24 Agosto 2018
O Papa Francisco culpou o "clericalismo" da Igreja Católica por criar uma cultura em que o abuso criminoso foi difundido e foram feitos extraordinários esforços para ocular os crimes.
A reportagem é de Cindy Wooden, publicada por America, 22-08-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Ao longo do pontificado, o Papa Francisco tem considerado o clericalismo uma doença na Igreja, que finge que "Igreja" significa "padres e bispos", ignora ou minimiza a graça divina e os talentos dos leigos e enfatiza a autoridade dos clérigos sobre sua obrigação de servir.
O clericalismo, disse, envolve a tentativa de "substituir, silenciar, ignorar ou reduzir o povo de Deus às pequenas elites", geralmente aos clérigos.
Kathleen Sprows Cummings, professora de história da Universidade de Notre Dame e autora de um artigo de opinião sobre o escândalo de abusos publicado no dia 17 de agosto no New York Times, disse ao Catholic News Service que ficou "encantada" com o foco do Papa a respeito do fato de o clericalismo ser o problema, "porque é o que eu senti".
O que foi diferente com o relatório da Suprema Corte da Pensilvânia, ela disse, não foi apenas a dimensão esmagadora e a magnitude dos casos de abuso, "mas o fato de realmente ter acusado a cultura - do clericalismo - de ter permitido que este abuso continuasse e permitido que fosse encoberto".
"Dizer não ao abuso, é dizer um vigoroso não a qualquer forma de clericalismo”, declarou o Papa em uma carta a todos os católicos, divulgada no dia 20 de agosto.
"Não são apenas 'algumas laranjas podres', como se diz, mas toda a cultura que possibilita isso", disse Cummings.
Natalia Imperatori-Lee, professora de teologia do Manhattan College, disse ao CNS: "Não há dúvidas de que o clericalismo está na raiz da crise de abuso. O clericalismo é isolacionista e insular - corta o 'ar' da solidariedade genuína e compartilhamento da vida com os leigos, criando uma classe separada, uma casta, dentro da Igreja".
Quando as pessoas criam "pequenas elites", como os chama o Papa Francisco, observou ela, "a tentação é de preservar 'a nós mesmos' e 'nossa visão/vida/privilégio' em detrimento da 'deles' - os leigos, 'os que não entendem', 'os que não estão sobrecarregados como nós'."
Por mais de duas décadas, o autor e escritor Russell Shaw tem alertado sobre o desastre que o clericalismo coloca para a Igreja. Seu livro, "To Hunt, To Shoot, To Entertain: Clericalism and the Catholic Laity", foi publicado em 1993.
Num artigo publicado no dia 6 de agosto no Angelus News, o sítio de notícias da arquidiocese de Los Angeles, Shaw analisou particularmente as acusações de abuso sexual e má conduta levantadas contra o atual arcebispo Theodore E. McCarrick.
"O clericalismo não é totalmente culpado pelo que aconteceu", escreveu. "Mas é parte importante da explicação. É essencial que nós entendamos como isso aconteceu", particularmente ao explicar como o arcebispo foi capaz de subir tanto na hierarquia da Igreja.
Conceder qualquer tipo de integridade a investigações do escândalo por parte da Igreja vai exigir a participação dos leigos, observou Shaw, porque "seria um erro grave investigar os danos causados pelo clericalismo usando o clericalismo".
A Comissão Real para Respostas Institucionais ao Abuso Sexual Infantil emitiu um relatório em dezembro do ano passado, após cinco anos de investigações e audiências, e concluiu que o "clericalismo está no núcleo de um conjunto interconectado de fatores que contribuem" para o abuso dentro da Igreja Católica.
"O clericalismo está ligado a um sentido de direito, superioridade, exclusão e abuso de poder", afirmou o relatório.
Além disso, "fez com que alguns bispos e superiores religiosos se identificassem com pessoas que cometeram abuso sexual, e não com vítimas e suas famílias".
Os bispos da Austrália planejam divulgar uma resposta formal ao relatório no final de agosto. Mas enquanto isso o arcebispo de Brisbane Mark Coleridge, que é presidente da conferência, disse ao CNS que, embora o relatório seja "essencialmente um olhar secular sobre a Igreja, (...) parece correto afirmar que 'o clericalismo está no núcleo de um conjunto interconectado de fatores que contribuem [para casos de abuso]'”.
"Para tentar combater o clericalismo", mencionou, "é preciso ter cuidado para não perder tudo porque uma coisa não serve. Claramente, é necessária uma revisão radical de como recrutar e preparar os candidatos à ordenação. Muita coisa mudou nos seminários, mas é preciso refletir se são o melhor lugar ou a melhor forma de treinar homens para o sacerdócio atualmente”.
"Também deve haver uma mudança na cultura associada com o sacerdócio católico, o que, é claro, é mais fácil falar do que fazer", acrescentou, respondendo a perguntas por e-mail. "Parte dessa mudança envolve supervisão profissional adequada em prol de uma maior responsabilidade, mas também uma maior partilha de responsabilidades com os leigos - o que, por sua vez, requer uma reconsideração das nossas estruturas de decisão."
"Isso também envolve uma reflexão séria e prática do diagnóstico de clericalismo dado pelo Papa Francisco durante seus anos de pontificado - um diagnóstico que é ao mesmo tempo perturbador e consolador, assim como o Espírito Santo", escreveu o arcebispo Coleridge. "Aceitar e agir de acordo com esse diagnóstico não vai diminuir o sacerdócio de forma alguma - como temem alguns -, mas vai mostrar que o sacerdócio pode estar em circunstâncias muito diferentes das que enfrentamos agora".
O relatório da Comissão Real também tentou abordar um pouco de teologia católica, alegando que, "a noção teológica de que o padre passa por uma 'mudança ontológica' na ordenação, para que seja diferente dos seres humanos comuns e seja padre de forma permanente, é um perigoso componente da cultura do clericalismo. A noção de que o padre é uma pessoa sagrada contribuiu aos níveis exagerados de confiança e poder não regulamentado que os que cometeram abuso sexual foram capazes de explorar".
O arcebispo de Coleridge disse que sua aceitação da ideia do clericalismo como um fator que contribui para a crise de abuso obviamente não significa que ele aceita o entendimento da Comissão Real sobre a teologia das ordens sagradas.
A expressão "mudança ontológica" é o que a Igreja usa para descrever o que acontece na ordenação, relatou, afirmando que "Deus faz alguma coisa na ordenação, algo que atinge as profundezas do ser" e que "depois de ordenado, as relações do homem com as outras pessoas e com Deus são radicalmente e permanentemente alteradas".
Portanto, ainda que o ensinamento de que a ordenação traz uma mudança permanente possa contribuir para o clericalismo, não tem necessariamente de contribuir, disse o arcebispo.
Imperatori-Lee também mencionou isso ao comentar com o CNS como clericalismo pode infectar os leigos, bem como sacerdotes e os bispos.
"Os leigos, que ouvem reiteradamente que o sacerdote é especial e exclusivamente santo - 'mudança ontológica', 'marca indelével' - não é levado a acreditar que o clero pode pecar", afirmou, "e depois quando surgem essas alegações e elas são corroboradas, a quebra de confiança é irreparável".
"Há certos modos em que o clericalismo machuca a todos”, disse. “Os leigos são vitimados e infantilizados; o clero é isolado e deve ser sobre-humano."
Marie Collins, vítima de abuso e ex-membro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, também parabenizou o Papa por abordar o clericalismo.
No dia 20 de agosto, no Twitter, ela disse: "é bom ver a condenação ao clericalismo na carta, pois tem um papel importante ao ignorar as vítimas, os leigos e os especialistas. Dá origem à facilidade com que os líderes da Igreja ficam confortáveis ao proteger outros clérigos apesar dos crimes cometidos contra crianças."
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Clericalismo: a cultura que permite o abuso e insiste em escondê-lo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU