28 Agosto 2018
"A reforma da Igreja, que já é evidente nas palavras e no testemunho de Francisco, pode estar começando, mas não vai parar na renovação da Cúria do Vaticano e do clero. Também envolve uma reforma completa dos leigos, já que alguns cânceres que os cardeais o elegeram para serem confrontados em Roma se espalharam por todo o povo de Deus. Isso só vai acontecer com uma enorme mudança de mentalidade de todo o povo de Deus" escreve Thomas Rosica, C.S.B., padre basiliano, CEO da fundação Salt and Light Catholic Media e da Television Network no Canadá, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 23-08-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Bispos e sacerdotes participam da missa celebrada por Papa Francisco para marcar a festa de São Pedro e São Paulo na Praça de São Pedro, no Vaticano, dia 29 de junho. (Foto: CNS/Paul Haring)
Com a continuidade das tentativas de apontar o dedo e culpar outras pessoas ou grupos pela enorme crise na Igreja, e muitos líderes religiosos, especialistas, muitos que afirmam ser teólogos e católicos irritados e indignados, com razão, fazem diagnósticos sobre o atual estado trágico da situação da Igreja, surgem muitas teorias. Para algumas mentes mal informadas, a atual crise de abuso é causada pela obrigatoriedade do celibato para sacerdotes de rito latino, membros homossexuais do clero e do episcopado, alcoólatras, bispos dispostos a renunciar, etc. No entanto, há uma estrondosa palavra que muitos evitam falar: o mal do clericalismo que está na raiz da crise.
Temos o direito dado por Deus de ficar com raiva diante da situação atual, mas não temos direito ao desespero. Devemos estar em total solidariedade com as vítimas, arrependermo-nos, jejuar, orar e trabalhar juntos para uma verdadeira limpeza do templo — da Igreja. Devemos orar para que nossa raiva e frustração não nos levem ao desespero, mas a um profundo testemunho de fé, principalmente em tempos tão difíceis. Não nos basta simplesmente se sentir mal pela situação e dizer que lamentamos. Precisamos desmantelar de forma definitiva as estruturas e sistemas que permitiram que tal catástrofe moral se apoderasse da Igreja. E estas estruturas incluem o processo de nomeação de bispos e de cardeais. Enquanto os níveis mais elevados da Igreja nomearem este grande mal do clericalismo e não livrarem a Igreja dele, não conseguiremos ir adiante. Na carta ao "Povo de Deus", publicada em 20 de agosto, o Papa Francisco se atreve a citar este mal:
É impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus. Além disso, toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas. Isto se manifesta claramente num modo anômalo de entender a autoridade na Igreja - tão comum em muitas comunidades onde ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência - como é o clericalismo, aquela “atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo”.
O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo.
Tendo trabalhado com o Vaticano em vários projetos, de grande e pequeno porte, ao longo dos últimos anos e tendo a oportunidade de pregar em retiros para muitos grupos de bispos nos Estados Unidos, no Canadá e na Irlanda, muitas vezes ouvi críticas a Francisco por parte dos bispos pelas frequentes repreensões contra o clericalismo. Não foram poucos os bispos que me disseram: "Diga ao Papa para baixar o tom para falar contra o clericalismo e quando for duro com os padres e seminaristas". Saí de muitos desses encontros convencido de que em vez de "baixar o tom" o Papa deveria aumentar suas advertências contra o clericalismo. Francisco é sábio e sabe exatamente do que fala. Estamos perante o que está no cerne da crise atual: clericalismo, corporativismo e um sistema corrupto de favoritismo e um terrível omertà que infectou gravemente a Igreja.
Em seu discurso aos cardeais no conclave da mudança, no dia 7 de março de 2013, quatro dias antes da eleição para a Sé de Pedro, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio identificou o que acredita ser a doença fundamental da Igreja: o narcisismo eclesiástico.
"Quando a Igreja não sai para evangelizar", disse, "ela volta-se para si mesma e fica doente". Essa Igreja introspectiva, curvada sobre si mesma, obcecada com sua própria imagem, que não olha para Cristo o suficiente nem reflete sua pessoa, sua luz e seu amor aos que andam na escuridão, rapidamente sucumbe ao que ele considerou o pior dos males: um “mundanismo espiritual... vivendo em si mesma, por si mesma, para si mesma".
Para Francisco, é a corrupção estrutural da Igreja que precisa ser reformada. Na época, o futuro Papa afirmou o que viria a ser sua própria missão ou plataforma no final da sua curta intervenção naquela manhã de sexta-feira, no Salão do Sínodo do Vaticano: "o próximo Papa", declarou, deve ser um homem que, "a partir da contemplação e da adoração de Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si para atingir os que estão nas periferias existenciais”. Esse êxodo espiritual, segundo Francisco, é a conversão fundamental de que a Igreja precisa — para a qual ele quer levar não apenas sacerdotes e funcionários da Cúria, mas também os leigos.
Em uma entrevista de 2011 a uma agência de notícias católica da Argentina, o então cardeal Bergoglio disse que esta doença espiritual contagiosa vem de um clericalismo que passa do clero para os leigos.
Nós, padres, temos a tendência de clericalizar os leigos. Nós não percebemos, mas é como se os infectássemos com nossa própria doença. E os leigos — não todos, mas muitos — nos pedem de joelhos para clericalizá-los, porque é mais confortável servir no altar do que protagonizar um caminho para os leigos. Não podemos cair nessa armadilha — é uma cumplicidade pecaminosa.
Clericalizar-se significa concentrar-se fundamentalmente em aspectos do clero e, mais especificamente, o santuário, em vez de disseminar o Evangelho ao mundo. O clericalismo infecta o clero ao deixá-lo excessivamente centrado em si mesmo, em vez de centrar-se no seu caráter missionário. Mas aflige ainda mais os leigos, quando passam a acreditar que o serviço fundamental que Deus pede é que eles se tornem grandes doadores, destinatários das honras papais, "ministros da hospitalidade", leitores ou ministros extraordinários da Eucaristia na Igreja, em vez de viver e difundir a fé no local de trabalho, escolas, famílias, bairros e lugares onde nós, padres, não podemos entrar.
A reforma de que se precisa criticamente, acrescentou o cardeal Bergoglio na entrevista, não passa por "clericalizar nem por pedir para ser clericalizado. O leigo é leigo e tem de viver como leigo com o poder do batismo, que permite que seja o fermento do amor de Deus na própria sociedade, criando e semeando a esperança, proclamando a fé, não a partir do púlpito, mas na vida cotidiana. E, como todos nós, o leigo é chamado a carregar sua cruz diária — a cruz do leigo, não do sacerdote." O clericalismo aflige muitos leigos católicos hoje em dia. Ainda que as reformas do Concílio Vaticano II tenham tido grandes esforços para erradicar o clericalismo, parte nunca morreu, e há uma nova onda viva na Igreja hoje.
Os ministros ordenados e os leigos apresentam clericalismo. Se pudermos aprender alguma coisa com a crise atual que a Igreja está enfrentando, a reforma, a cura, a renovação deve vir de cada membro da Igreja, principalmente leigos e leigas comprometidos por batismo a ser sal e luz, fermento e esperança, agentes de renovação e testemunhas de esperança. Como membros da Igreja, temos de afirmar de uma vez por todas que o nepotismo não tem vez entre nós. Mas esse favoritismo não se restringe aos ordenados ou aos membros da Igreja, como ocorre nas associações e grupos seculares, como a academia, os estabelecimentos médicos e jurídicos e os agentes de segurança pública — a polícia e os militares. Quaisquer órgãos internos e conventos que respondam apenas a si mesmos, sem transparência, honestidade e responsabilidade, estão destinados ao fracasso ou à indiferença.
Na homilia diária da Casa Santa Marta, sua residência, Francisco fala frequentemente sobre clericalismo. É um caminho percorrido por aqueles que, ao contrário do bom pastor, preocupam-se com dinheiro e poder e não com as pessoas negligenciadas e em sofrimento. ... Ao contrário do bom pastor, que está sempre por perto e emociona-se com os que sofrem, os clérigos que criticaram Jesus talvez se preocupassem mais com "quando o serviço religioso acabaria para verem quanto dinheiro foi arrecadado", disse o Papa.
Bons pastores como Jesus, que "não têm vergonha de tocar a carne ferida" do sofrimento, são uma "graça do povo de Deus" e um lembrete de que "não só eles, mas também nós, seremos julgados" acerca de como tratamos os famintos, os doentes e os presos, declarou.
A reforma da Igreja, que já é evidente nas palavras e no testemunho de Francisco, pode estar começando, mas não vai parar na renovação da Cúria do Vaticano e do clero.
O primeiro papa do sul global escreveu que não é possível falar sobre os leigos ignorando "um dos piores problemas que a América Latina enfrenta — e para o qual peço especial atenção: o clericalismo". Francisco pediu para os padres católicos da América Latina lembrarem que servem aos leigos, e não o contrário, descrevendo o clericalismo como um dos principais desafios da Igreja. Ele também acusou a hierarquia católica de seu continente natal de gerar uma "elite leiga" formada pelos que trabalham nos "assuntos da Igreja", em vez de ajudar pessoas batizadas comuns a viver sua fé em situações cotidianas.
"Lembro a famosa expressão: 'É a hora dos leigos', mas parece que o relógio parou", disse Francisco. "Ver o povo de Deus é lembrar que todos nós entramos na Igreja como leigos".
"O pastor nunca deve dizer aos leigos o que têm de fazer ou dizer [na vida pública], eles sabem tão bem ou até melhor do que nós", escreveu Francisco na mensagem de março de 2016 ao cardeal canadense Marc Ouellet, que lidera a Congregação para os Bispos do Vaticano e também é presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina.
O clericalismo, escreveu o Papa, "anula a personalidade dos cristãos" e também "leva à funcionalização dos leigos, tratando-os como 'moços [ou moças] de recado'".
"Nosso papel, nossa alegria, a alegria do pastor é justamente ajudar e estimular, como muitos antes de nós fizeram, para que as mães, as avós, os pais tornem-se os verdadeiros protagonistas da história", observou.
Ajudar os leigos a se tornarem os verdadeiros protagonistas, disse, não é "uma concessão da nossa boa vontade", porque é "direito" deles.
"Os leigos fazem parte do povo santo e fiel de Deus e, por isso, são os protagonistas da Igreja e do mundo, a quem somos chamados a servir - e não por quem devemos ser servidos", afirmou Francisco.
O Papa avisou a hierarquia contra a tentação de acreditar que um "leigo comprometido" é o que faz o trabalho da Igreja ou resolve assuntos da paróquia ou diocese. A Igreja, mencionou, deve reconhecer o leigo "por sua própria realidade, sua própria identidade, por estar imerso no coração da vida social, pública e política”.
Durante uma reunião a portas fechadas dos 120 superiores de ordens religiosas, que se reuniram no Vaticano para uma assembleia no final de 2013, Francisco fez declarações potentes contra o clericalismo aos líderes da vida consagrada. O jornal jesuíta La Civiltà Cattolica divulgou um relatório da sessão informal de perguntas, que durou três horas.
O Papa advertiu que a formação do seminário deve ser "uma obra de arte, não uma ação policial", onde os seminaristas "cerram os dentes, tentem não cometer erros, seguir as regras sorrindo muito, só esperando o dia em que vão dizer a eles: 'Bom, a formação chegou ao fim'".
Para Francisco, "isso é hipocrisia resultante do clericalismo, que é um dos grandes males". Ele foi ainda mais enfático ao observar que a formação sacerdotal "deve formar o coração. Caso contrário, estamos criando monstrinhos. E depois esses monstrinhos moldam o povo de Deus. E isso realmente me deixa arrepiado."
A reforma da Igreja, que já é evidente nas palavras e no testemunho de Francisco, pode estar começando, mas não vai parar na renovação da Cúria do Vaticano e do clero. Também envolve uma reforma completa dos leigos, já que alguns cânceres que os cardeais o elegeram para serem confrontados em Roma se espalharam por todo o povo de Deus. Isso só vai acontecer com uma enorme mudança de mentalidade de todo o povo de Deus.
No fim de semana passado, fui convidado pela minha comunidade religiosa — os padres basilianos — para ajudá-los com um chamado a missão em uma paróquia no norte da Filadélfia. A data e o local foram escolhidos meses atrás — antes dos terríveis eventos dos últimos meses. Cheguei a uma pequena paróquia no sábado para presidir e pregar em quatro missas para uma comunidade pequena e diversificada de idosos italianos, americanos e hispânicos recém-chegados de uma série de países da América Latina.
Quando percebi que ia para o "marco zero" da Pensilvânia, fiquei assustado. O que diria a várias congregações de pessoas que não conhecia em um momento tão crítico da nossa vida eclesiástica e da deles? O pastor da paróquia sugeriu que eu não falasse sobre a situação dos casos de abuso, pensando que já se tinha resolvido muitos anos antes! Eu discordei e decidi falar da situação atual nas homilias sobre quando Jesus satisfez a fome e a sede da família humana. Que bom que fiz isso. Após cada missa, muita gente me abordou e agradeceu por não ter me esquivado da atual confusão na Igreja, e por ter pedido para que as pessoas se tornassem parte da solução por sua dependência de Jesus, que está no barco conosco. Ouvi algumas histórias muito poderosas dessas pessoas depois de cada missa.
Após a missa de sábado à noite, um casal que assistiu a missa me convidaram para jantar com eles. Durante a refeição, o homem me disse que tinha sido vítima de abuso: "Não fui abusado por nenhum padre ou bispo, mas por um profissional de saúde". Ele compartilhou comigo sua história chocante. O agressor está na cadeia, depois de ter abusado de várias outras vítimas também." O homem me agradeceu por ter ouvido e disse que eu o ajudei de longe — pela internet — a permanecer perto de Cristo na Igreja.
Francisco concluiu a carta ao povo de Deus com as seguintes penetrantes palavras:
É imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas, clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de assistir e cuidar dos mais vulneráveis. Peçamos perdão pelos pecados, nossos e dos outros. A consciência do pecado nos ajuda a reconhecer os erros, delitos e feridas geradas no passado e permite nos abrir e nos comprometer mais com o presente num caminho de conversão renovada.
Da mesma forma, a penitência e a oração nos ajudarão a sensibilizar os nossos olhos e os nossos corações para o sofrimento alheio e a superar o afã de domínio e controle que muitas vezes se torna a raiz desses males. Que o jejum e a oração despertem os nossos ouvidos para a dor silenciada em crianças, jovens e pessoas com necessidades especiais. Jejum que nos dá fome e sede de justiça e nos encoraja a caminhar na verdade, dando apoio a todas as medidas judiciais que sejam necessárias. Um jejum que nos sacuda e nos leve ao compromisso com a verdade e na caridade com todos os homens de boa vontade e com a sociedade em geral, para lutar contra qualquer tipo de abuso de poder, sexual e de consciência.
Francisco já começou o êxodo que vai levar a esta reforma, nos dando o exemplo de como ir até as periferias da existência humana e construindo o caminho que temos pela frente. Será que vamos seguir?
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Só será possível ir adiante quando identificarmos o mal do clericalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU