Por: João Vitor Santos | 25 Agosto 2018
Quem tem mais de 70 ou até mesmo 60 anos e viveu no Rio Grande do Sul, deve ainda guardar na memória que o dia 24 de agosto nunca era um dia qualquer, pois era preciso buscar na sua cidade nem que fosse um singelo monumento ou uma rua batizada como Getúlio Vargas para que se pudesse fazer memória da sua morte. Em 1954, Getúlio Vargas cometera suicídio e, em virtude de sua popularidade, sempre foi muito lembrado pelos chamados getulistas. “Vargas era isso. Mas também era contraditório, suscitava um grande amor ou um grande ódio”, completa o historiador Alessandro Batistella, professor na Universidade de Passo Fundo - UPF, que participou do IHU Ideias da última quinta-feira, dia 23-08, proferindo a palestra O varguismo e seus reflexos no trabalhismo e na eleição brasileira de 2018.
Batistella iniciou a sua conferência com a observação de que, agora em 2018, os 64 anos da morte do líder político não mobilizaram muitas pessoas a homenagens ou peregrinações até monumentos que lembram o político gaúcho. Inclusive na imprensa, a passagem da data não foi além de uma nota de pé de página. Muito mais do que um apagamento da memória em função da passagem do tempo, o professor provoca a pensar os episódios políticos que foram levando a uma desconstrução de Vargas. “Ele sempre foi um personagem muito contraditório, usando de muita propaganda e trazendo para si o capital simbólico de transformações de seu governo, mas fato é que, na prática, promoveu transformações concretas na vida de muitos, especialmente dos trabalhadores”, recorda o professor.
Batistella: “Vargas suscitava um grande amor ou um grande ódio” (Foto: João Vitor Santos/IHU)
A historiografia, segundo Batistella, vem trabalhando na análise tanto de como Vargas vai se constituir como “pai dos pobres” e como vai se distanciando do imaginário de político de referência que, apesar de tudo, “desceu da torre de marfim e se movimentou em direção aos pobres”. “Houve ganhos materiais aos trabalhadores na sua gestão e por isso passa à criação da ideia de trabalhismo”, aponta. Entretanto, esse trabalhismo se transforma ainda mesmo na passagem de seus dois governos, depois com sua morte, com as disputas internas do PTB, a assunção de Leonel Brizola como uma espécie de refundação do trabalhismo varguista até chegar aos confrontos com o PT, e o seu desejo de reinventar o trabalhismo sob alcunha de novo sindicalismo. “Esse novo sindicalismo quer descolar do trabalhismo, propondo um novo sindicato diferente do da Era Vargas, muitas vezes acusado de ‘peleguismo’”, acrescenta.
O curioso é observar como esse ideário do novo sindicalismo consegue maior adesão, enquanto o trabalhismo sucumbe. “Há inúmeras tentativas de reerguer e refundar o trabalhismo, mesmo com Brizola, mas isso não decola”, pontua Batistella, ao indicar que vai culminar numa aliança entre o PT, de Lula, e o PDT, de Brizola. Hoje, o próprio PT se vê diante de um movimento similar: como reinventar o sindicalismo e, em alguma medida, a própria esquerda nacional? “Fala-se na crise da esquerda. Hoje, o desafio é justamente este: pensar alternativa à esquerda. Buscar essas alternativas passa por pensar nessa reinvenção que tem relação também com a reação a essa ‘nova direita’ que se coloca atualmente”, provoca.
Alessandro Batistella recorda que, na década de 1930, quando Getúlio Vargas sobe ao poder, traz um novo paradigma político ao país. Durante os anos 1920, Vargas defendia um nacionalismo, um Estado forte e, por vezes, inclusive duro e autoritário. “Ele tinha bem claro um projeto nacional-desenvolvimentista, num país que até então era mero agroexportador. Em termos econômicos era um projeto de industrialização. Mas defendia isso através de um Estado centralizador e ditatorial”, aponta. Mas, destacando a grande habilidade política de Vargas, o professor recorda que já havia muitas lutas por direitos de trabalhadores e minorias durante a 1ª República. “Aliás, a primeira lei trabalhista foi dessa época. Mas isso acaba apagado com a figura de Vargas, que chama para si todo o mérito pela instituição de direitos ao trabalhador”, acrescenta.
Pois Vargas, percebendo esses movimentos, vai se movendo nessa direção, deixando uma gestão mais dura e ditatorial e se abrindo às pautas das minorias. “Além da promulgação das leis trabalhistas, ele vai atrelando os sindicatos ao Estado. Essa ação fortalece o movimento, mas por trás o desejo centralizador e, em especial, o combate às ideologias socialistas e comunistas”, analisa. Isso, para o professor, tem grande significado na relação com os trabalhadores, e ainda vai os aproximar ainda mais quando, em 1942, Marcondes Filho assume o Ministério do Trabalho e vai conduzir um programa de rádio que brada as conquistas de Vargas. “É o que os historiadores vão chamar de ‘ideologia de outorga’”, um dos caminhos para compreender o personalismo do trabalhismo em Vargas.
O professor assinala que, durante o Estado Novo, Vargas já percebe que a democracia era algo iminente. “Assim, ele próprio vai articular uma espécie de abertura política, cria a Lei Agamenon e permite o pluripartidarismo”. É quando a UDN emerge como frente de oposição ampla, mas também é quando PSD e PTB se unem no entorno de Vargas. Isso, mais na frente será o real problema do trabalhismo, pois essas disputas vão enfraquecer o próprio trabalhismo. “O PSD vai se estruturar em mais uma burguesia estatal e uma nova burguesia, enquanto o PTB já nasce a partir do sindicalismo, mas numa força política muito mais fraca”, acrescenta.
O PTB nasce como partido político muito inspirado numa ideia inglesa do trabalhismo. “Era o partido dos trabalhadores. Dos 30 pontos de seu programa, 27 estavam associados a leis de ampliação e consolidação do Direito do Trabalho”, recorda o professor. A diferença é que no Brasil ele se atrela à figura de Vargas. Isso, segundo Batistella, é o que vai provocar que o trabalhismo seja um com Vargas e outro depois de sua morte. Os conflitos internos entre os que pensam no trabalhismo mais tutelado de Vargas e os mais radicais eclodem depois do suicídio. É quando aparecem inúmeras lideranças, entre elas reformistas e outros mais pragmáticos.
Embora de fato nunca tenha rompido com a imagem de Vargas, Batistella recorda que chega o momento em que o trabalhismo petebista precisa se estruturar sem o grande líder. “É quando João Goulart entra para a cena com inúmeras ações, como a de fortalecer o partido nos municípios. É quando aparecem ideias nacionalistas e reformistas”, completa. Não significa que o getulismo acabe, mas o trabalhismo vai além dele, propondo reformas amplas e de cunho nacionalista. Aparecem outras lideranças, como Santiago Dantas, Fernando Ferrari e Leonel de Moura Brizola.
Batistella lembra que, com o passar do tempo, o varguismo vai sendo uma lembrança apenas dos mais velhos
(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Desde o início dos anos 1960 já orbitava uma tensão política no ar que, por algum tempo, fica em suspenso com o suicídio de Vargas. Mas esse fato não segura muito mais essa atmosfera de instabilidade e se chega à instauração do Regime Militar em 1964. As reformas de base no PTB ficam em suspenso, e os líderes reformistas passam a ser perseguidos. “O trabalhismo foi mutilado com todo esse processo”, avalia o professor. Muitos desses líderes reformistas acabam no exílio. É o caso de Brizola, que vai a Portugal.
Durante sua estada em terras lusitanas, Brizola vai ao Partido Português, que vive uma efervescência. “É nesse contexto que se produz a Carta de Lisboa, que vai servir de norte para o novo trabalhismo de Brizola”, acrescenta Batistella. Esse novo trabalhismo vai chegar com Brizola na reabertura democrática cheio de ideais nacionalistas e até socialistas, com olhares para as pessoas marginalizadas. “O mundo mudou nesse tempo, e o novo trabalhismo vai trazer essas preocupações mais sociais para o Brasil, como a relação com os afrodescendentes, indígenas e mulheres. É a via de um socialismo democrático”, analisa.
Entretanto, nem mesmo Brizola traz uma ruptura radical com a imagem de Vargas. Ainda assim, na sua volta, tem um embate na ala mais conservadora do PTB, ligada ao PSD, capitaneada por Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getúlio Vargas. É quando ocorre a disputa pelo nome do partido e o grupo de Ivete sai vitorioso. “Ivete defendeu o caminho mais fisiológico e isso podemos ver bem claro no PTB de hoje. Além de todo seu fisiologismo, só quer se associar a Vargas de uma forma eleitoreira”, destaca. Curioso, provoca o professor, é pensar como o PTB vai se colocar nessa eleição, uma vez que apoiou a Reforma trabalhista do Governo Temer, tomada pelos trabalhistas como afronte à Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, ‘menina dos olhos de Vargas’.
Leonel de Moura Brizola traz do exílio em Portugal inspirações para refundar o trabalhismo (Foto: arquivo PDT-RS)
Nesse contexto, Brizola segue com a fundação do PDT e a impressão de um novo trabalhismo. “Mas que não teve muito êxito. Conseguiu alguma expressividade na década de 1980, mas não consegue avançar muito”, recupera Batistella. E isso não se dá ao acaso. No mesmo momento em que Brizola brada um novo trabalhismo apoiado na fundação do PDT, nasce uma outra corrente: o novo sindicalismo, de Luiz Inácio Lula da Silva, seu movimento de operários do ABC paulista e a fundação do Partido dos Trabalhadores - PT.
Alessandro Batistella observa que Lula vai se afastar da ideia do trabalhismo de Vargas por compreender que o movimento sindical, até então, era tutelado pelo Estado. Como Brizola segue com a ideia de novo trabalhismo e disputando o mesmo eleitorado, ambos passam a ser vistos como rivais. “E nesse sentido, é muito interessante observar a eleição de 1989, em que Lula e Brizola disputam voto a voto a vaga para segundo turno para disputar a presidência com Fernando Collor”, recorda.
Mesmo perdendo para o PT nessa disputa, no início dos anos 1990 o PDT consegue algum êxito nas eleições para governador, tendo Brizola no Rio de Janeiro e Alceu Collares no Rio grande do Sul, por exemplo. “Mas enquanto o PT crescia, o PDT ia estacionando”, pondera o professor. Por quê? Segundo o professor, são muitos fatores. Os mais lembrados são as disputas internas e os erros políticos cometidos pelo próprio Brizola. “Ele não apoiou o impeachment de Collor, por exemplo. Talvez, com medo de reviver todo o regime militar, mas isso não ecoou bem”, pontua. E, lentamente, o PDT vai perdendo a adesão das massas.
De tantos confrontos e disputas, começa a surgir uma associação entre PDT e PT. Esse ‘casamento’ é celebrado, em meados da década de 1990, quando Brizola apoia Lula com o objetivo de somar esforços para enfrentar o PSDB do então candidato Fernando Henrique Cardoso. “A ideia é formar uma grande frente, mas acabou não dando certo”. Mais tarde, o PDT vai tentar outras alianças mirando a presidência, apoia Ciro Gomes, então no PPS, mas ficam em 4º lugar no primeiro turno. “Até que Brizola morre e o trabalhismo tem um novo baque. Depois, chegou a retomar estratégias de lançar Cristovam Buarque [então no PDT] à presidência, mas também não deu certo”, recorda. A saída foi retomar o apoio ao PT e seguir com ele nos governos Lula e Dilma Rousseff.
Com o capricho de uma história que poucos ousariam prever, a queda do PT se dá, por entre tantas vias, num momento em que o sindicalismo parece não mais aderir às massas. Sofrendo com denúncias de corrupção, impeachment de Dilma e a condenação e prisão do ex-presidente Lula, o partido se vê diante do desafio de se reinventar representativamente enquanto pipocam inúmeras vertentes mais à esquerda. Enquanto isso, Ciro Gomes, um velho conhecido do PDT, chega ao ninho pedetista e é lançado candidato à presidência com um discurso de reeditar o trabalhismo. “Será Ciro um novo nome do trabalhismo? Será que com ele o PDT vai decolar? Difícil prever”, analisa o professor.
Mais difícil fica se levarmos em conta que Ciro faz movimentos de aproximação com o PT, no intuito de formar uma grande frente de esquerda. A ideia era de que, juntos, poderiam reunir outros partidos e organizar um bloco único para enfrentar uma direita que também se fragmentava entre os polos Geraldo Alckmin e Jair Bolsonaro. Destaca-se que Lula lidera as pesquisas de intenção de voto, seguido por Bolsonaro. Lula não quis saber de uma nova aproximação com PDT e insistiu na cabeça de chapa, mesmo com todas as ameaças a sua elegibilidade e a incógnita acerca da transferência de votos para seu vice, Fernando Haddad. “O que fica claro é que o trabalhismo de Vargas está cada vez mais distante. Lula e Vargas são personagens muito distintos. Lula foi crítico a Vargas e seu sindicalismo da década de 1940, mas é evidente que buscou similaridades com Vargas naquilo que foi o sucesso do trabalhismo e do PTB”, analisa o professor Batistella.
Alessandro Batistella destaca que ainda está em aberto o futuro do trabalhismo petebista, mas isso também é aplicável ao sindicalismo petista, embora repensar uma nova forma de representatividade como foi feito à época de Vargas e da fundação do PT possa se configurar como um caminho. Para o professor, o que é ainda mais grave é observar, pelo que está sendo posto pelos candidatos ao Planalto agora de 2018, a falta de um projeto de nação. “O trabalhismo tinha esse projeto nacional-desenvolvimentista. Agora não vemos nada. O nacional-desenvolvimentismo poderia ser um projeto de agora? Não sei, talvez o mundo seja outro. O Ciro tenta claramente trazer algumas perspectivas do novo trabalhismo. Mas, assim como alguns outros projetos interessantes que tem por aí, tem muito pouca viabilidade eleitoral”, analisa o professor.
Tamanha falta de propostas, na visão de Batistella, se materializam nos debates eleitorais que temos visto. “São só propostas vazias e primam pela troca de acusações. Penso que um caminho seria centrar tudo num debate em torno de propostas concretas, avaliando sua viabilidade”, sugere. O professor não faz campanha, nem orienta voto de ninguém, mas é enfático ao dizer que uma saída para o país é o eleitor pensar nessa necessidade de escolher propostas que tenham um projeto de nação. “No Brasil, é necessário que se faça uma reflexão para que se busque uma espécie de reinvenção a fim de que se possa fazer frente e recuperar o país desses últimos episódios”, sintetiza.
(Foto: João Vitor Santos/IHU)
Graduado e mestre em História pela Universidade de Passo Fundo - UPF e doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF.
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O trabalhismo de Vargas e o sindicalismo de Lula: desafios para uma nova esquerda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU