31 Agosto 2016
Guzmán Carriquiry está preparando uma convenção de alcance continental, que ocorrerá em Bogotá, Colômbia, entre os dias 27 e 30 de agosto, organizada conjuntamente com a Pontifícia Comissão para América Latina (CAL) e o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), em colaboração com os Episcopados dos Estados Unidos e Canadá.
É um evento de grande importância que se repete nos anos do papa Francisco, que já gravou uma vídeo-mensagem, com mais de 30 minutos, para o mesmo. Farão parte delegações representativas das 22 Conferências Episcopais da região latino-americana e foi confirmada a presença de prelados da Cúria Romana e de organismos de solidariedade eclesiais que estão presentes na América Latina, apoiando muitos projetos e iniciativas nacionais e diocesanas.
O Congresso será presidido pelo cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos e presidente da CAL, e pelo cardeal Rubén Salazar Gómez, arcebispo da capital colombiana. Após a celebração eucarística de abertura, será realizado um gesto significativo: o Rosário continental pela paz.
“Participarão mais de 180 bispos de todos os países da América Latina”, confirma Carriquiry, “e cerca de vinte cardeais, ao menos”, com os quais se unirão outros provenientes do Norte, Estados Unidos e Canadá, como era a vontade de São João Paulo II quando iniciou estes encontros que Francisco deu continuidade. O papa Francisco, quando recebeu os máximos representantes da Conferência Episcopal Latino-Americana, em fins de maio, começou a reflexão com um comentário irônico sobre os leigos: “há 50 anos, disse o Papa latino-americano, se vem dizendo que ‘esta é a hora dos leigos’, mas parece que o relógio foi parado...””.
Uma brincadeira que Guzmán Carriquiry considera que, de maneira alguma, se deve deixar passar. “É óbvio que os bispos reconhecem e apreciam os ensinamentos do Concílio Vaticano II sobre a dignidade e responsabilidade dos leigos como um dos conteúdos fundamentais da renovação. E também é sabido que os leigos estão presentes em todas as partes, como corresponsáveis, na edificação das diversas comunidades cristãs, em associações, movimentos, em uma imensa quantidade de serviços. Não há dúvida que temos muitos bons pastores que começam seu ministério “de joelhos” - como recomenda frequentemente o Papa -, pessoas simples, próximas ao povo, cheias de zelo apostólico...
Guzmán Carriquiry (Foto: Religión Digital)
A entrevista é de Alver Metalli, publicada por Religión Digital, 27-08-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Então, a que se deve esta avaliação?
Impressiona que o Papa tenha enfrentado novamente, e de maneira tão decidida, o “clericalismo” na América Latina. Já havia feito isso no início de seu pontificado, no Rio de Janeiro, diante da cúpula do CELAM. E agora faz o mesmo em uma carta de muita importância enviada ao cardeal Marc Ouellet, presidente da Pontifícia Comissão para América Latina, a cuja redação se dedicou de forma muito pessoal, apesar de suas inúmeras ocupações. É preciso prestar atenção. O Papa não se refere aos resíduos de clericalismo dos tempos tardo-tridentinos do “pré-concílio”, mas aos sinais que se manifestam hoje, sob as aparências de uma Igreja “pós-conciliar”.
Se não me engano, o definiu como “uma das maiores deformações que a América Latina deve enfrentar”.
O clericalismo se instaura lá onde os pastores não vivem suficientemente essa proximidade misericordiosa, evangelizadora e solidária com as próprias pessoas, que o papa Francisco está reivindicando insistentemente, com suas palavras, e mostrando com gestos concretos.
Quando não expressam a alegria de estar no meio de seu povo, quando não conhecem a fundo a experiência viva e concreta daqueles que lhes foram confiados, porque falta essa compenetração afetiva que dá o amor, quando não sentem a urgência e a paixão de responder com o Evangelho os sofrimentos e esperanças de seus povos.
Por isso, nesta recente carta à PCAL, repete que o Santo Povo de Deus é “o horizonte ao qual somos convidados a olhar e a partir de onde refletir (...). É a quem como pastores somos continuamente convidados a olhar, proteger, acompanhar, sustentar e servir. Um pai não entende a si mesmo sem seus filhos (...). Um pastor não se concebe sem um rebanho ao qual é chamado a servir. O pastor é pastor de um povo, e ao povo só pode ser servido a partir de dentro (...). Olhar o Santo Povo de Deus e nos sentir parte integrante do mesmo nos posiciona na vida”, salva de abstrações, de meras especulações teóricas, de intermináveis planos pastorais, de fechamentos funcionais.
Inclusive mais: “quando nos desenraizamos como pastores de nosso próprio povo, nos perdemos”. Nos perdemos em fechamentos e refúgios clericais – se poderia bem prosseguir –, se ficamos afastados de nossas gentes, se não abraçamos com amor misericordioso a todos, evitando discriminações preventivas, precondições morais e exclusões, se não tocamos a carne dos pobres e as feridas que tantos sofrem no corpo e na alma.
Também há um clericalismo dos leigos, você não acha?
Há uma correlação entre clericalismo dos pastores e clericalismo dos leigos que se observa na medida em que existe o que o Papa chama de “tendência à funcionalização do laicato”, tratando-o como se fosse um “mandadeiro”. A tal ponto que alguns leigos começam a considerar mais importante para sua vida cristã, para sua participação na missão da Igreja, caso tenha ou não voto consultivo ou deliberativo em tal ou qual organismo eclesiástico, se podem ou não exercer tal ou qual função pastoral, que o fato de ter que tomar todos os dias decisões importantes na vida familiar, de trabalho, social e por que não política. Correlativamente, os sacerdotes acabam considerando os leigos mais como meros colaboradores paroquiais e pastorais, quando deveriam, ao contrário, buscar as modalidades mais adequadas para educar, valorizar, acompanhar e apoiar, junto com toda a comunidade cristã, sua presença no mundo, sua presença “secular” para construir formas de vida mais humanas.
Não se trata, obviamente, de desprezar a muito positiva e generosa corresponsabilidade dos leigos na edificação das comunidades cristãs, mas de se deixar interpelar pelo que o papa Bento XVI disse em seu discurso inaugural de Aparecida e que, depois, foi retomado pelo Episcopado latino-americano em seu documento conclusivo (cuja redação ficou a cargo do então cardeal Jorge Mario Bergoglio): há “uma notável ausência no âmbito político, comunicativo e universitário de vozes e iniciativas de líderes católicos, de forte personalidade e de vocação abnegada, que sejam coerentes com suas convicções éticas e religiosas”.
É realmente assim? Você que é latino-americano e visita muito seguidamente os países da América Latina, recebe informes e está diariamente em contato com a hierarquia destes países, compartilha desta ideia?
Resulta, com efeito, surpreendente – e inquietante – que em um continente onde 80% da população está batizada, onde a tradição católica está tão presente na história e na cultura de seus povos, onde a Igreja católica desempenhou um papel muito importante nos processos de democratização da América Latina, a presença e contribuição dos leigos católicos na vida pública seja tão pouco relevante nas últimas décadas do século XX e no que vai do século que iniciou. Todos conhecemos testemunhos exemplares a esse respeito, a confissão cristã de muitos “dirigentes” como uma homenagem à tradição de nossos povos, mas onde se apreciam correntes vivas que irradiem a novidade cristã na vida pública da América Latina?
Elas ocorreram em fins do século XIX, nas décadas de 30 a 50, no imediato “pós-concílio”. Não depois! Os leigos parecem ter ficado esperando à sombra os pronunciamentos episcopais ou pressionando para que sejam feitos, sem ser eles próprios adiantados, abrindo caminhos ao Evangelho na tarefa social e política. E os pastores multiplicam declarações sobre diversas questões presentes na vida pública de nossos países, mas, de fato, conhecem pouco os “recursos” humanos e cristãos com os quais contam entre os leigos, não geram e nem animam “novas formas de organização e celebração da fé (...), de oração e comunhão” – como sugere o Papa em sua carta – para dar companhia e sustentação para aqueles que assumem responsabilidades na coisa pública. Tomam distância deles para não “comprometer” a posição da Igreja e os escutam muito pouco, inclusive, às vezes, só os consideram como braços executivos de resoluções hierárquicas.
Como se faz para superar o clericalismo? Há, realmente, uma forma de superá-lo? Cinquenta anos de pós-concílio não conseguiram...
Na carta dirigida ao cardeal Ouellet, o Papa faz duas afirmações determinantes. A primeira é que o leigo é o batizado, todo batizado, sem leigos de série A e de série B, sem esse elitismo de raiz neofascista que leva a se autodefinir como “leigos adultos”, “leigos comprometidos”, “leigos militantes”, utilizando esses qualificativos como um autoelogio. A segunda é que falar de leigos, como já disse, implica evocar o horizonte do Santo Povo de Deus ao qual pertencem, em toda sua consistência teologal e histórica de povo a caminho do Reino de Deus, segundo suas diferentes modalidades de inculturação e segundo os diferentes níveis de adesão, pertencimento e participação (como ocorre em qualquer povo...).
A partir destas duas inseparáveis perspectivas – batizados no Santo Povo de Deus –, a “revolução evangélica” que o papa Francisco leva adiante, implica e requer uma dinâmica de conversão pessoal por um renovado encontro com Jesus Cristo. Foi o que disse de maneira solene no início de sua Exortação Evangelii Gaudium, quando convida “todo o cristão, em qualquer lugar e situação em que se encontre, a renovar hoje mesmo seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, ao menos, tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o procurar cotidianamente, sem descanso” (n. 3). Se não damos resposta a este convite, nos contentamos só com o anedotário do pontificado. Não prestamos atenção ao que o Espírito está dizendo à Igreja e às Igrejas, a cada um dos batizados, mediante o testemunho do papa Francisco.
Recordo-me da Conferência de Aparecida, em 2007, quando Bento XVI ainda era Papa e Bergoglio presidente da Comissão que era responsável por redigir o documento final...
Com efeito, o Santo Padre retomou a expressão da Conferência de Aparecida que fala da “conversão pastoral” e da “conversão missionária” da Igreja, de toda a comunidade cristã. Há aqueles que reduzem a “conversão pastoral” a um reajuste de planos pastorais ou renovação de obras pastorais. E é algo bom. Se a evangelização procede por atração, atração de uma beleza que é irradiação da verdade na vida, é também algo bom que toda comunidade cristã se envolva em um profundo exame de consciência sobre o quanto é transparente e irradiante nela a presença de Cristo, o milagre de sua unidade, o testemunho de santidade, seu amor aos pobres e excluídos, para além da opacidade do pecado.
No entanto, “conversão pastoral” evoca antes de mais nada a conversão dos Pastores, ou seja, dos Bispos e de seus colaboradores no ministério pastoral. Isto é fundamental, caso se deseje que esta “revolução evangélica” encontre, por um lado, multiplicadores que a difundam e se evite, por outro, que muitas pessoas acabem manifestando suas calorosas simpatias pelo papa Bergoglio, mas mantenha distância crítica em relação à Igreja e não a perceba como o mistério de Deus presente.
Há uma expressão recorrente nas intervenções do Papa a religiosos, clero e hierarquia: Igreja em saída...
É exatamente o contrário da autorreferência eclesiástica, de toda autossuficiência, do egocentrismo, do recolhimento temeroso, de qualquer refúgio autocomplacente, onde se aninha o clericalismo. Sair e ir ao encontro! E realizar isto com a confiança que o Evangelho de Cristo é a resposta superabundante e correspondente, totalmente satisfatória aos anseios de amor e verdade, de justiça e felicidade, conaturais à pessoa humana. O Espírito Santo nos precede no coração das pessoas e na cultura dos povos. É necessário sair dos espaços eclesiásticos! Não se deve ficar esperando os fiéis, enquanto – como disse o papa Francisco – há 99 ovelhas perdidas e só uma ficou no curral. É preciso estar atentos para discernir os sinais da presença de Deus nas mais diversas experiências de fé, esperança e caridade. A desatenção e a ausência são sinais de clericalismo.
O momento é turbulento na América Latina, com a Venezuela à beira da falência e, talvez, de uma ruptura institucional que pode, inclusive, ter um desfecho violento; com o Brasil que destituiu a sua presidente e a Argentina que está para julgar Cristina Kirchner por corrupção, após ter sido derrotada nas urnas por um governo de centro-direita...
Encerrou a fase das “vacas gordas” alimentadas pelos altos preços do petróleo, dos minerais, dos produtos agropecuários, pela disponibilidade abundante de capitais estrangeiros, pelo efeito China, que tornou possível um forte crescimento econômico sul-americano, aproximadamente de 5% em média, e a emergência de uma classe média popular, ainda que em condições vulneráveis de um trabalho geralmente “informal” e precário, graças a algumas dezenas de milhões de pessoas que ultrapassaram a linha da pobreza. Isso sim, não deixou de continuar existindo uma distância abismal entre as grandes oligarquias e os excluídos e descartados.
Entramos em um tempo de vacas magras...
Sim. Desabaram os preços que nos importam no mercado mundial e países muito importantes, como Brasil, primeiro, e depois Venezuela, retrocederam a situações dramáticas e explosivas, com gravíssimas crises política e econômica que lançam abaixo, em deflação e depressão, o conjunto da América Latina, ainda que não estejam ausentes países de governos muito diversos, que continuam tendo performances econômicas positivas (Paraguai, Bolívia, Peru...). Ficam abertas as interrogações sobre o futuro cubano, sob os impactos de sua “abertura ao mundo” – como auspiciava São João Paulo II –, que hoje consiste principalmente na abertura aos Estados Unidos, e sobre o processo de paz na Colômbia, após um ciclo de 50 anos de guerra e violência.
O pêndulo se moveu para o outro lado...
E lamentavelmente há muitos que repetem julgamentos indiscriminados e demolidores, condenações maniqueístas contra “os que estavam antes”, sem ser capazes de valorizar todo o bom do caminho percorrido, descartando tudo o que foram limites e misérias. Sem políticas de Estado a longo prazo a serviço dos povos, ocorrem alternâncias políticas de governos de curto respiro. Oscilamos entre um centralismo estatista e um neoliberalismo tecnocrático, padecendo as deficiências de uns e outros. Mudam as elites de governo, mas estão sempre muito presentes e determinantes os mesmos poderes fáticos.
E a corrupção política.
A corrupção política é dramaticamente bem real, mas como se trata de um problema endêmico, cabe também supor que é utilizada como instrumento de batalha segundo os interesses e oportunidades políticas. Os que se mostram mais sensíveis diante do desperdício de dinheiro público são justamente essas emergentes classes médias populares, beneficiadas em tempos de “vacas gordas”, que reivindicam melhores serviços de saúde, transporte, educação, administração pública e subsídios sociais que agora se veem ameaçados, sobretudo pensando no futuro de seus filhos. O pior, para além dos vaivéns políticos, seria que entrássemos, como já é visível aqui e ali, em uma nova fase de empobrecimento e desigualdade social no seio dos países. O pior seria também que as polarizações políticas e sociais chegassem a se transformar em batalhas sangrentas, de imprevisíveis consequências.
Parece que hoje a mediação da Igreja é mais importante que nunca, e não só para derrubar muros seculares, como também para prevenir guerras incipientes.
A Igreja católica, consubstanciada com os sofrimentos e esperança de nossos povos, com a credibilidade que continua tendo como nenhuma outra instituição nos países latino-americanos, a partir desse amor preferencial aos pobres de evidente cunho evangélico, que o papa Francisco não para de testemunhar cotidianamente, precisa discernir profundamente esta nova fase conjuntural que está se abrindo na América Latina e as graves implicações que a mesma tem para sua missão educativa e missionária, misericordiosa e solidária. De forma alguma sua missão consiste em ser antagonista ou “capelão” político, sustentar, abater ou substituir governos. Tem, sim, a partir da originalidade de sua missão, [o dever de] manter muito alto os melhores ideais que vem de nossa história, colaborar na construção de um projeto histórico para América Latina e ajudar a solidificar grandes movimentos populares e consensos nacionais, sem os quais tudo fica na retórica.
Ao mesmo tempo, o serviço da Igreja às nações pode ser indispensável para desarmar os ânimos recalcitrantes, promover atitudes públicas de perdão e reconciliação nas quais se aprecie a magnanimidade humana e as buscas convergentes de reconstrução nacional, suscitar caminhos de diálogo, promover acordos e se oferecer também como mediadora quando as circunstâncias o permitam. Deus também faz milagres na vida das nações!
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“O clericalismo se instaura lá onde os pastores não vivem a proximidade com o povo”. Entrevista com Guzmán Carriquiry - Instituto Humanitas Unisinos - IHU