não pode ficar isolado. Há uma destruição de quase todos os governos progressistas.
O Bolsonaro vai causar muito estrago ao Brasil porque voltam a surgir o que podem ser as consequências dos governos autoritários, com menos direitos cidadãos, em nome da segurança. Esperamos que o povo brasileiro tome consciência; do contrário, vai haver um obscurantismo e um estrago muito forte. A democracia é uma construção coletiva e é sempre passível de aperfeiçoamentos.
E a Igreja católica?
As Igrejas evangélicas com ideias superadoras e a Igreja católica devem levantar sua voz. Não acredito que a Igreja não se mete na política. A Igreja sempre fez política, da boa e da outra. A Igreja precisa ter uma presença ativa. Tem que estar presente. E não ficar de um lado, tangencial aos problemas da vida do povo do Brasil e da América Latina. E por isso é importante reviver Medellín, Puebla e Aparecida. Devemos retornar às fontes e ter uma presença junto aos povos.
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“A Igreja católica brasileira deve levantar a voz contra o Bolsonaro”. Entrevista com Adolfo Pérez Esquivel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU