Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 23 Agosto 2018
Como a experiência dos governos Vargas poderia inspirar a reinvenção da política e quais são os reflexos do varguismo no trabalhismo e nas eleições brasileiras deste ano? É “difícil responder” a essas questões, porque os contextos políticos históricos do Brasil nesses dois momentos são “muito diferentes”, mas o fato é que “estamos carentes de projetos políticos para o país”, afirma o historiador Alessandro Batistella, que estará no Instituto Humanitas Unisinos - IHU hoje, ministrando a palestra “O varguismo e seus reflexos no trabalhismo e na eleição brasileira de 2018”.
Para compreender as influências do varguismo no cenário atual, Batistella pontua que antes de tudo é preciso distinguir entre dois fenômenos que ocorreram durante os governos de Getúlio Vargas: o getulismo ou varguismo e o trabalhismo. “O getulismo é um fenômeno sentimental, uma espécie de culto a Getúlio Vargas, enquanto o trabalhismo é um movimento político-partidário e/ou ideológico. Assim, o getulismo pode não ser trabalhista”, esclarece. Nos dias de hoje, explica, o lulismo se assemelha ao getulismo. “Assim como o getulismo se caracterizava pelo culto e o amor à figura de Vargas, o lulismo também se caracteriza pelo culto e o amor à figura de Lula. Assim como Vargas parecia estar acima do PTB, Lula parece estar acima do PT”, compara.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Batistella lembra que embora o varguismo tenha sido “amplamente defendido”, por um lado, e “combatido”, por outro, ao longo do século XX, a partir dos anos 1990 e principalmente dos anos 2000 ele “entrou definitivamente em débâcle”, de tal modo que atualmente “é visto pelos grupos políticos como ‘algo ultrapassado’”. O historiador menciona ainda que a ascensão de Vargas ao poder nos anos 1930 “representou uma grande mudança paradigmática” no país, dando origem a uma “proposta de Estado centralizado e intervencionista (e também antidemocrático), que era antiliberal, anticomunista e antioligárquico e que ambicionava modernizar e industrializar o Brasil por meio de um projeto nacional-desenvolvimentista”.
Batistella também comenta o esgotamento da democracia representativa, que se manifesta no cenário eleitoral deste ano. Essa crise, avalia, “não é de hoje, uma vez que já há algum tempo o eleitor não se sente representado pela classe política, que somente se aproxima da população nas vésperas da eleição e, posteriormente, apenas se preocupa em defender os seus próprios interesses e dos grupos econômicos/empresariais que financiaram a sua campanha política”. Os sentimentos de “desesperança” e de “ojeriza à política” gerados pela crise da democracia representativa, adverte, formam um cenário “problemático e perigoso, pois muitos podem começar a achar que a democracia não funciona e serem seduzidos com discursos autoritários”.
Alessandro Batistella | Foto: Reprodução - Linkedim
Alessandro Batistella é graduado e mestre em História pela Universidade de Passo Fundo - UPF e doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. A palestra de Batistella inicia às 17h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como compreender o varguismo tendo em perspectiva a realidade política atual? E qual a atualidade do varguismo em nosso tempo?
Alessandro Batistella - A ascensão de Getúlio Vargas e do seu grupo político ao poder em 1930 representou uma grande mudança paradigmática em relação ao “liberalismo excludente” da Primeira República, uma vez que se implantou no Brasil uma proposta de Estado centralizado e intervencionista (e também antidemocrático), que era antiliberal, anticomunista e antioligárquico e que ambicionava modernizar e industrializar o Brasil por meio de um projeto nacional-desenvolvimentista. Aliás, convém lembrar que trabalhismo e getulismo não são sinônimos. O getulismo é um fenômeno sentimental, uma espécie de culto a Getúlio Vargas, enquanto o trabalhismo é um movimento político-partidário e/ou ideológico. Assim, o getulismo pode não ser trabalhista.
Ao longo do século XX o varguismo foi amplamente defendido e também combatido por determinados grupos políticos. Contudo, a partir da década de 1990 e, sobretudo, a partir dos anos 2000, me parece que o varguismo entrou definitivamente em débâcle. Afinal, há o paradigma neoliberal, que se opõe ao intervencionismo estatal e o modelo varguista; o PT e Lula já criticaram sistematicamente o varguismo, sobretudo o modelo de “sindicalismo pelego” edificado na Era Vargas; entre os grupos à esquerda o varguismo é ainda amplamente criticado, sobretudo pela repressão imposta às esquerdas durante o Estado Novo (1937-1945); o PDT, após a morte de Brizola em 2004, também parece que se afastou do varguismo. Portanto, parece-me que o varguismo atualmente é visto – pela maioria dos grupos políticos – como algo ultrapassado.
IHU On-Line - Qual a importância da Era Vargas para o movimento operário e sindical brasileiro?
Alessandro Batistella - Por um lado, a Era Vargas foi responsável por tutelar o movimento operário e sindical brasileiro, trazendo os sindicatos para a órbita e controle do Estado por meio do recém-criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. O principal objetivo dessa política era tornar os sindicatos uma associação apolítica, um órgão de colaboração e cooperação com o Estado, ao mesmo tempo que visava a combater a influência e a liderança de socialistas, comunistas e anarquistas nos sindicatos, inclusive utilizando-se da repressão aos setores mais combativos do movimento operário.
Contudo, por outro lado, também devemos lembrar que durante a Era Vargas foram promulgadas uma série de leis sociais e trabalhistas, indo ao encontro das reivindicações e lutas dos trabalhadores nas décadas anteriores. Dessa forma, a adesão dos trabalhadores ao modelo de sindicalismo imposto por Vargas resultou de uma complexa combinação entre concessão de direitos e repressão.
IHU On-Line - Recentemente, o mundo do trabalho, em específico a legislação trabalhista, sofreu vários retrocessos materializados na Reforma Trabalhista. Essa Reforma seria uma reação às conquistas da Era Vargas? Por quê?
Alessandro Batistella - A série de leis promulgadas na Era Vargas e consolidadas na CLT, em 1943, foram amplamente difundidas como uma espécie de presente doado pelo Estado, uma concessão de Vargas aos trabalhadores. Alguns historiadores chamam isso de “ideologia da outorga”, cujo objetivo era esquecer deliberadamente as lutas do movimento operário brasileiro durante a Primeira República. Em outras palavras, não podemos esquecer que as leis sociais e trabalhistas foram uma conquista dos trabalhadores, que lutaram por tais direitos. Dessa forma, a recente reforma trabalhista, que não foi sequer discutida com a população brasileira, representa em vários aspectos um retrocesso.
IHU On-Line - Que associações e dissociações podemos fazer entre o varguismo e o lulismo?
Alessandro Batistella - Trata-se de duas lideranças distintas. Luís Inácio Lula da Silva ganhou protagonismo como líder sindical na região do ABC paulista no final dos anos 1970. Esse movimento se autonomeou como “Novo Sindicalismo”, uma vez que pretendia se diferenciar do sindicalismo “corporativista e pelego” edificado por Vargas. Na década de 1980, Lula e o PT criticavam enfaticamente Vargas e o seu “herdeiro” político, Leonel Brizola, chamando-o de “populista” e o PDT (partido criado por Brizola no início da década de 1980) de “partido arcaico e herdeiro do sindicalismo pelego do pré-1964”. Nesse sentido, convém ressaltar a grande rivalidade e disputa envolvendo Lula e Brizola (e o PT e o PDT) no campo das esquerdas na década de 1980.
Contudo, assim como o getulismo se caracterizava pelo culto e o amor à figura de Vargas, o lulismo também se caracteriza pelo culto e o amor à figura de Lula. Assim como Vargas parecia estar acima do PTB, Lula parece estar acima do PT. Nesse sentido, basta lembrar que nas eleições presidenciais de 2006, Lula se reelegeu tranquilamente, enquanto o PT passava pela crise catalisada pelo Mensalão. E hoje, mesmo com Lula preso, as pesquisas indicam que ele venceria o primeiro turno das eleições presidenciais. Ademais, assim como Vargas foi amado e odiado, Lula também é amado e odiado. E assim como Vargas foi taxado de populista, Lula é taxado de neopopulista.
IHU On-Line - Getúlio Vargas foi da ditadura ao populismo. Como compreender esses dois conceitos? O que há de próximo e de distante entre eles?
Alessandro Batistella - São dois conceitos muito diferentes. Geralmente, ditadura é associada aos regimes antidemocráticos ou não democráticos modernos, caracterizados pelo cerceamento de liberdades civis, pela censura, pela repressão aos opositores etc.
Por sua vez, o populismo é um conceito impreciso e ambíguo, muitas vezes utilizado genericamente para denominar fenômenos históricos muito diferentes. No Brasil, o conceito de populismo é amplamente utilizado com um viés pejorativo, associado à demagogia de líderes que manipulam as massas, desprovidas de consciência de classe, para se legitimar no poder. Assim, o debate político, muitas vezes, acaba gravitando em torno da tentativa simplista de classificar líderes, partidos e discursos políticos como populistas e não populistas (estes geralmente apresentados como defensores das instituições, da democracia, do livre mercado etc.).
IHU On-Line - Hoje, fala-se que tanto Lula quanto Ciro Gomes, e até Jair Bolsonaro se apropriam de estratégias populistas. Mas o que os difere e como compreender essas muitas faces do populismo?
Alessandro Batistella - Hoje se fala em populismo de esquerda, populismo de direita... Geralmente, no Brasil essa classificação simplista tem um caráter pejorativo. O populista é sempre o meu adversário político, e nunca o meu candidato, o meu partido...
No entanto, o intelectual argentino Ernesto Laclau (1935-2014) propõe uma maneira diferente de pensar o conceito de populismo. Laclau é contrário à ideia de que o populismo seja um conceito pejorativo, embora também não seja necessariamente positivo. De acordo com Laclau, o populismo não é algo específico de um determinado tipo de regime político ou de uma ideologia, pois se trata de uma lógica política que pode operar com bases sociais e orientações ideológicas distintas.
Laclau entende o populismo como um discurso anti-status quo, no qual há a construção discursiva e simbólica de um inimigo, que poderá ser, por exemplo, as oligarquias, as elites, o imperialismo, os imigrantes, os comunistas etc. Desse modo, para Laclau, “nenhum movimento político estará absolutamente isento de se tornar populista porque nenhum está incapacitado para convocar o povo contra o inimigo comum”. Portanto, o conceito de populismo proposto por Laclau não implica necessariamente em uma manipulação demagógica por parte dos políticos, pois “o populismo não se caracteriza como uma ‘constelação fixa’, mas sim como um arsenal de ferramentas retóricas que podem ter os usos ideológicos mais diversos”.
IHU On-Line - Um dos temas que circundam as eleições de 2018 é o esgotamento da representatividade democrática. Quais os desafios para reinvenção da política representativa a partir de 2018? E como articular isso, na prática, com esse momento do pleito?
Alessandro Batistella - Essa crise não é de hoje, uma vez que já há algum tempo o eleitor não se sente representado pela classe política, que somente se aproxima da população nas vésperas da eleição e, posteriormente, apenas se preocupa em defender os seus próprios interesses e dos grupos econômicos/empresariais que financiaram a sua campanha política. Essa situação cria não somente um sentimento de desesperança, mas também uma espécie de ojeriza à política. Esse cenário é bastante problemático e perigoso, pois muitos podem começar a achar que a democracia não funciona e serem seduzidos com discursos autoritários. Isso pode ser exemplificado com o número crescente de pessoas que pedem uma intervenção militar no país. Portanto, é necessário um amplo debate com a sociedade – e que a classe política também demonstre vontade política – acerca de uma ampla reforma política no país.
IHU On-Line - No que a experiência da Era Vargas poderia inspirar uma reinvenção política hoje?
Alessandro Batistella - Difícil responder... São contextos históricos muito diferentes. De toda forma, hoje estamos carentes de projetos políticos para o país.
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Do varguismo ao lulismo e a carência de projetos políticos para o país. Entrevista especial com Alessandro Batistella - Instituto Humanitas Unisinos - IHU